Introdução
Quem leu as obras precedentes de M. Delage (Robert de Langeac) não tem necessidade de introdução. Lá o autor lhe inspira confiança; na esteira de um tal mestre, caminha-se de bom grado.
O leitor que com ele trave conhecimento agora, pela primeira vez, arrisca-se a ser confundido. R. de Langeac não está segundo a moda. Fala-vos do “Bom Deus”
[1], como as nossas avós. Para ele, o mundo atual parece inexistente. Aos olhos voltados para o universo, para o compreender e conquistar, opõe os seus olhos baixos. Ao encontro de uma aspiração para realizar o homem em todas as suas dimensões e em plenitude, fala-vos tranquilamente, mas com insistência, de renúncia, e de renúncia absoluta.
Durus est hic sermo. Essa palavra é dura…
Esta palavra é dura, sabemo-lo bem. Sabemos, também, que a rebelião da natureza é muito antiga; o texto citado nos faz ouvir em recusa da palavra do próprio Cristo, em recusa d'Aquele que é a Palavra, Deus o Verbo.
O bom M. Delage não é duro senão porque, por meio dele, discípulo fiel, fala o Mestre. Porque a palavra evangélica é sempre válida para a nossa época. Como aos primeiros ouvintes galileus, Cristo repete aos homens de hoje: “Se alguém quer me seguir, renuncie a si próprio, tome a sua cruz e venha após mim”. E ainda: “Que serve ao homem ganhar o universo, se perder a sua alma?”
[2].
Dimitte omnia et invenies omnia[3]. Como prêmio de uma renúncia universal e absoluta, como prêmio de uma verdadeira morte, de uma morte que muitas vezes parece uma agonia interminável, uma vida nova deve manifestar-se. É a vida de Deus em nós, a Caridade-Amor. Tão depressa brota suavemente, como se lança com impetuosidade. A alma, estabelecida nesta nova vida e como que introduzida numa região nova, vê com novos olhos, ama com um novo coração: vê com a Luz de Deus, ama com o Amor de Deus. E, portanto, tudo o que Deus ama, e à maneira divina. Desde então, este homem que disse um “não” categórico a tudo, toma lugar na empresa criadora; a sua alma liberta não subjuga o mundo aos seus caprichos; ele passa a fazer obra leal que respeita as intenções divinas. Canta em seu coração, novo Francisco de Assis, e solta mil vozes para cantar com ele o cântico das criaturas.
***
As notas recolhidas neste opúsculo auxiliarão a alma no seu esforço de desprendimento. Porque aquele que fala é mais que um teórico, é um testemunho.
Antes de vós e por vós, empreendeu ele a penosa caminhada. Antes de vós e por vós, ouviu, durante a noite, o misterioso murmúrio, sinal da Presença; esteve inundado de Luz e de Paz, a ponto de ser por elas atormentado e arrebatado. Frequentemente o deixa perceber ou, mesmo, o declara expressamente, como uma mensagem de esperança que sustenta a nossa marcha.
“O botão de rosa deve abrir-se. Depois do Inverno vem a Primavera. Ele está muito perto de vós, apesar de o não sentirdes.” Uma intimidade abre-se para vós e logo vos envolve.
M. Delage conheceu esta união desconcertante para a nossa fraqueza humana. A sua vocação, a sua graça particular consistiu em elevar e conduzir a essa união, outras almas sacerdotais e religiosas. Foi com plena consciência da sua vocação especial que ele se devotava e orava por estas almas chamadas à intimidade divina, “almas interiores”, “almas de oração”, almas porventura longínquas e desconhecidas que ele sabia, misteriosamente, estar, apesar de tudo, confiadas por Deus. Esta perpétua solicitude, atravessando a sua alma límpida de criança, inspirou-lhe este hábito de que nos fez confidência: “Todas as manhãs ao levantar, depois de me ter feito abençoar pela Virgem Santa, e todas as noites ao deitar-me, abençoo as almas das quais Deus pediu que me ocupasse”.
Não pertencereis, leitores, ao número dos que, tomando este livro e meditando-o, tentareis tornar-vos por vosso turno, “almas interiores”, “almas de oração”, das que os nossos tempos tão imperiosamente necessitam.
