Tratado Primeiro
Sermão sobre o Evangelho de Lucas 19,41-42
Ut appropinquavit Iesus, videns civitatem, flevit super illam. Dicens: “Si cognovisses et tu” – Aproximando-se ainda mais da cidade, Jesus contemplou e chorou sobre ela, dizendo: “Oh! Se tu conhecesses”.
Se todos os fios de nossos cabelos estão contados por Deus, segundo lemos no Evangelho, quanto mais não estão contadas as palavras da sabedoria de Deus, e quanto não devem ser louvadas pelos anjos! Desse modo, quem poderá dizer o quanto não devem ser estimadas pelos homens, para proveito dos quais foram ditas? Seríamos, assim, muito dignos de repreensão se não as considerássemos com toda atenção, pois tudo o que fez e disse Cristo nosso Senhor foi para nos instruir. Mas porque as forças humanas são poucas para isso, faremos o que costumam fazer aqueles que desejam aprender bem um trabalho, que é procurar o melhor mestre desta arte, para que a sabedoria deste supra as limitações do discípulo. Assim, para discorrermos agora sobre as quatro coisas que nos propõe o tema, recorreremos a quem as compreenda melhor, para que com a sua ajuda as falhas da nossa ignorância possam ser supridas.
Veremos, pelas palavras do versículo, que o Senhor se aproximou, viu a cidade, chorou sobre ela e falou. Por meio destas quatro coisas feitas por nosso Redentor para nosso conhecimento e para nos dizer: si cognovisses et tu – se também tu conhecesses, poderíamos encontrar o verdadeiro conhecimento de nós mesmos, se o buscássemos bem. Por isso, é necessário primeiro ut appropinquet Christus – aproximar-se de Cristo, porque longe da sua graça e da sua luz não podemos conhecer a nós próprios nem a Ele. Não menos importante é o segundo ponto, ver, conforme nos ensina o profeta Isaías: Caeci intuemini, et videte – Cegos, olhai e vede (Is 42,18). Em terceiro lugar, diz o Senhor por outro profeta: Expergiscimini ebrii et flete – Despertai, ó ébrios, e chorai (Jl 1,5), dando a entender quão necessárias são as lágrimas àqueles que estão como que embriagados pelas coisas temporais e transitórias. Em quarto lugar, vemos que o Senhor falou, para que compreendêssemos que o mesmo nos convém fazer, conforme experimentou o profeta Davi: Quoniam tacui, inveteraverunt ossa mea – Enquanto me conservei calado, mirraram-se-me os ossos (Sl 31,3).
Voltando ao primeiro ponto, a quem poderíamos recorrer que soubesse mais sobre se aproximar de Deus do que a sua bendita Mãe, que o concebeu em sua mente pela fé, em seu coração pelo amor, e em seu ventre, vestindo-o com a sua carne para a nossa redenção? Quem como ela soube olhar, que fez o Senhor olhar para a humildade de sua serva? Quem como ela soube chorar, que foi transpassada por tantas espadas de dor; e quem como ela soube falar, que disse: Minha alma glorifica ao Senhor, porque realizou em mim maravilhas (Lc 1,46.49)? E, finalmente, quem como ela soube falar, de modo que ao dizer fiat mihi secundum verbum tuum – faça-se em mim segundo a tua palavra (Lc 1,38), tornou-se filha do Pai, mãe do Filho e esposa do Espírito Santo? Não busquemos outro mestre, pois outro como ela não há entre as meras criaturas, mas supliquemos-lhe humildemente que nos ajude a compreender e por em prática as palavras do versículo do tema, recitando piedosamente: Ave-Maria.
