Não há princípio da doutrina clássica cristã que, aos ouvidos do homem atual, até mesmo do cristão atual, cause tão viva estranheza como este: a virtude da prudência é a “mãe”
[1] e a informadora de todas as outras virtudes cardeais — da justiça, da fortaleza e da temperança. O mesmo é dizer que só quem é prudente pode ser justo, corajoso e temperado; e que o homem bom é bom em virtude da sua prudência.
Tal estranheza torna-se-nos ainda mais sensível quando situamos o princípio na hierarquia conveniente. Tornou-se corrente considerar a hierarquização dos valores espirituais, e mesmo das “virtudes”, como qualquer coisa de alegórico e até, por vezes, como qualquer coisa de fundamentalmente ocioso. Afigura-se-nos hoje por completo indiferente qual seja, de entre as quatro virtudes cardeais, aquela que deva ocupar o “primeiro lugar” na escala elaborada pelos teólogos “escolásticos”.
No entanto, nem por isso deixa de ser verdade que é sobre esta primazia da prudência relativamente às outras virtudes que repousa nem mais nem menos do que toda a ordenação dos valores humanos na doutrina cristã ocidental. Na primazia dada à prudência, reflete-se, mais do que em nenhum outro princípio moral, o suporte interno da metafísica ocidental cristã no seu conjunto: a saber, que o ser precede a verdade e que a verdade precede o bem
[2]. Mais ainda, brilha aí um reflexo do mistério central da teologia cristã: que o Pai é a fonte da revelação do Verbo Eterno e que o Espírito Santo emana do Pai e do Verbo.
É por isso que a estranheza que invade o homem de hoje em face de tal princípio adquire uma significação que a ultrapassa. Ela pode exprimir um afastamento de profundo alcance objetivo: o relaxamento da obrigatoriedade dos valores humanos da cristandade ocidental e, ao mesmo tempo, a correlativa falta de compreensão quanto aos fundamentos da doutrina cristã sobre a estrutura da realidade.
Na linguagem e no pensamento da atualidade parece estar implícito que a prudência é menos um pressuposto do que um revestimento do bem. A afirmação de que o que é bom é prudente soa quase como um absurdo; ou então tolera-se como fórmula de utilitarismo bastante superficial: é que nós ligamos a noção de prudência mais ao meramente útil, ao
bonum utile, do que ao
bonum honestum, ao sentido da honra. No conceito generalizado de prudência — como também na
prudence francesa — vibra o sentido de uma receosamente ponderada auto-conservação e de uma quase patológica solicitude por si mesmo. Nem uma nem outra convêm ao homem de honra; ambas se encontram nele deslocadas.
Eis a razão por que nos é difícil compreender que a justiça, segunda virtude cardeal, e tudo o que ela encerra, deva encontrar-se fundamentada na prudência. Até a prudência e a fortaleza, para o senso comum, se tornaram noções incompatíveis: procurar ser “prudente” é não se colocar na circunstância de ter de ser corajoso; “prudente” é o “hábil estratega” que sabe furtar-se a riscos pessoais; invoca sempre a “prudência” aquele que consegue desaparecer no momento do perigo. A relação entre a prudência e a quarta virtude cardeal, a temperança, parece já ser compreendida com maior exatidão pelo pensamento do homem comum; todavia, ainda aqui se revela a um olhar penetrante a falta de uma autêntica e perfeita correspondência entre as grandes representações originárias destas duas virtudes. O domínio das exigências dos apetites não se destina a produzir uma qualquer moderação pequeno-burguesa. Mas que é este o sentido errôneo da expressão “prudente temperança”, isso desvenda-se naquela estúpida suficiência com que se costuma depreciativamente classificar de “excessos imprudentes” a nobre audácia de uma vida virginal e os rigores do verdadeiro jejum — exatamente como se se tratasse da cólera agressiva da fortaleza.
Para a compreensão do homem de hoje, portanto, a noção de bem e a noção de prudente excluem-se em vez de se apresentarem solidárias. Para ele não há boa ação que não possa ser imprudente, e não a há má que não possa ser prudente; a mentira e a covardia são muitas vezes consideradas bastante prudentes, e, por outro lado, imprudentes a sinceridade e a dedicação corajosa. A doutrina clássica-cristã, pelo contrário, afirma que o homem é ao mesmo tempo prudente e bom, e que a prudência entra nos domínios do bem
[3].
