Prólogo
O triunfo
Jesus, velado no seu grande mistério de amor, qual no-lo oferecem os nossos sacerdotes; habitando os nossos altares e inteiramente feito para as nossas almas: eis a sagrada e veneranda verdade que temos que estudar.
À sapiência dos querubins não é dado sondar as profundezas misteriosas de tão adorável Sacramento; assim como os serafins, apesar do seu fervorosíssimo amor, não podem louvar devidamente as abundâncias de misericórdia que nele se encerra.
Entretanto, cabe a nós, pois esse é o nosso privilégio, perscrutar este mistério, que é o nosso sacrifício de cada dia e nossa adoração perpétua.
E quanto melhor o conhecermos, mais e mais crescerá o amor que votamos ao nosso diletíssimo Senhor; e para conhecer a Jesus um pouco mais, a fim de o amar um pouco mais, embora este pouco seja sempre tão pouco, não servirá esta vida, que vivemos, a preço de tantas tristezas e tribulações? A santa madre Igreja estende-nos a mão para ajudar-nos a atravessar essas misteriosas regiões da verdade divina. Ao longo do caminho estão os santos doutores, que serão como outros tantos anjos da guarda, impedindo que nos desencaminhemos e sugerindo-nos os pensamentos que deveremos pensar e as palavras acertadas que deveremos dizer, ao mesmo tempo que ela mesma, mediante tocantes cerimônias e muitas regras sábias e profundas, nos infundirá um sagrado temor, o reverente temor que convém aos que estudam tão profundos mistérios.
A voz de seu grande filho, São Tomás de Aquino, ainda vibra nos seus ofícios, ora desvendando-nos numa só antífona vastos abismos das Escrituras, ora associando em hinos quase sobrenaturais o rigor do dogma a uma melodiosa suavidade, mais semelhante a ecos dos céus do que a simples poeira terrestre. Jesus velado! prostremo-nos perante ele, adorando-o com respeitoso terror, enquanto nossa Mãe nos ensina o quanto ele é belo, bondoso, brando e nos está perto. Se pensarmos conhecê-lo, apenas o conheceremos pela metade; se dele falarmos, balbuciaremos como crianças; e abrasem-nos os corações de amor por ele, estarão frios em comparação do amor que lhe é devido.
Suponhamo-nos no dia da festa de Corpus Christi. Logo pela manhã, levantamo-nos com pensamentos jubilosos e exaltados: há animação em tudo o que nos cerca; sentimo-nos bem dispostos, ainda que não estejamos bem de saúde; afigura-se-nos o sol brilhando, embora o tempo esteja nublado. Mas não tarda que nos sintamos contrariados, aborrecidos com o espetáculo da nossa querida terra entregue toda aos complicados trabalhos do tráfico comercial moderno. Sentimos haver nisso algo de desacertado e pouco harmonioso.
Coitada de Londres! Se conhecesse Deus e guardasse os dias santos consagrados a Deus, quanto não haveria de se regozijar em tais dias, deixando soltos das cadeias do trabalho os inúmeros escravos de Mamon, e daria largas a toda a alegria, como a das crianças, pelo motivo de estar-se celebrando um mistério que é: o triunfo da fé sobre os sentidos, do espírito sobre a matéria, da Igreja sobre o mundo. Mas por outro lado, essa contrariedade faz-nos sentir com maior afeto o dom da fé e a consciência da nossa indignidade, pois é verdadeiro milagre termos sido escolhidos por Deus para recebermos tão magnífico dom.
Ó suavíssimo Sacramento de amor, nós te pertencemos, pois és o nosso próprio amor vivo. És a nossa fonte de vida, porque em ti está a mesma vida divina, incomensurável, compassiva e eterna. Hoje é o teu dia, durante o qual não poderá haver um só pensamento, uma só esperança, um só desejo que não seja em tua intenção.
Agora, a primeira coisa que nos cumpre fazer é recolher dentro de nós o espírito da festa. Uma vez que isso seja feito, poderemos então sondar até certa profundidade esse salutar mistério. Além disso, toda a teologia do grande dogma da Eucaristia é nada menos que uma música angélica para ser ouvida pelos mortais, e afeitas que sejam a ela as nossas almas, poderemos então compreender os seus suaves segredos que venham a se revelar aos nossos espíritos deliciados. Calderón diz muito bem que aquele que neste grande dia de Deus puder conservar-se em juízo, estará na realidade fora de si:
“Que en el gran día de Dios,
Quien no está loco, no es cuerdo!”
