Primeira parte
O Sagrado Coração de Jesus no Evangelho
A bondade misericordiosa do Coração de Jesus resplandece em todo o Evangelho. Entretanto, como temos alguns limites, escolhemos, no Livro Sagrado, apenas as páginas nas quais os Evangelistas quiseram colocar em relevo este consolador atributo de nosso divino Salvador: a sua Misericórdia.
Capítulo I
Jesus manifesta ao mundo a misericórdia de seu divino Coração durante sua vida pública
I. Procedimento de jesus para com os publicanos e os pecadores em geral
Quando se deu a vocação de São Mateus, o publicano, os Evangelistas São Marcos e São Lucas apresentam claramente a misericórdia de seu divino Mestre.
Depois de ter contado, com poucas palavras, o fato, ambos acrescentam, com efeito, que o publicano de ontem, que então se chamava Levi, resolveu celebrar seu adeus ao mundo e sua entrada no Colégio Apostólico dando um grande banquete em honra de Jesus
[1]. Convidaria todos os empregados do fisco, seus antigos colegas, com o fim, sem dúvida, de proporcionar-lhes a satisfação e a vantagem de ver mais de perto o grande Profeta e, talvez, também com a intenção secreta de vê-los impressionados com o encanto irresistível de seu olhar e de sua palavra.
Foi assim que, na casa do seu novo escolhido, Jesus se viu rodeado de um grande número de publicanos e pessoas de vida pouco exemplar, como o declaram expressamente os dois Evangelistas
[2]. Os escribas e fariseus estavam fortemente admirados.
Estranho espetáculo, com efeito, para estes homens dominados pelo orgulho, pela ambição e pela dureza, ver esse pretendido Profeta admitir tais pessoas entre os seus ouvintes e mesmo consentir em se assentar à sua mesa
[3]. Então, sem que suspeitassem que dariam um eloquente testemunho da mansidão e da misericórdia de Jesus, decidiram protestar energicamente contra tais procedimentos. Foi por isto que, depois do banquete, encontrando-se à beira do Lago
[4] com os discípulos de Jesus, disseram-lhes:
Por que o vosso mestre come com os publicanos e com os pecadores? (Mt 9,11).
Jesus ouviu esta repreensão e respondeu Ele mesmo, amarrando ao pelourinho, com uma palavra, o orgulho de seus inimigos odientos e ciumentos:
Não são aqueles que estão bem que precisam de médico, mas sim os doentes (Mt 9,12). Depois acrescentou esta declaração solene que, no decorrer dos séculos, alegraria todos os pecadores que desejavam sinceramente erguer-se, dissipar seus medos e reforçar sua esperança no perdão divino:
Eu não vim chamar à conversão os justos, mas os pecadores (Lc 5,32).
Essa não é a única vez que os Evangelistas mencionam a multidão dos pecadores que se compraziam em rodear Jesus, ávidos de ouvir sua palavra vital. Durante o terceiro ano de pregação do Salvador, pregando sua segunda missão na Pereia, São Lucas assinala um acontecimento semelhante ao que acabamos de relatar, e o refere como se tratasse de um hábito constante de Jesus:
Os publicanos e os pecadores se aproximam de Jesus para ouvi-lo. E os fariseus e os escribas murmuravam dizendo: ‘Este homem acolhe os pecadores e come com eles’ (Lc 15,1-2). Jesus respondeu à intervenção dos fariseus contando ao povo as parábolas da ovelha e da dracma perdidas e do filho pródigo, de que falaremos mais adiante.
Esse ensinamento de Jesus, que tinha por fim colocar em evidência a misericórdia de Deus, era destinado principalmente aos publicanos e aos pecadores de todos os graus que compunham a maior parte de seu auditório.
Assim, a presença dessa categoria de ouvintes nas pregações de Jesus prova que a misericórdia devia ser um dos assuntos favoritos do Salvador. Pois era isso, com certeza, que atraía a Ele essa gente de má vida, tão criticada pelos escribas e fariseus, mas que se mostrava, por isso mesmo, desejosa de erguer-se de sua baixeza.
Em todo caso, o que não temos dúvida é que as palavras e o procedimento misericordioso do Salvador, deviam, no decorrer do tempo e até o fim dos séculos, esclarecer as multidões de almas desviadas, reanimar sua confiança, fortalecê-las e erguê-las pelo arrependimento, amor e generosidade, à imitação de Madalena, de São Pedro e de tantos outros, até os cimos esplendorosos da perfeição.
II. O filho pródigo
Eis aqui, em primeiro lugar, a comovente parábola do Filho pródigo (Lc 15,11-32), na qual o Coração de Jesus se revela a nós com todo o esplendor do seu amor misericordioso para com os maiores culpados.
Aqui, com efeito, Jesus nos conta que, apesar do inqualificável procedimento do pródigo, seu pai não deixa de o amar, de pensar nele, de suspirar pela sua volta... Assim, cada dia, à primeira luz da aurora, este terno pai sobe ao monte vizinho para perscrutar o horizonte. E aí, avidamente, incansavelmente, ele procura com os olhos e com o coração seu querido filho – seu filho perdido, mas sempre ternamente amado. As semanas, os meses, os anos passam, e o pai deste ingrato fica, apesar de tudo, inabalável em seu amor.
Finalmente, vencido pela miséria, abatido pela desgraça, traído pelos seus amigos, o pródigo abre seu coração à graça do arrependimento. Lembra-se da inefável bondade de seu pai e da felicidade de que gozava quando junto dele. Que contraste com a condição de agora! “Eu me levantarei, exclama ele, com o coração partido pela dor, e irei à casa de meu pai!”
