Capítulo 1
O que é a teologia do corpo?
Deus imprimiu na carne modelada sua própria forma,
de modo que até o que fosse visível tivesse a forma divina.
— Santo Irineu
Era uma deslumbrante noite estrelada. Um jovem casal, loucamente apaixonado, dirigiu pelo campo para encontrar um lugar isolado onde eles pudessem expressar seus desejos amorosos. Avistando um outeiro gramado, eles estacionaram à beira da estrada, tomaram um cobertor e se dirigiram ao longínquo lado da montanha.
Mal sabiam eles que estavam na propriedade de uma paróquia rural, e um velho monsenhor, tendo escutado uma movimentação, olhou da janela de sua casa paroquial, entendeu o que estava acontecendo e decidiu sair para uma breve “caminhada de oração”. Os jovens amantes, envolvidos como estavam um com o outro, nem se deram conta de que alguém havia se aproximado e estava agora à beira de seu cobertor. Ejetados de sua paixão por um “Com licença” alarmante, entretanto educado, eles ficaram ainda mais sobressaltados à vista de seu colarinho romano. Pensaram que ele fosse repreendê-los severamente, mas, ao contrário, o misterioso homem de preto olhou para o céu e perguntou, de modo inquisitivo: “Digam-me, o que isso que vocês estão fazendo
aqui tem a ver com...
as estrelas?”. Após uma pausa significativa, ele dirigiu-se de volta à casa paroquial, deixando os dois amantes perplexos ponderarem esta questão
[1].
São João Paulo II, a seu modo próprio, convida-nos a ponderar sobre a mesma questão em suas extensas reflexões sobre o “grande mistério” da nossa criação como homem e mulher, e o chamado dos dois a tornarem-se “uma só carne”.
As Audiências de quarta-feira
Quando Karol Wojtyla, o Cardeal Arcebispo da Cracóvia, veio a Roma em agosto de 1978 para ajudar a eleger um novo Papa, ele trouxe consigo um longo manuscrito de um livro que estava forjando em meio a orações por cerca de quatro anos. Estava quase completo, e ele desejava trabalhar nele, quando possível, durante o conclave. A página um trazia o título incomum de “Teologia do Corpo” (em polonês,
teologia ciala). As centenas de páginas que se seguiam continham talvez a mais profunda e contundente reflexão bíblica sobre o significado da nossa criação e redenção como homem e mulher até então articulada – profundos
insights místicos de um santo moderno que tinham o poder de mudar o mundo, isto é,
se aqueles
insights tivessem a oportunidade de alcançar o mundo.
Após a eleição do Papa João Paulo I, Wojtyla retornou à Cracóvia e completou seu manuscrito. Logo após este fato, para o assombro de todo o mundo, ele saiu do segundo conclave de 1978 como Papa João Paulo II. E sua “teologia do corpo” – apresentada como uma série de 129
[2] audiências de quarta-feira entre setembro de 1979 e novembro de 1984, em vez de ser publicada como um livro, tornou-se o primeiro grande projeto formativo de seu pontificado, estabelecendo o âmago da grande visão de São João Paulo II sobre o que significa ser humano.
Ainda assim, foi necessário algum tempo para as pessoas apreenderem o sentido do que São João Paulo II nos deu. Não foi antes de 1999, por exemplo, que o biógrafo Papal George Weigel descreveu a TdC para uma rede mais ampla de leitores como “uma das mais audaciosas reconfigurações da teologia católica em séculos” e “uma espécie de
bomba-relógio teológica preparada para explodir, com consequências dramáticas... talvez no século XXI”. Embora a visão do Papa sobre o corpo e o amor sexual tenha “apenas começado a moldar a teologia, a pregação e a educação religiosa da Igreja”, Weigel predisse que, quando isso acontecesse, iria “obrigar a um desenvolvimento dramático do pensamento sobre virtualmente todos os principais temas do Credo” (WH, pp.336, 343, 853).
Deus, sexo e o sentido da vida
O que poderia o corpo humano ter a ver com os artigos do Credo cristão? Questionar o significado do corpo nos inicia em uma jornada entusiasmante que, se for mantida, nos leva do corpo ao mistério da diferença sexual; do mistério da diferença sexual ao mistério da comunhão em “uma só carne”; da comunhão em “uma só carne” ao mistério da comunhão de Cristo com a Igreja; e da comunhão de Cristo com a Igreja ao maior mistério de todos: a eterna comunhão encontrada em Deus, entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo. É disso que falam os artigos do Credo.
O corpo não é apenas biológico. O corpo, como São João Paulo II desvela em grande detalhe, é também teológico. Ele conta uma impressionante história divina. E faz isso precisamente por meio do mistério da diferença sexual e do chamado dos dois a se tornarem “uma só carne”. Isso significa que sexo não se refere somente a sexo. A forma como compreendemos e expressamos nossa sexualidade aponta para nossas mais profundas convicções sobre quem nós somos, quem é Deus, o significado do amor, o ordenamento da sociedade e, por fim, o mistério do universo. Logo, a TdC de São João Paulo II é muito mais que uma reflexão sobre sexo e amor conjugal. Por meio deles, leva-nos à “redescoberta do significado de toda a existência... do significado da vida” (TdC 46,6).
Cristo ensina que o sentido da vida está em amar como Ele ama (cf. Jo 15,12). Um dos principais insights de São João Paulo II é que Deus inscreveu esta vocação, de amar como Ele ama, exatamente em nossos corpos ao nos criar homem e mulher, e chamar os dois a tornarem-se “uma só carne” (cf. Gn 2,24). Longe de ser uma nota de rodapé na vida cristã, o modo como compreendemos o corpo e a relação sexual “se relaciona com toda a Bíblia” (TdC 69,8). Ele nos lança na “perspectiva do Evangelho inteiro, de todo o ensinamento, mesmo de toda a missão de Cristo” (TdC 49,3).
A missão de Cristo é restaurar a ordem do amor em um mundo seriamente distorcido pelo pecado. E a união dos sexos, como sempre, está na base da “ordem humana do amor”. Portanto, o que aprendemos na TdC de São João Paulo II é obviamente “importante no que se refere ao matrimônio”. Entretanto, é “igualmente essencial e válida para a hermenêutica do homem em geral: para o problema fundamental da compreensão deste e da autocompreensão de seu ser no mundo” (TdC 102,5).
Você está buscando o sentido da vida? Você está buscando compreender as questões fundamentais da existência? Nossos corpos contam a história. Mas nós devemos aprender a “ler” esta história adequadamente, e isto não é fácil. Um grande número de obstáculos, preconceitos e medos podem nos tirar do trilho enquanto buscamos entrar no “grande mistério” da nossa corporeidade como homem e mulher. Para as pessoas religiosas, a tentação mais comum é a de rejeitar o corpo como “não-espiritual”.
1] Meu muito obrigado ao Monsenhor Lorenzo Albacete por partilhar uma versão desta história comigo quando eu estava na pós-graduação. Ela é informalmente baseada em um encontro real que aconteceu entre um Padre Italiano (Monsenhor Giussiani) e alguns amantes fascinados pelas estrelas.
[2] João Paulo II, na verdade, dividiu seu manuscrito em 135 audiências. Entretanto, parte do conteúdo de suas reflexões sobre o Cântico dos Cânticos foi considerada muito ‘delicada’ para o formato de uma audiência de quarta-feira, então ele condensou em quatro 10 audiências daquela sessão, assim apresentando apenas 129. Para um tratamento das audiências não proclamadas, veja meu livro
Heaven’s Song (Ascension Press, 2008).