Perto de Deus, esperamo-lo, a intercessão de M. Delage prolongar-se-á na linha da sua vocação. Que a sua bênção vos obtenha, pois, a coragem, a perseverança, a posse da verdadeira Vida, para uma melhor realização da obra de Deus, para sua única Glória.
Ano Mariano de 1954, 2 de Fevereiro.
Discipulus
A vida interior
A vida interior é uma comunhão consciente e constante com o ato pelo qual Deus se conhece e se ama. É uma participação na própria felicidade de Deus, da qual nos dá como um reflexo, quer em todas as faculdades, quer apenas nas faculdades superiores, quer mesmo, unicamente, nas maiores alturas da alma.
Meu Deus, tu estás no fundo da minha alma. Se eu soubesse ir até esse ponto, encontrar-te-ia. Quando será isso? No fundo de mim, estás tu. Liberta-me, recolhe-me, isola-me, atrai-me, transforma-me, toma-me. Faz-me entrar em ti; faz-me ver com os teus olhos; ver-te; amar com o teu amor; amar-te; sentir a tua felicidade; saborear-te; permanecer em ti, para te ver, amar, bendizer e louvar para sempre.
A vida interior é um movimento contínuo e consciente da alma que se volta para Deus presente nela por Jesus Cristo Nosso Senhor, e se esforça por se unir a Ele, possuí-lo e alegrar-se n’Ele.
Consiste em sermos conduzidos pelo interior, em sermos alimentados de Deus pelo próprio Deus e sempre no mais íntimo da alma. Mas também é preciso, na medida do possível, deixarmo-nos conduzir e alimentar pelo exterior.
Tender para a união divina, sem aspirar a ela.
Permanecer dócil nas mãos de Deus, não se prender a nada. Absolutamente a nada, que não seja Ele. Não nos ocuparmos senão das coisas com as quais Ele quer que nos ocupemos e na medida em que Ele o quiser. Procurar o que mais lhe agrada, seja onde for, sempre e prontamente. É a verdadeira liberdade e é, também, a alegria e a paz. É, ainda e sobretudo, o verdadeiro amor. Pode-se chegar a atingir esta união. Santa Teresa definiu-a: “uma disposição pura e desprendida de todas as coisas da terra, em que já não existe nenhuma tendência contrária à vontade de Deus, em que o espírito e o coração estão conformes a esta divina vontade, libertos de tudo, totalmente ocupados em Deus. Em que não há o menor traço de amor-próprio, nem de nenhuma coisa criada”. Que programa! Por que não o adaptar? Por que não tentar humilde, mas resolutamente, realizá-lo? É verdade que é superior às nossas forças, mas Deus é bom e terá piedade da nossa fraqueza, ficará comovido com os nossos esforços e estender-nos-á a mão.
Adveniat regnum tuum[4]. A vida interior propriamente dita pode considerar-se como uma verdadeira penetração, cada dia mais perfeita e mais consciente, da alma por Deus e de Deus pela alma. Deus no mais íntimo da alma, a alma no mais íntimo de Deus. Deus e a alma conhecendo-se mutuamente, até ao âmago. Deus e a alma amando-se profundamente, dizendo-o sem cessar, de mil maneiras, e, ao mesmo tempo, provando-o. Deus e a alma, sem nunca se separarem e ocupando-se um com o outro, Deus e a alma possuindo-se plenamente, saboreando-se de uma maneira inefável, a alma tornando-se o paraíso de Deus, Deus fazendo-se, já neste mundo, o paraíso da alma, e, tudo isso, ainda, aumentando dia a dia, desmedidamente. É a verdadeira vida interior.
Si scires donum Dei...
[5]
[1] Expressão que, por falta de correspondência no vocabulário português, foi reduzida, embora com perda de conteúdo, para “Deus”, através do texto. (N.T.)
[2] “Se alguém me quer seguir, renuncie a si próprio, tome a sua cruz e venha após mim. Que serve ao homem ganhar o universo se perder a sua alma.” (Mt 16,24-26).
[3] “Deixai tudo e tudo encontrareis.”
[4] “Venha o vosso Reino”.
[5] “Se conhecêsseis o dom de Deus”. (Jo 4,10).