Encontro comovente aquele! Espetáculo de humildade, de arrependimento e de confiança da parte do filho; de ternura transbordante e de inefável misericórdia da parte do pai! Na presença de seu filho encontrado, este bom pai entrega-se totalmente à alegria que lhe causa sua volta. Daqui por diante, um único pensamento lhe ocupa: seu filho, seu querido filho! Um só sentimento o domina: o amor, com todo o seu ardor, com ternura, com a misericórdia mais comovente! Nada de perguntas, nada de repreensões. Nada mais do que abraços e beijos para este ingrato (cf. Lc 15,20).
Uma só palavra é repetida sem cessar, pelos lábios deste terno pai: “Meu filho! Meu filho que estava perdido e foi agora encontrado; meu filho que estava morto e é agora ressuscitado. Para meu filho, para meu querido filho, dou a veste mais formosa, para meu filho, uma festa, um festim magnífico!”
Tal é a admirável misericórdia do Coração de Jesus que põe em plena evidência a palavra do profeta: Eu não quero a morte do pecador, mas que se converta e viva (Ez 18,21-32). E a de São Paulo: Deus, nosso Salvador, quer que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade (1Tm 2,4).
III. O bom pastor
A parábola do Filho Pródigo é certamente capaz de comover os corações mais endurecidos. Todavia, é na parábola do Bom Pastor que a última palavra da misericórdia divina foi pronunciada por Jesus. Porque, se na primeira vemos a Deus incansavelmente esperando o pecador para em seguida a acolhê-lo com amor e ternura inefáveis, eis que na segunda o vemos prevenir o pródigo e segui-lo nas suas corridas insensatas...
Vejo, com efeito, o bom Pastor tornando-se como insensível ao amor constante de suas outras ovelhas e unicamente preocupado de sua ovelha perdida. Ele vai à procura dela. Procura-a em toda parte, através dos campos, brenhas, espinheiros. Com certeza
Ele não descansará senão quando a tiver encontrado.
[5]
Entretanto, depois que abandonou Jesus, a alma infiel, figurada aqui pela ovelha perdida, não deu sinal algum de arrependimento. Pelo contrário, não pensa senão em fugir o mais longe possível, evita a presença de Jesus, fecha os olhos diante de sua imagem, afasta até o pensamento dele. Exige que não se fale d’Ele. Já não quer senão as pastagens proibidas, suas desordens, sua ruína!
Jesus sabe perfeitamente tudo aquilo. Mas que importa. Ele não deixa de amar sua infeliz ovelha. Só ouve o seu amor. Só sente as palpitações de seu coração compadecido e misericordioso. Ele prossegue sua corrida. Multiplica seus apelos: “Onde está, então, minha ovelha, minha querida ovelha?”
Isto dura meses, anos... Como é grande a infelicidade desta pobre ovelha! Ela se jogou para o fundo de um barranco. Seu belo traje branco de outrora está em farrapos, todo o seu corpo é coberto de lama. As pastagens estranhas não lhe deram a felicidade sonhada, ela está só, abandonada de todos e não tem ninguém para reerguê-la...
É então que ela evoca a amável e doce lembrança de Jesus. Seu excesso de ternura a converteu. O arrependimento é seguido de seu efeito natural. Ela ouve, daqui por diante, a voz tão doce de Jesus. Levanta para Ele seus olhos cheios de lágrimas para contar-lhe, em alta voz, seu enorme perigo e sua imensa desgraça.
Uma virtude divina transformou a ovelha infiel. Logo, a alegria brilha no rosto de Jesus, ainda banhado das lágrimas que derramou sobre ela.
Então, não ouvindo mais que os impulsos do seu Coração, Jesus esquece todas as distâncias. Esta alma que agora está diante d’Ele, e que ainda carrega as marcas de suas feridas, não é mais para Ele uma pecadora. É uma ressuscitada. É uma recém-batizada, é a esposa do seu Coração.
É sua Conquista que Lhe pertence.
Por isso é que tem pressa em provar que a ama como outrora – mais do que outrora – porque, por ela, sofreu tanto. Ele a recebe em seus braços, levanta-a até seu peito, aperta-a ao seu Coração e a faz sentir certa felicidade. Toma-a sobre seus ombros, e, triunfante a leva ao aprisco, onde nada, daqui em diante, a distinguirá das outras ovelhas que permaneceram fiéis.
Quem jamais poderá manifestar as ternuras misericordiosas de Jesus, o Bom Pastor?
[6]
[1] Levi deu-lhe um grande banquete em sua casa (Lc 5,29).
[2] Em seguida, pôs-se à mesa na sua casa e muitos cobradores de impostos e pecadores tomaram lugar com ele e seus discípulos (Mc 2,15). Vários desses fiscais e outras pessoas estavam sentados à mesa com eles (Lc 5,29).
[3] “Os fariseus e seus escribas nunca teriam aceitado serem os convidados de um publicano. Mas, mesmo não estando entre os convivas de Levi, como os discípulos de Jesus, era-lhes, todavia, possível ser testemunhas da cena que Marcos e Lucas nos apresentam. Sabe-se, com efeito, que os costumes da Palestina naquela época permitiam facilmente entrar em uma sala de festim e de lá sair como simples curiosos. Notamos, entretanto, que outros exegetas pensam que os fariseus não teriam nem mesmo aceitado entrar na casa de um publicano e eles explicam que a interpelação foi feita, sem dúvida, do exterior da casa”. (Marchal. Evangelho segundo São Lucas, Paris, 1935, p. 80).
[4] Lago de Tiberíades ao redor do qual Mateus exercia suas funções de publicano, isto é, de cobrador dos impostos.