Nas palavras contidas no título deste livro (cf. Mc 4,27), o Senhor faz notar que a semente da vida cristã que Ele próprio semeou nas nossas almas cresce e desenvolve-se para além do que somos capazes de perceber. Naturalmente, isso não acontece contra a nossa liberdade ou à margem da nossa liberdade, mas precisamente a partir dela. A ação de Deus deve ser secundada, mas os efeitos dessa ação livre são muito mais profundos do que cada um de nós poderia produzir ou mesmo esperar. A graça transforma o homem em Cristo, “sem que se perceba”, mas não sem a sua livre cooperação.
Nessas páginas, pretendo abordar alguns princípios que me parecem relevantes na tarefa da formação cristã, com o desejo de que possam servir de orientação para aqueles que se responsabilizam pela formação de outras pessoas. Naturalmente, o que se expõe pode aplicar-se mutatis mutandis a quem recebe essa formação, mas o texto é escrito pensando primariamente na formação de outras pessoas.
Os três primeiros capítulos, de natureza mais teórica, tratam de algumas noções fundamentais sobre formação, liberdade e fidelidade, seguidas de outras considerações sobre vontade e voluntarismo, para terminar com a revisão de algumas ideias sobre o conceito de virtude.
O objetivo eminentemente prático dessas páginas será percebido sobretudo a partir do quarto capítulo, no qual são propostas quatro chaves para a formação.
Recorro de modo especial aos ensinamentos de São Josemaria, que como mestre de vida cristã realizou um extenso trabalho de formação entre fiéis comuns, chamados a santificar-se nos mais variados ambientes da sociedade do nosso tempo.
Este primeiro capítulo reflete sobre a formação e a liberdade, e como se articulam estes conceitos. Além disso, dado que a formação é um processo dinâmico que se projeta para o futuro, concluímos com algumas considerações sobre a virtude da fidelidade. Com efeito, pode-se dizer que um indicador da qualidade da formação de uma pessoa é precisamente sua capacidade de integrar os diferentes acontecimentos e mudanças pelas quais passa ao longo do tempo nos princípios que assumiu como determinantes da sua própria existência.
1. Formação
“Todos os fiéis, seja qual for a sua condição ou estado (...), são chamados por Deus cada um por seu caminho à perfeição da santidade pela que o próprio Pai é perfeito”
[1]. O objetivo do cristão é a santidade, a plenitude do amor a Deus e aos outros por Ele. É uma meta que só alcançará de modo definitivo na contemplação eterna de Deus, mas é também uma tarefa que deve realizar nesta vida.
O caminho para a santidade é um caminho de configuração com Cristo e, portanto, algo que só Deus pode fazer na alma com a sua graça. É o Espírito Santo que forma Cristo em nós, quem
nos forma de acordo com que Ele espera que sejamos. À sua ação podemos chamar
formação. Estar bem formado é adquirir “a imagem de Jesus em que se converte o homem santo”
[2]. Assim, São Josemaria fazia notar aos que atendiam direção espiritual a importância de ter “presente em todo momento que não sois nem o modelo nem o modelador. O modelo é Jesus Cristo; o mediador, o Espírito Santo, através da graça”
[3]. Mas, como nossa correspondência é indispensável, é lógico que pensemos na formação também como um processo que depende de nós e que temos de fazer bem. Portanto, interessa-nos refletir sobre ela, sem esquecer que, ao realizar essa tarefa não somos mais que instrumentos da graça de Deus.
O que é a formação? Em que consiste? Às vezes pensamos nela como um receber conceitos e ideias sobre como deve ser a nossa vida. Assim, uma pessoa com boa formação seria uma pessoa que tem um bom conhecimento da vida cristã, ainda que de fato não viva de acordo com o que sabe. Não nos basta um conceito desse tipo. A recepção e assimilação intelectual de conceitos é, certamente, parte da formação, mas não se identifica com ela. A formação não é só dar ou receber
informação.
De modo simples e gráfico, poderíamos dizer que formar é
dar forma. Não é dar cor, nem envernizar; é dar forma. Não tem a ver com
aparecer, mas sim com
ser. Formar-se é dispor-se estavelmente a atuar bem. O que nos dá forma são as qualidades estáveis, as virtudes, que se adquirem quando o
fazer vai transformando o
ser. A pessoa bem formada é a que foi adquirindo uma conaturalidade com o bem. Isso é importante, porque é precisamente o que procuramos: não basta
fazer o bem, mas sim que queiramos
ser bons
[4]. O objetivo, portanto, é que queiramos fazer o bem porque somos bons, porque estamos constituídos assim, porque para nós é natural, a expressão normal do nosso modo de ser. Isto é, aspiramos fazer o bem com soltura, sem constrangimentos nem rigidezes. Só quando o conseguirmos seremos realmente bons e poderemos dizer que estamos formados.