Eis a voz vinda de uma terra de fé. Mas cumpre-nos ir mais adiante para apreender o espírito da festa. Representemo-nos como sobre um mapa todo o aspecto que aos olhos de Deus oferece a Igreja.
A nossa grande cidade está aturdida com o seu próprio rumor; nada ouve. Está ofuscada pelo seu próprio esplendor; nada vê. Não cuidemos dela; devemos esquecê-la; seria isso com tristeza, se se tratasse de qualquer outro dia que não este; mas hoje, porque é o dia de hoje, não é senão com absoluta indiferença.
Oh! que alegria a desta imensa glória que a Igreja neste dia eleva a Deus; em verdade, é como se o mundo ainda não tivesse sofrido a queda. Estamos pensando, e, enquanto pensamos, os nossos pensamentos são como outras tantas vagas que se sucedem, enchendo as almas com a plenitude do deleite dos milhares de missas que se estão rezando ou cantando por toda parte do mundo, elevando-se todas numa só nota de venturosa aclamação das criaturas agradecendo à Majestade do nosso misericordioso Criador.
Quantas esplendorosas procissões, com os seus estandartes brilhando ao sol, estão agora prosseguindo em seu caminho pelas praças das opulentas cidades, pelas ruas juncadas de flores das aldeias cristãs, pelos antigos claustros da gloriosa catedral e pelos pátios dos seminários, asilos de piedade. Nesse concurso de povos, as diversas cores de face e as diferenças de linguagem são somente outros tantos sinais da unidade da fé, que todos professam alvoroçadamente pela voz do magnífico ritual de Roma. Sobre quantos altares de variada arquitetura, ornados de flores e luzes, entre nuvens de incenso, ao som dos cantos sagrados, em presença de milhares de fiéis prostrados e recolhidos, se eleva o Santíssimo Sacramento, erguido para adoração dos fiéis, ou descido para abençoá-los! Quantos inefáveis afetos de amor, triunfo e reparação aí se não representam em cada uma dessas coisas! Por todo o mundo, no tempo de verão, a voz dos cânticos enche os ares. Os jardins são despojados das suas mais belas flores para serem lançadas aos pés de Deus sacramentado.
Os campanários vibram com o badalar dos sinos; os canhões estrondeiam nos desfiladeiros dos Andes e dos Apeninos, as cores das vistosas flâmulas hasteadas nos navios salpicam o mar dos portos; a pompa dos exércitos reais e republicanos saúda o Rei dos reis. O Papa no seu trono e a menina de escola na sua aldeia; a freira na sua clausura e o eremita em seu retiro; bispos e dignitários e pregadores e reis e príncipes se absorvem hoje no pensamento do Santíssimo Sacramento. Iluminam-se as cidades; as habitações estão alvoroçadas e alegres. Tão abundante de alegria, que os homens se regozijam sem saberem por que é a sua alegria transborda sobre os corações tristes e sobre os pobres, os presos, os errantes, sobre os órfãos e os nostálgicos saudosos da sua pátria. Todos os milhões de almas que pertencem à família real e à linhagem espiritual de São Pedro, estão empenhados mais ou menos com o Santíssimo Sacramento. E assim, toda a Igreja militante está vibrando de emoção, qual a agitação ondulante do vasto mar. Os pecados como que são esquecidos; até as lágrimas são antes de arroubo do que de penitência. É como o primeiro dia da alma entrada no céu; ou como se a mesma terra se transformasse em céu, o que bem poderia acontecer, graças à pura alegria do Santíssimo Sacramento.