Ut appropinquavit Iesus, videns civitatem, ut supra. É tão necessário, para quem deseja conhecer, primeiro aproximar-se de Deus, como para quem deseja ver, primeiro aproximar-se da luz; e como a verdadeira luz é Cristo nosso Senhor, na qual se vê os santos nos céus e os justos na terra, convém acima de tudo que nos esforcemos por ut appropinquet Christus – aproximarmo-nos de Cristo. Daí, podemos suspeitar que, quando não temos o conhecimento que desejamos, quod adhuc non appropinquavit Christus – ainda não estamos próximos de Cristo, ou, se o alcançamos por graça, não estamos tão próximos dele a ponto de nos reconhecermos nele; e como isto é para nós muito importante, convém que nos aproximemos dele, para que Ele se aproxime de nós. Pois assim está escrito: Appropinquate et appropinquabit vobis – Aproximai-vos de Deus, e Ele se aproximará de vós (Tg 4,8). O quanto isso é importante para compensar a falta de conhecimento de si próprio, bem se vê pelo que se figura em José, que, estando no Egito e não sendo reconhecido por seus irmãos, lhes diz: Accedite ad me; et cum accessissent prope: ego sum, ait, frater vester, quem vendidistis in Ægyptum, isto é: Aproximai-vos, e eles aproximaram-se. Eu sou José, vosso irmão, que vendestes para o Egito (Gn 45,4). Oh! como nos mostram estas palavras quem somos! Pois o nosso José, nosso irmão e nosso bem, não sendo reconhecido por nós nos benefícios recebidos, ordena-nos que nos aproximemos dele, e quando estamos perto, diz-nos: Sou vosso irmão, que vendestes para o Egito. De modo que, para dar-se a conhecer, ordena primeiro que nos aproximemos, e, quando próximos, diz-nos quem Ele é, dizendo-nos que é aquele que vendemos para o Egito, para mostrar a nossa maldade e a traição que cometemos contra Ele. Isto, percebem melhor os que estão mais próximos, porque recebem mais luz para enxergar melhor a sua miséria, assim, quanto à primeira palavra, muito nos convém seguirmos o conselho do profeta que diz: Accedite ad eum et illuminamini, que significa: Voltai-vos para o Senhor e sereis iluminado (Sl 34,6).
No que se refere ao segundo ponto, diz-se que nosso Redentor olhou para a cidade, para nos mostrar que devemos olhar para a cidade da nossa alma com as suas obras, que são seus habitantes. Para o que não encontraremos outro remédio senão o que o Senhor usou para curar o cego. Pois, segundo o que diz o Evangelho, Ele cuspiu na terra, fez lodo e o pôs nos olhos do cego (Jo 9,6). O mesmo deve fazer quem deseja esta visão espiritual, ou seja, pegar o lodo das nossas misérias e pô-lo sobre os nossos olhos, vendo como nada somos, e assim alcançaremos a luz espiritual do conhecimento de si próprio que buscamos. E para que o encontremos mais facilmente, ouçamos atentamente o que o rei Davi nos diz; pois ele parece ter olhado tão atentamente para as obras desta cidade que, por meio do que dela sente, pode-se conhecer muito do que nela há.
Diz o profeta: Vidi iniquitatem et contradictionem in civitate, que quer dizer: Vejo iniquidade e contradição na cidade (Sl 54,10). Oh! quão evidente é a iniquidade da cidade da nossa alma! Pois, se olharmos para o seu princípio, na iniquidade foi concebida. E o que é a iniquidade e o pecado, senão o nada? Pois neste nada está a origem da cidade, e o mesmo nada preenche o seu meio, pois o próprio profeta diz: Diante de vós minha vida é como um nada (Sl 38,6). E o mesmo nada revela-se em seu fim, conforme está escrito: Quando se lhe for o espírito, ele voltará ao pó, e todos os seus projetos se desvanecerão de uma só vez (Sl 145,4). Oh! quão nada somos! Quem se terá em alguma conta, vendo que nem sequer sabe como foi criado, nem como lhe foi dado o ser, nem quando o perderá, nem o que é a sua alma ou o que nela há, nem qual é o seu estado? Quem não reconhecerá o seu nada, olhando para as misérias corporais, a corrupção da carne, a sujeição à fome, ao frio e às doenças?
(...)