Não há justiça e fortaleza que possam opor-se à virtude da prudência; e todo aquele que for injusto é, ao mesmo tempo e antes de mais nada, imprudente.
Omnis virtus moralis debet esse prudens: toda a virtude é necessariamente prudente
[4]. À consciência moral do nosso tempo, que se evidencia na maneira de falar de todos os dias, corresponde largamente a teologia moral sistemática. Qual delas exerceu mais influência sobre a outra é difícil dizer. É provável que ambas, a consciência moral e a teologia moral, constituam igualmente a expressão de um aprofundamento na valorização espiritual. Em todo o caso, é incontestável que a teologia ética da atualidade pouco ou nada sabe dizer sobre o valor e o lugar da prudência; pouco ou nada, mesmo quando julga ou declara seguir expressamente a teologia clássica. Um dos mais conceituados teólogos do nosso tempo, o dominicano Garrigou-Lagrange, fala precisamente de uma espécie de supressão do tratado da prudência (
quasi-suppression du traité de la prudence) na mais recente teologia moral
[5]. E se, isoladas, novas construções de teologia moral se orientam deliberadamente no sentido da doutrina de São Tomás de Aquino, é bastante significativo que tal “regresso” deva ser realizado sob a forma polêmica da autojustificação
[6].
Através de uma quase incomensurável variedade de conceitos e de imagens, procurou a teologia clássica fixar e explicar o papel da prudência. Nada há que mostre com tão grande nitidez, como se procura aqui, uma ordenação de sentidos e de valores, e não uma sequência meramente ocasional.
A prudência é a
razão daquilo que torna virtudes as outras virtudes
[7]. Pode haver, por exemplo, uma “disciplina” instintiva para os impulsos dos apetites: essa disciplina instintiva só virá a ser “virtude” da temperança através da prudência
[8]. A virtude é uma “capacidade perfeita” do homem enquanto pessoa espiritual; e a justiça, a fortaleza e a temperança só atingem a “capacidade” do homem total, e portanto, a sua perfeição, quando se fundamentam na prudência, isto é, acima de tudo, na “capacidade perfeita” de se decidir retamente. Só através desta “perfeita capacidade de decisão” é que as instintivas propensões para o bem se elevam na liberdade espiritual do homem, da qual promanam os atos verdadeiramente humanos. Só a prudência aperfeiçoa as práticas naturais e instintivas, as naturalmente boas “disposições”, transformando-as em virtude autêntica, isto é, no modo de ser autenticamente humano da “perfeita capacidade”
[9].
A prudência é a “medida” da justiça, da fortaleza e da temperança
[10]. O que significa isto? Assim como no conhecimento criador de Deus todas as coisas criadas se encontram prefiguradas e pré-formadas, e portanto as íntimas essências da realidade estão em Deus como “ideias”, como “imagens precursoras” (assim diz Eckhart); assim como a percepção da realidade por parte do homem é uma incipiente reprodução passiva do mundo objetivo do ser; e assim como a obra de arte é reformada de harmonia com o modelo que vive no pensamento criador do artista, assim também a determinação da prudência constitui a antecipação, a prefiguração de todo o ato moral bom. A determinação da prudência é a “forma essencial extrínseca”
[11] por meio da qual o ato bom é o que é; só através desta pré-existente determinação o ato se torna justo, corajoso, disciplinado. A criação é o que é graças à harmonia com o pensamento criador de Deus; o conhecimento humano é verdadeiro em razão da sua harmonia com a realidade objetiva; a obra de arte é verdadeira e real em razão da sua harmonia com o modelo existente no espírito do autor. Semelhantemente, o ato livre do homem é bom na medida em que corresponder às determinações da prudência. Um ato prudente e um ato bom são, substancialmente, a mesma coisa; só se distinguem pelo lugar que ocupam na ordem da realização: o que é bom é prudente previamente.
A prudência
informa as outras virtudes; é ela que lhes dá a forma essencial intrínseca
[12]. Esta frase diz a mesma coisa de outra maneira. A “forma essencial extrínseca” do bem está na própria essência formada a partir daquele protótipo, padronizada a partir daquela pré-forma. A “forma essencial intrínseca” do bem é, por sua vez, aquele modelo substancialmente refigurado, aquela prefigura substancialmente reformada. E é assim que a prudência grava em todo o ato livre do homem o íntimo selo da bondade. A virtude moral é a modelação do querer e do realizar por meio da prudência
[13]. A prudência atua em todas as virtudes
[14]; e todas as virtudes participam da prudência
[15].