Mas tudo isso representa e revela um mundo interior de profunda adoração e provas inúmeras das operações sobrenaturais do Espírito Santo e da exuberante atividade e inextinguível energia do precioso sangue. Um só ato sobrenatural causa mais alegria a Deus do que lhe causam dor mil pecados odiosos, pois o perfume de Cristo, a unção da sua graça e a púrpura do seu sangue se reúnem nesse ato, selado pelos seus divinos merecimentos. A graça se torna mais ativa nas proximidades das grandes festas e os primeiros preparativos destas chamam muitas almas para se ajoelharem aos pés dos seus médicos espirituais. Milhares que ontem se achavam em estado de pecado, agora por amor de Jesus veem o sol de hoje iluminando-lhes a penitência; e por todas elas se regozijam os anjos mais do que seria pela criação de um mundo novo. Milhares preparam-se para a comunhão, e a menos fervorosa delas fez para Deus alguma coisa que sem a festa não a teria feito. Essas mesmas almas receberam a comunhão, e pensai então o que Jesus operou nelas, enquanto durou a união sacramental! Essas almas fizeram sua ação de graças; e que coro de louvores não subiu ao céu! Quantas pessoas de idade avançada não se acharão, à tarde, menos mundanas do que o eram pela manhã desse dia! Em quantas almas infantis a fé não tem suscitado rebentos vigorosos, flexíveis e cheios de seiva! Um dia só fez mais que um ano inteiro de crescimento; e quanta beleza há na contemplação da fé que desabrocha na alma de uma criança, com a gloriosa promessa de maior messe para a eternidade!
E o que direi dessas maiores profundezas às almas interiormente mortificadas! Quem crer que o simples exercício da fé, não falando do da caridade, seja algo de tão profundo, de tão elevado e sublime, de tão íntima união com Jesus Cristo que nós, cristãos vulgares, não poderemos compreender.
E quantos verdadeiros cristãos santos, desses que merecerão ser elevados aos altares da Igreja, não foram tomados de arroubo, de êxtases, em comunhão sobrenatural com Deus, nesse dia, sob a poderosa influência deste mistério que lhes infundia na alma tão nova vida. Do silêncio dos claustros, sobem neste dia aos céus os suaves perfumes que se exalam dos corações dos místicos desposados de Jesus, atos de fé para conseguir-se a conversão dos gentios; atos de amor pela expiação de um oceano de blasfêmias e mundos de sacrilégios; atos de união, que reforçam e avigoram a Igreja e aceleram os pulsos nas regiões remotas e afastadas das celas; atos que se consumam na solidão, por orações, e em austero recolhimento.
Quem poderá contar as vocações iniciadas ou completadas hoje; as conversões suscitadas e efetuadas; o primeiro golpe dado a algum ato pecaminoso ou decisivo esforço para uma resolução devota; os pecados perdoados e os propósitos de pecados abandonados, os leitos de morte consolados ou as almas livradas do purgatório, tudo isso mediante a vivida caridade da terra?
Um vasto, rumoroso e populoso império de atos interiores se estende hoje aos olhos de Deus; império tão belo, tão glorioso, tão religioso, tão digno de acolhimento, que a festa exterior não passa de ínfima expressão da festa interior no mundo espiritual.
O que é tudo isso, senão triunfo, o triunfo de nosso Senhor invisível!?
LIVRO PRIMEIRO
O SANTÍSSIMO SACRAMENTO, A MAIOR OBRA DE DEUS
Seção I
As leis das obras divinas
Não podemos imaginar um retrato de Deus. Não podemos representar, com imagens ou formas sensíveis, a eternidade ou a onipotência. Afigurarmo-nos Deus por tais meios seria incorrer em lamentável erro.
Entretanto, muitíssimo importa à vida espiritual que tenhamos de Deus uma ideia clara; porque somente nos altíssimos andares da união mística com Deus é possível contemplá-lo na obscuridade entre nuvens e sombras, e obter-se com isso alguma satisfação e quietude. Agora, todavia, podemos evocar a imagem divina com bastante clareza, negando-lhe qualquer imperfeição concebível ou atribuindo-lhe em elevadíssimo grau toda a perfeição que possamos conceber. Os que se habituaram à meditação e se familiarizaram com as obras e mistérios divinos poderão formar a sua ideia de Deus por outro modo. Uma vez que se forme uma imagem de Deus tão perfeita quanto possível, e se a examinarmos parte por parte para saber como é composta, haveremos de verificar que compreende nove mistérios: quatro em Deus mesmo e cinco fora dele.
Os quatro primeiros mistérios são: a inascibilidade, a geração, a processão e a unidade, pelas quais exprimimos a doutrina das “Três pessoas em um só Deus”.
