Prólogo
A formação de almas santas entre todas as pessoas é atualmente a principal missão e desafio para os sacerdotes e para os leigos atuantes, pois eles sabem que sozinhos não poderão alcançar todas as almas que precisam de salvação. É necessário, portanto, que haja cristãos fervorosos, verdadeiros apóstolos, que espalhem a boa semente ao seu redor e ensinem o caminho da verdade, da religião e da virtude aos que não o conhecem. Isso nos motivou, aproveitando o tempo livre de uma convalescença, a contribuir dentro de nossas possibilidades para essa obra tão urgente, expondo algumas das verdades fundamentais capazes de fazer brotar nas almas nobres aspirações e ímpetos generosos para a santidade e para o apostolado. Essas verdades foram retiradas de nossos escritos anteriores, mas aqui foram direcionadas especialmente para a formação de almas santas. Colocamos humildemente este escrito aos pés da Rainha dos Apóstolos, a quem pedimos de todo o coração que se digne formar ela mesma, na alma daqueles que o lerem, a imagem de Jesus, o único que pode transformá-los em santos e apóstolos.
Seminário Maior de Aix-en-Provence,
21 de Novembro de 1930
Festa da Apresentação da Santíssima Virgem Maria
Ad. Tanquerey
Introdução
Quando Nosso Senhor Jesus Cristo veio à terra para estabelecer o Reino de Deus, anunciou o Evangelho às multidões, de modo especial no chamado Sermão da Montanha e no discurso sobre o Pão da Vida. Mas Ele dedicou-se sobretudo a formar almas santas, os doze apóstolos e os setenta e dois discípulos, para que pudessem, ao progredirem na vida cristã sob a ação do Espírito Santo, continuar a Sua obra e trabalhar pela salvação de seus irmãos. Os Apóstolos aprenderam bem a lição: sem dúvida alguma também pregaram o Evangelho às multidões, como está descrito no início do livro dos Atos dos Apóstolos. Mas procuraram formar, dentro da comunidade cristã, ascetas, virgens, monges e cenobitas, que com os seus heroicos exemplos mantiveram um elevado ideal de perfeição, despertaram a admiração, e, às vezes, a conversão de um grande número de pagãos. Este mesmo modo de agir deve ser seguido, especialmente em nossos tempos, nos quais, com a redução do número de sacerdotes, é preciso que leigos fervorosos de todas as classes sociais ajudem o clero na evangelização das multidões. Assim, vemos surgir por toda parte patronatos, colônias de férias, grupos de escotismo, equipes sociais e grupos de jovens católicos, que a uma profunda vida interior acrescentam um apostolado fecundo. Para formar esses grupos é necessário primeiramente ensinar as verdades cristãs fundamentais, como a nossa incorporação a Cristo, a nossa participação na vida divina, nossa pertença a Maria e o nosso sacerdócio, que são princípios motores que nos chamam e nos estimulam a trabalhar sem esmorecer por Deus e pelas almas. É preciso tirar delas conclusões práticas, e demonstrar que, para corresponder ao infinito amor que Deus nos manifesta, devemos procurar fazer com que Jesus cresça em nós, e dá-lo a conhecer aos nossos irmãos. Foi o que buscamos com o livro Dogmas geradores da piedade, obra que, segundo alguns sacerdotes, foi importante para formar almas santas também na classe trabalhadora. Muitos nos pediram para publicar folhetos populares explicando mais detalhadamente algumas daquelas verdades fundamentais, para que pudessem ser compreendidas mais facilmente por pessoas que não estudaram teologia. Esse é o nosso propósito, se Deus nos conceder graça e tempo. Começaremos pela Nossa incorporação a Cristo, uma doutrina que foi luz, consolo e ânimo para os primeiros cristãos. Em seguida exporemos a Nossa participação na vida divina, fruto da nossa incorporação a Cristo, que nos incentiva a viver conforme os preceitos de Deus. Depois de Deus, devemos essa união com Cristo e essa vida divina à Mãe do Verbo encarnado, e, portanto, estudaremos as grandezas dessa mãe e a sua relação conosco. Esses privilégios tão grandes se completam com a participação dos sacerdotes e dos fiéis no sacerdócio de Jesus Cristo, e, em consequência, no ato sacerdotal supremo, que é o oferecimento do Santo Sacrifício da Missa, que faz chegar até nós a obra da redenção realizada na Cruz.