Os dez mandamentos de Deus encontram-se todos orientados para a
executio prudentiae[16], para a realização da prudência — eis uma frase que se tomou quase incompreensível para nós, os homens de hoje.
E todo o pecado é pecado contra a prudência. A injustiça, a covardia e a intemperança ferem em primeiro lugar as virtudes da justiça, da fortaleza, da temperança; mas depois, através de tudo, lesam a prudência
[17]. Todo aquele que peca é imprudente
[18].
Assim é pois a prudência origem, raiz, “mãe”, padrão, fio de prumo, piloto, forma primordial de todas as virtudes morais; ela atua em todas, encaminhando-as para a sua essência verdadeira; todas participam dela, e é graças a esta participação que são virtudes.
O bem essencial do homem — isto é, o seu verdadeiro ser humano — reside no fato de “a razão que se aperfeiçoa no conhecimento da verdade” modelar e informar interiormente o seu querer e a sua ação
[19]. Neste princípio fundamental de São Tomás de Aquino, está condensada toda a doutrina sobre a prudência; nele se torna claro o sentido fundamental de todas as ideias e conceitos que anteriormente citara e por meio dos quais fixa em pormenor a primazia da prudência.
[1] Prudentia dicitur genitrix virtutum, 3. d. 33, 2. 5.
[2] Cf. II, II, 47, 5 ad 3.
[4] Virt. comm. 12 ad 23.
[5] “Du caractère métaphysique de la théologie morale de Saint Thomas”, Revue Thomiste, ano 8 (1925), pág. 345.
[6] Cf., por exemplo, Merkelbach,
Summa Theologica Moralis (Paris, 1930), Vol. I, pág. 7. Causa estranheza verificar que o espanhol Francisco de Vitória, que no segundo quartel do século XVI renovou o estudo de São Tomás, no seu extenso comentário à
Secunda Secundae da
Summa Theologica, não reserve à representação da prudência senão um espaço desproporcionadamente diminuto; e que, cem anos mais tarde, o seu conterrâneo Johannes a Sancto Thomas, um dos mais conceituados comentadores de São Tomás, já nem sequer trate explicitamente da virtude da prudência. Sobre a teologia moral do nosso tempo, diz Garrigou-Lagrange: “Il est véritablement étonnant..., que la principale des vertus cardinales tienne si peu de place dans la science morale d’aujord’hui”. “Du caractère métaphysique de la théologie morale de Saint Thomas”, Revue Thomiste, ano 8 (1925) pág. 345.
[7] Virt. comm., 6; II, II 51, 2; Ver., 14, 16. Diz Santo Ambrósio, precisamente no seu livro sobre os deveres, que a justiça não serve de nada quando se está privado da prudência (
De officiis, I, 27). Baseia-se para isso em uma frase da Sagrada Escritura (Pv 17, 16) que, no entanto, talvez tivesse sido incluída apenas em uma antiga tradução. No mesmo capítulo do
De officiis encontra-se a seguinte afirmação:
Primus igitur officii fons prudentia est, a primeira fonte do dever é a prudência.
[8] II, II, 4, 5; Ver. 14, 6; Quol. 12, 22.
[9] Prudentia est completiva omnium virtutum moralium (II, II, 166, 2 ad 1).
Ab ipsa (prudentia) est... complementum bonitatis in omnibus aliis virtutibus (Virt. comm. 6).
[10] I, II, 64, 3. Virt. comm. 13.
[11] Sobre a noção de “padrão” como “forma essencial extrínseca” cf. PIEPER, Josef.
Die Virklichkeit und das Gute, Leipzig, 1935, pág. 25 s.
[12] Ver. 14, 5 ad 11; 3, d. 27, 2, 4, 3; cfr. 3, d. 27, 2, 4, 3 ad 2.
[18] II, II, 119, 3 ad 3; II, II, 141, 1 ad 2.
[19] Bonum hominis, inquantum est homo, est: ut ratio sit perfecta in cognitione veritatis, et inferiores appetitus regulentur secundum regulam rationis; nam homo habet quod sit homo per hoc quod sit rationalis. (Virt. comm. 9)