Primeira parte
O construtor de igrejas
Ora se escondia nos eremitérios,
ora se ocupava piedosamente na reconstrução das igrejas
Santo Antonino de Florença
O convalescente
Certa manhã, há 700 anos, na cidade de Assis, um rapaz, que começava a restabelecer-se depois de uma grave e prolongada doença, acordou do seu sono noturno.
As portas da janela do quarto ainda estavam fechadas; mas lá fora, apesar de ser ainda cedo, a luz era já muito clara, e há muito tempo que o sino tinha tocado para a primeira missa, na igreja de Nossa Senhora do Bispado, precisamente em frente. Um forte raio de sol conseguiu entrar no quarto, apesar de fechado, pelas fendas das janelas de madeira.
Esse raio matinal era bem conhecido do rapaz: tinha-o visto todos os dias, ao acordar, durante a convalescença. Dentro de pouco tempo, sua mãe entraria para abrir a janela e a luz da rua jorraria no quarto com uma intensidade ofuscante. Em seguida, traziam-lhe o café da manhã e faziam-lhe a cama – pois ele costumava mudar-se para o outro lado do enorme leito, enquanto punham em ordem o lado em que estivera deitado – e depois poderia ficar ali estendido, um pouco fraco e cansado ainda, mas feliz, e contemplar o lindo céu de outono, azul e sem nuvens, e ouvir cair com estrépito a água suja que os habitantes dos prédios vizinhos atiravam para a rua. Mais tarde, o próprio sol se viria mostrar incidindo primeiro na parede da direita, e depois no meio do quarto sobre as lajes de pedra; quando toda a sua luz atingisse a cama, teria chegado a hora da refeição do meio-dia. Terminada esta refeição, viriam outra vez fechar-lhe a janela; e, na semi-obscuridade suave e recolhida do quarto, ele dormiria a sesta. Quando acordasse e lhe devolvessem a luz, o sol teria desaparecido da janela; mas, erguendo-se na cama, o convalescente poderia ver ao longe, para lá do vale imenso, as montanhas velarem-se de leves sombras azuladas e, depois, incendiadas no vermelho sangrento das tardes de outono.
E logo que a noite descesse rapidamente, ele ouviria o ruído familiar das ovelhas que regressavam, balindo, aos seus estábulos, as canções e os risos dos pastores que voltavam do campo. Com que prazer tinha ele ouvido todas as tardes essas delicadas e comoventes canções populares úmbricas que ainda hoje afloram aos lábios do povo, e cujas notas lentas, estranhamente expressivas, enchem a alma de uma tristeza suave. Finalmente, todas as canções se extinguiriam e seria noite. Por cima dos montes longínquos surgiria primeiro uma única estrela, enorme; e a sua aparição indicaria que era tempo de fechar a janela e de acender, no quarto, aquela lâmpada que o doente se habituara a deixar acesa até de madrugada, durante as intermináveis noites de febre em que horríveis pesadelos lhe perturbavam o sono.
Nessa manhã, no entanto – lembrou-se de repente –, as coisas não se iam passar da mesma maneira, pois era aquele o dia que tinha pensado levantar-se pela primeira vez. E como ele se alegrava com a ideia de entrar nos outros quartos da casa, para ver e acariciar outra vez todos os objetos que não via há tanto tempo e que, por pouco, ia perdendo para sempre! Também estava resolvido a descer ao térreo, à loja do pai, para ver entrar os clientes e até talvez para dar uma ajuda aos empregados que desdobravam e mediam as pesadas peças de veludo, de brocado ou de belo tecido toscano.
Ora, enquanto o rapaz se entrega assim aos seus mais belos sonhos, abre-se a porta. Como em todas as outras manhãs, desde o princípio da doença, é a sua mãe que entra. E, mal esta abriu a janela, ele verifica com alegria que, além do almoço, a mãe lhe trouxe um embrulho com roupa.
“Mandei-te fazer uma roupa nova, Francisco” – diz ela, pousando o embrulho ao pé da cama.
E, depois de Francisco ter acabado de comer, ela debruça-se à janela, enquanto o filho se veste.
“Que linda manhã! – ela exclama – como o sol brilha! Sou capaz de distinguir todas as casas de Bettona, como se o vale que nos separa tivesse encolhido; entre as vinhas, Isola Romanesca tem toda a aparência de uma verdadeira ilha no meio de um rio. E de todas as chaminés sobem, direitas e nítidas, pequenas nuvens de fumo – como subiram do turíbulo, ainda há pouco, na igreja. Ah! Meu Francisco, em manhãs como esta parece-me que o céu e a terra são tão belos como uma igreja em dia de festa, e que toda a criação se une para louvar e agradecer a Deus!”.