1. O Verbo Encarnado, fonte de vida sobrenatural
Para bem conhecer a vida cristã é preciso evidentemente remontar à sua origem. Ora a origem é a própria Trindade: ninguém pode tornar-nos participantes da vida divina senão aquele que possui a sua plenitude. Todas as divinas Pessoas concorrem para isso, mas foi o Filho o escolhido para descer à terra, a fim de ser o nosso Chefe, incorporar-nos no seu corpo místico e levar-nos assim á comunhão da sua vida. Para melhor compreendermos esta verdade, vejamos o que é o Verbo divino: 1) no seio do Pai; 2) no mistério da Encarnação; 3) nas suas relações conosco; 4) por via de conclusão, como deve ser o centro da nossa vida espiritual.
O Verbo no seio do Pai
É São João que nos descreve a vida do Verbo no seio do Pai (Jo 1, 1-5): No princípio era o Verbo, e o Verbo estava em Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio em Deus. Tudo por ele foi feito e sem ele nada foi feito do que existe. Nele estava a vida e a vida era a luz dos homens. E a luz resplandece nas trevas, e as trevas não o receberam. Duas grandes verdades são postas em evidência neste magnífico prólogo: 1ª a vida do Verbo em Deus; 2ª a sua ação no mundo.
A vida do Verbo em Deus
No princípio, quer dizer, como o próprio Jesus o explica noutra parte, antes da origem do mundo, era o Verbo. Com estas palavras, o evangelista indica-nos a preexistência ou a eternidade da Segunda Pessoa, que existia – e existia sem princípio – antes de ter começado o tempo, quando só Deus existia na eternidade. Na eternidade, portanto, o Verbo existia – era – no seio de Deus. Porque Deus, que dá a fecundidade às criaturas, também é extremamente fecundo, de uma fecundidade absolutamente espiritual. Na verdade, Deus pensa desde toda a eternidade e quem pode ser objeto dos seus pensamentos senão Ele próprio? Mas, ao pensar, Ele produz uma imagem da sua divina substância, imagem perfeitamente semelhante, imagem substancial, de uma arrebatadora beleza, de uma perfeição infinita. Esta imagem substancial é uma verdadeira pessoa, porque em Deus nada é imperfeito. É pois uma imagem infinita, viva, ativa, uma pessoa como o próprio Pai. Distinta dele, porque é dele que recebe a vida. Igual a Ele, porque a recebe integralmente. Esta pessoa é o Filho de Deus, o seu Verbo, outro eu, o esplendor da sua glória (Hb 1, 3), o seu Filho Único (Jo 1, 18). A este Filho, o Pai ama-o com um amor infinito, sendo infinitamente amado por Ele. E deste amor brota uma terceira pessoa, igual às outras duas: o Espírito Santo, liame substancial entre o Pai e o Filho, que procede de um e outro e a quem se chamará o Amor ou a divina caridade. Tal é o mistério da Trindade, mistério que não podemos compreender, mas que havemos de contemplar um dia no Céu e cuja clara visão nos tornará eternamente felizes. Entretanto, este mistério, revelado pelo próprio Jesus Cristo, quer dizer, por alguém que não cessa de contemplá-lo, projeta desde já uma luz esclarecedora sobre a vida interior de Deus! Considerado apenas à luz do conhecimento racional, Deus aparecer-nos-ia como uma sombra longínqua, e quase seria lícito interrogar-nos que faria Ele tão sozinho no seu Céu. A fé, porém, revela-nos que Deus não vive solitário nas suas moradas eternas. Mostra-nos que é uno de natureza, mas trino em pessoa, Pai, Filho e Espírito Santo. São três os que possuem esta única natureza, três a viver em família na mais perfeita intimidade: o Pai pensa incessantemente no Filho e ama-o com um amor infinito, e o Filho paga-lhe amor com amor; o Pai e o Filho amam infinitamente o Espírito Santo, e este, que é o amor substancial, não os ama menos. Ora o Deus da Trindade habita e vive na alma em estado de graça, tão realmente, que nós podemos dizer com Sóror Isabel da Trindade: Ó Senhor, tu és a minha felicidade e eu entrego-me a ti como uma presa. Vem até mim para que eu me abisme em ti, enquanto espero contemplar na tua luz o abismo das tuas grandezas. E já que nos ocupamos aqui sobretudo da pessoa do Verbo, dirijamos-lhe também, a oração da mesma Carmelita: Ó Verbo eterno, Palavra do meu Deus, eu quero passar a vida a escutar-te, quero tornar-me dócil, a fim de aprender tudo de ti; depois, enquanto dura a noite, o vazio, a impotência, quero olhar-te sempre e permanecer sob a irradiação da tua luz. Ó meu astro amado, fascina-me, para que eu não possa sair jamais da tua luz.