Nessa perspectiva, pode-se compreender que a pessoa bem formada não bem caracterizada como aquela que faz sempre o que é bom, e menos ainda dizendo que sempre se ajusta a umas regras comportamentais. Só é uma pessoa bem formada aquela que faz o que é bom porque quer de verdade
[5]. Ou melhor: está bem formada aquela pessoa que, ao fazer o que quer de verdade, faz o que é bom, porque seu querer se identifica com o de Cristo. Não é suficiente ajustar-nos a umas regras de atuação, por melhores que sejam; nosso desafio e nosso desejo é conseguir fazer o bem quando fazemos o que queremos, quer dizer, desejamos que essas boas normas sejam nossas. Isso é, de fato o que expressa a célebre frase de Santo Agostinho “
dilige et quod vis fac”
[6]. Com isso, deveria ficar clara razão de ser impossível um conflito entre a fidelidade – ou a sinceridade, a castidade, a justiça, ou qualquer outra virtude – e a liberdade.
Nisso que foi exposto, palpitam as conhecidas expressões de São Josemaria com as que ensinava que devemos fazer as coisas “porque queremos de verdade, que é a razão mais sobrenatural”
[7]. Essas palavras expressam perfeitamente, de modo gráfico, o que quero dizer:
porque é meu dever, porque está assim disposto pela autoridade, porque me sinto obrigado..., podem ser boas razões, mas não são a última razão. A razão mais profunda para fazer o bem, a mais humana e a mais sobrenatural, é “porque quero livremente”, quer dizer, “porque afirmo o bem com autonomia, porque o reconheço como bom”. São Tomás de Aquino chega a dizer que quem evita o mal só porque Deus o proíbe, atua como um escravo; atua como livre – como
liber, filho
[8] – unicamente quem evita o mal porque é mal
[9], quer dizer, aquele a quem o que é mau lhe parece inconveniente em si mesmo – e não só porque é proibido –; e simplesmente, não quer fazê-lo.
Naturalmente, ao amar o bem, amamos o que está relacionado a ele e, portanto, as mediações que nos ajudam a descobrir e a amar a vontade de Deus, o bem. Entre elas está a autoridade e os deveres que esta dá a conhecer com suas disposições. Mas a raiz desse amor é sempre sua relação com o bem.
2. Formação e liberdade
Na mensagem de São Josemaria, é dada uma notável relevância à formação, à liberdade e ao fato de que se requerem mutuamente. Isso se manifesta também na própria vida da instituição que fundou: “Em organizar e oferecer formação cristã, esgota-se em certo sentido a atividade do Opus Dei e começa a livre e responsável ação pessoal de seus fiéis”
[10]. Dito de outro modo: a Obra
simplesmente forma seus fiéis e outras pessoas que se aproximam de seus apostolados. Esse modo de atuar outorga enorme relevância à liberdade, porque propõe que haja muitas pessoas que se movam na sociedade com liberdade, com seu próprio critério, sem necessidade de que alguém fique lhes dizendo o que fazer. De fato, dizia São Josemaria que “no humano, quero deixar-vos como herança o amor à liberdade e o bom humor”
[11]. O que está subentendido nesse modo de atuar não é exclusivo do Opus Dei; pode ser válido para muitas outras instituições na Igreja e, em geral, para qualquer cristão.
[1] Concílio Vaticano II, Const. Dogm.
Lumen gentium, n. 11.
[2] São Josemaria,
Caminho, n. 56.
[3] Carta
8-VIII-1956, n. 39, citado em E. Burkhart-J. López,
Vida y santidad en la enseñanza de san Josemaría, vol III, Rialp, Madri, 2013, p. 595. A partir de agora, citaremos este volume como Burkhart-López.
[4] O adjetivo
bom está bastante depreciado e chegou a fazer-se quase sinônimo de bondoso. Por isso, convém indicar que aqui é preciso entender ser
bom no seu sentido grandioso, de plenitude humana. Pelo mero fato de ser homens ou mulheres, estamos chamados a ser
bons, pessoas que amam o bem, que o procuram e – com as limitações próprias da nossa condição – procuram pô-lo em prática. Além disso, por ser cristãos, sabemos que essa procura do bem é procura da comunhão com Deus Pai, Filho e Espírito Santo, e que nessa tarefa contamos com a graça de Deus.
[5] Original: “le da la gana”. (N. T.)
[6] In epistolam Ioannis ad parthos, tractus, 7,8: “ama e faz o que queres”.
[7] Essa ideia, expressa de modos diferentes, pode ser encontrada em muitíssimos de seus escritos, por exemplo, em
É Cristo que passa, nn. 1. 17, 184.
[8] São Josemaria captou muito bem a relação entre a liberdade e a filiação divina (cf., por exemplo,
Amigos de Deus, 26). A liberdade é uma dessas realidades (como a oração ou a alegria) que costumava indicar como próprias “dos filhos de Deus”.
[9] Cf. São Tomás de Aquino,
Comentario a Epístola II aos Coríntios, cap 3, lect. 3
“Ille ergo, qui vitat mala, no quia mala, sed propter mandatum domini, no est liber; sed qui vitat mala, quia mala, est liber”.
[10] E. Burkhart,
Actividad del Opus Dei, em J. L. Illanes (coord.)
Diccionario de San Josemaria Escrivá de Balaguer, Editorial Monte Carmelo – Instituto Histórico San Josemaria Escrivá de Balaguer, Burgos 2013, p. 67.
[11] Carta 31-V-1954, n. 22 (citado em A. Vázquez de Prada,
O Fundador do Opus Dei, volume III, São Paulo XXXX, p. X.