Um trintão, alérgico a compromisso, quebra a perna e vê-se forçado a passar um mês engessado, recluso no seu apartamento, sem outra distração que a de contemplar a vida dos vizinhos através dos binóculos.
Cada apartamento no prédio vizinho serve-lhe como prova de que a convivência entre homem e mulher é uma missão quase impossível.
Ciúmes, brigas conjugais, mulher que manda no marido e vice-versa, solidão, falta de comunicação... Naquele bairro mórbido, a vitrine captada em seus binóculos fala por si só.
A descoberta proporciona ao solteirão uma felicidade secreta: fornece-lhe argumentos diante dos pedidos de casamento da noiva. O silogismo é impecável: homens e mulheres não se entendem; o que começa com amor costuma terminar em ódio ou indiferença; ergo... o casamento é uma utopia.
O cúmulo da satisfação vem quando o solteirão vê com os próprios olhos a conclusão sinistramente lógica do seu raciocínio: um caixeiro viajante mata a digníssima, corta a pobre em pedacinhos com uma serra e enterra os restos no jardim do prédio.
Janela indiscreta não é apenas um dos melhores filmes de Hitchcock (desafio quem ainda não o viu a aguentar, sem sustos, os últimos dez minutos), mas é também uma sátira impiedosa ao matrimônio.
O curioso é que, apesar dos anos (1954), o longa tem uma atualidade surpreendente. Muitos jovens de hoje em dia são o “solteirão” de Janela indiscreta. Provavelmente, até você pode se ver retratado ali.
Você tem sua profissão. Vive confortavelmente instalado na casa dos seus pais ou, para ter mais liberdade, numa quitinete. Curte uns relacionamentos casuais e, munido da sua pós, atravessa a selva do mercado de trabalho. Por fim, para espairecer um pouco do redemoinho profissional, pesca, viaja, arruma hobbies...
Seu trigésimo aniversário está quase chegando (se é que já não passou). Você tem namorad@ (etern@ namorad@, que a essas alturas já é uma espécie de bicho de estimação). Talvez você até considere a possibilidade de uma família... Mas, sem pressa, como uma meta distante, um tanto abstrata, em que no fundo você não acredita muito...
Você tem um vago desejo de felicidade, que associa – sem muito entusiasmo – com vestes brancas, com uma lua de mel e um sobradinho geminado... Trata-se de uma meta difusa, que só se atinge depois de ultrapassar uma série de obstáculos: hipoteca, dívidas, carro, móveis, etc. Que preguiça!
E logo surge a televisão – a “janela indiscreta” – para servir a sua dose diária de violência machista... E é aí que a fome se junta com a vontade de comer. Por um lado, você tem pavor dessas tragédias gregas de roupão e bobs na cabeça: um aposentado de 67 anos mata a mulher a machadadas e depois se suicida; ou passa duas vezes com o carro por cima dela para garantir que fique bem morta... Tragédias que parecem irreais de tão sangrentas, mas que, por outro lado, lhe dão de bandeja motivos para pensar: “Céus, melhor ficar como estou... Essa história de casamento não é para mim”.
E para completar esse panorama, há ainda os seus parentes e amigos que se separaram mal puseram o pé fora da igreja... Um pepino enorme, temperado com pimenta das estatísticas do Ministério da Propaganda
[1] (perdão, do CIS
[2]) sobre o elevado número de separações.
Claro: você tem o exemplo dos seus pais, um casal unido, mas os dois estão na casa dos 60, já aposentados (ou quase). São de outra época, as circunstâncias mudaram. Não adianta muita coisa.
Não há nada de estranho em não querer casar, em ver aquela pessoa, que fala das maravilhas da sua vida conjugal, como um caso isolado ou como uma sortuda na loteria da vida.
Não há nada de estranho em achar que:
•
Amor é sentir-se à vontade em uma relação esporádica;
•
Casamento é uma prisão, um tédio, uma amolação;
•
Amor é liberdade e ação;
•
Casamento é uma coleção de abacaxis;
•
Amor é uma noite louca (homens); uma recordação romântica que se extingue suavemente com o tempo (mulheres)..., com uma relação isolada, intensa e fugaz (todos);
• E
casamento é frustração e fracasso.
Amor e casamento? Combinação impossível.