Francisco não dá resposta. Mas daí a pouco murmura, já vestido com a roupa nova: “Meu Deus, como estou fraco!”.
Mudando imediatamente de tom e de assunto, a mãe acrescenta: “É sempre assim depois de uma doença! Enquanto estamos deitados, pensamos que somos capazes de fazer tudo; mas mal pomos os pés no chão, damos conta do nosso estado de fraqueza eu sei bem o que isso é, meu filho, porque também já o senti; e foi por essa razão que tive o cuidado de te trazer uma bengala”.
Vai buscar, ao patamar, uma linda bengala envernizada com cabo de marfim. E, apoiando-se no braço da mãe, Francisco sai do seu quarto de doente.
***
Há meia hora que Francisco atravessou, sozinho, a soleira da casa paterna. A mãe e ele deram primeiro uma volta em todas as divisões da casa. Entraram na loja, onde todos os empregados os saudaram alegre e afetuosamente: “Bom dia, Senhora Pica! Bom dia e boas melhoras, senhor Francisco!”. Mas Francisco sentiu necessidade de ir mais longe do que a casa e a loja: precisava sair, para saudar, por sua vez, os campos e as vinhas, e o céu livre, e a perspectiva do fértil e imenso vale...
Ei-lo agora, de pé, fora das portas de Assis, na estrada que, rente ao monte Subásio, conduz a Foligno! Ele aí está, de pé, apoiado à bengala, a olhar... Na sua frente estende-se uma vinha: os pâmpanos unem as árvores umas às outras e os pesados cachos azuis pendem por baixo das folhas largas; está chegando a estação das vindimas, é a altura de guardar o vinho nas adegas. Mais abaixo, na ladeira íngreme, começam os olivais que se desdobram por todo o vale e o cobrem com uma espécie de manto de seda cinzenta com reflexos prateados. Aqui e acolá sob um véu de nuvens, brilham casas branquinhas, as mais distantes das quais parecem mais pequenas que uma pedrinha.
Francisco olha para tudo isto e, no entanto – coisa estranha – nada vê. Foi-se aquela alegria desbordante que antigamente sentia diante do espetáculo das cores suaves da paisagem e do perfil dos montes recortando-se no azul do céu. É como se o coração, que até ali tinha batido jovem e forte dentro do seu peito, tivesse envelhecido de repente; e ele tem a impressão de que nunca mais, neste mundo, sentirá prazer na contemplação das coisas. O sol parece-lhe quente demais. Vai abrigar-se na sombra de um muro. Mas a sombra, por sua vez, parece-lhe muito fria, e volta a aquecer-se ao sol. A descida que acaba de fazer cansou-lhe os joelhos. Tem fome, além disso, e surpreende-se a sonhar com um bom jantar, com um copo de vinho... Sente-se invadido pelo terror quando pensa, de repente, que a sua juventude acabou; que as coisas que na sua ideia sempre o alegrariam deixaram de lhe dar prazer; que tudo o que ele considerou como um tesouro que nunca lhe poderiam roubar – a luz do sol, o céu azul, os campos verdejantes, tudo aquilo a que tinha aspirado, durante os dias e as noites da doença, tão amargamente como um rei no exílio aspira ao seu antigo reino, tudo o que agora lhe era devolvido – se desfaz ao contato das suas mãos, se quebra e se reduz a cinzas – tal como as palmas do Domingo de Ramos se queimam para se transformarem nas cinzas que o sacerdote, no primeiro dia da quaresma, espalha sobre as cabeças dos cristãos, com estas palavras, tão tristemente verdadeiras: “Lembra-te, ó homem, que és pó”. Pó, todas as coisas não são mais do que pó e cinzas, corrupção e morte, vaidade das vaidades.
***
Por muito tempo Francisco fica assim de pé, com o olhar perdido e vago: é como se visse toda a sua existência murchar diante dos seus olhos. Depois, volta-se lentamente e, apoiando-se na bengala, regressa a Assis.
Chegou para ele aquele dia em que o Senhor nos diz: “Semearei a tua estrada de espinhos” – esse dia em que uma mão misteriosa escreve, na parede da sala do festim, palavras de morte.
Mas, como todos os recém-convertidos, o rapaz não se lembra menos das faltas alheias que das suas. Porque, depois de se ter apercebido da mudança que se operara nele, o seu pensamento dirige-se logo para os amigos com quem tantas vezes ali viera, e deixou de contemplar o admirável espetáculo. “Como são insensatos no seu amor pelas coisas transitórias” – diz consigo mesmo, com um certo sentimento de superioridade, enquanto se apressa a retomar o caminho da casa paterna.