O Verbo Criador
Depois de termos contemplado o Verbo em si mesmo e nas suas relações com as outras duas pessoas da Santíssima Trindade, digamos uma palavra acerca das suas relações com as criaturas. Tudo por ele foi feito e sem ele nada foi feito do que existe (Jo 1, 3). Estas palavras demonstram que o Verbo é, com o Pai e o Espírito Santo, a causa eficiente da criação. Esta é, na verdade, uma obra exterior, ad extra, como dizem os teólogos, e por isso um ato comum das três pessoas divinas. Se quisermos conhecer o papel especialmente atribuído ao Verbo nesta obra comum, podemos dizer com São João que foi por ele, per ipsum, que tudo foi criado. Efetivamente, Deus age pelo seu pensamento, pelo seu Verbo, que, como dissemos, não é mais do que o seu pensamento. De resto, é isto o que o livro dos Provérbios descreve ao representar a divina Sabedoria, gerada por Deus no princípio dos seus caminhos, assistindo-lhe nessa obra de sabedoria que é a criação: Quando dispôs os céus, eu estava lá; quando traçou um círculo à superfície do abismo; quando consolidou as nuvens no alto; quando subjugou as fontes do abismo; quando fixou ao mar os seus limites, para que as águas não transpusessem as margens; quando pós os fundamentos da terra, eu estava junto dele, regozijando-me todos os dias e brincando sem cessar na sua presença, recreando-me sobre o globo da terra e encontrando as minhas delicias entre os filhos dos homens (Pv 8, 27-31). Sob essa linguagem poética é fácil reconhecer a ação do Verbo, que sendo a Sabedoria do Pai, tudo previu, tudo ordenou com número, peso e medida, para que tudo coopere para a glória de Deus e o bem das criaturas. Daqui conclui-se que o Verbo é a causa exemplar de todas as criaturas. Diz São Tomás que Deus, antes de criar os seres, forma em si mesmo a ideia, o modelo de cada um deles. Assim como um arquiteto, antes de construir um palácio, o idealiza e faz um projeto, assim também, mas de maneira infinitamente mais perfeita, Deus. Antes de criar este grande palácio que é o mundo, faz um plano, concebe a sua ordenação até aos mais íntimos pormenores, porque nada escapa à sua ciência universal e infinita. Nós existimos em Deus, no pensamento divino, e desde toda a eternidade. Ele vê em que grau cada um dos seres há de participar do seu ser divino, de maneira limitada sem dúvida, mas real. Deus é o modelo, o exemplar, segundo o qual todos nós somos formados: Façamos o homem à nossa imagem e semelhança (Gn 1, 26). Ora é no seu pensamento, no seu Verbo interior que Deus concebe todos os seres; o Verbo é o modelo, o protótipo, a causa exemplar de todas as criaturas. As considerações que vimos fazendo dão-nos a dimensão exata da nossa grandeza e da nossa dependência. Da nossa grandeza, porque o ser humano – embora imperfeito – é uma participação do ser divino, a realização de uma ideia divina. Deus concebeu desde toda a eternidade o grau de perfeição que devemos atingir e, seja qual for, esse grau é sempre qualquer coisa de muito nobre, de muito elevado, visto que corresponde a um pensamento divino e nos aproxima do Verbo de Deus. Da nossa dependência, porque é evidente que nós não podemos realizar o ideal concebido por Deus sem o seu auxilio e sem a moção divina. Criado por Deus segundo um tipo que Ele próprio concebeu, o homem não pode alcançar esse ideal sem se deixar moldar por Ele; é Deus que produz em nós o querer e o agir (cf. Fl 2, 13). Esta ação de Deus é necessária, porque o consentimento da nossa vontade é um ato que não pode vir, em última análise, senão de Deus. É Ele que, depois de ter criado as nossas faculdades, as inclina para o bem e nos leva a dar o consentimento à graça. Resumindo: o homem depende de Deus no ser e no agir. Eu congratulo-me, Senhor, com esta absoluta dependência, porque tenho infinitamente mais confiança em ti do que em mim. Tu és a sabedoria infinita e é uma honra para mim poder pedir-te os conselhos de que tenho necessidade. Tu és a luz do mundo e é agradável para mim participar, no meio das trevas em que estou envolvido, da tua luz. Tu és a fonte da vida e eu sou feliz por me poder saciar nessa água viva que jorra até à vida eterna. Tu és o Filho de Deus por excelência e eu congratulo-me por me adotares na família divina. Sê sempre bendito por me teres feito participante, na medida do possível, da tua sabedoria, da tua vida, do teu ser divino. Doravante, a minha única ambição será aproximar-me do divino exemplar que me é proposto como modelo. É este de resto o dever que nos impõe mais particularmente o fato da tua Encarnação.
(...)