Os cinco outros mistérios são: a criação, a Encarnação, a justificação, a glorificação e a transubstanciação.
Não se acredite, porém, que tal imagem seja adequada representação de Deus, ou seja perfeita, senão relativamente a nosso próprio entendimento. O Altíssimo tem atributos, aos quais não sabemos dar denominação, porque, sendo de insondável perfeição, não nos é possível formar ideia delas. Há nele sumidades de beleza e glória, das quais, se caíssem sombras, estas se projetariam para muito além deste mundo ou, antes, de toda a finita criação. Não há em Deus mais simples motivo de deleitoso amor e de intensa alegria do que ser ele mesmo incompreensível, belo e glorioso, acima de tudo quanto possa a inteligência dos anjos imaginar. Mas a imagem de Deus a que nos referimos é perfeita, no sentido de abranger tudo o que dele concebemos, tudo o que dele conhecemos, tudo o que ele nos disse de si e tudo o que nos é necessário para prestar-lhe consciencioso amor e profunda adoração, além de que encerra em si a história das obras de Deus, donde transbordam motivos para a mais profunda reverência e para o mais terno amor.
Por ora, não tratamos dos quatro primeiros mistérios, que existem em Deus mesmo e que exprimem a doutrina da santíssima e indivisível Trindade. Propomo-nos tratar daqueles que a Santíssima Trindade permitiu que se realizassem fora dela. Desses cinco grandes mistérios, que são como coroas de todos os outros, a criação, a Encarnação, a glorificação e a transubstanciação, este último é, sem sombra de dúvida, o maior e o mais perfeito, porque reflete plenissimamente as perfeições internas de Deus. Tal o assunto a ser tratado neste livro, e peço ao leitor tenha para comigo toda a indulgência, caso a minha exposição lhe pareça árida e seca, sendo que de ora em diante serão expostas muitas coisas que parecerão ser mera poesia ou excesso de devoção, em vez de uma relação grave e exata da verdade.
Quando os homens falam das obras de Deus, dizendo que umas são maiores que as outras, não pretendem proferir sentença sobre o Altíssimo, nem se arrogar o direito de, perscrutando os seus desígnios, fazer comparação entre as suas obras e criticá-las. Não: reconhecem, sim, que em todas as obras divinas poderá haver, e provavelmente haverá, intentos e propósitos de sabedoria, justiça e misericórdia, que em muito excedem o que vemos e de muitos dos quais nem suspeitamos a existência. Mas, exprimindo-se com toda a reverência em linguagem humana tanto quanto lhes é possível, fazem-no conforme a impressão que lhes dão tais obras e conforme os ensinamentos da Igreja e seus doutores os autorizam a induzir. Os santos são obras de Deus; entretanto, como diz o apóstolo, cada obra difere da outra em esplendor; acresce que a Escritura nos ensina que Deus abandonou o mundo à discussão entre os filhos dos homens. Com essa disposição de espírito, podemos aventurar-nos a comparar entre si as misericordiosas obras de Deus, não deixando de reconhecer que a menor delas é tão profunda que não a podemos sondar, tão elevada que não a podemos abranger, e tão plena de condescendência que os anjos e homens, por maiores que fossem os seus merecimentos reunidos, jamais poderiam se julgar com direito de a elas pretender.
Todas as artes humanas que se propõem descobrir e exprimir o belo, seja pela forma, pela cor, pelo som, pela linguagem, ou por qualquer outra maneira, têm as suas regras próprias que as guiam em suas elucubrações e lhes determinam as aplicações. Mas Deus, em suas obras, é a própria regra, pois ele é toda a beleza, todo o engenho, toda a sabedoria e toda a bondade. Mas de quanto lhe aprouve dar-nos a conhecer, poderemos aventurar-nos a induzir certas regras e critérios que nos habilitarão a entrever a divina beleza das suas obras, tanto para nossa instrução, como para termos novos motivos de criação e reverente adoração. Mas podemos perguntar: em que consiste a perfeição das obras divinas?
Respondo que, segundo o nosso modo de dizer e segundo a natureza da nossa inteligência, essa perfeição consiste principalmente em cinco características: que a obra de Deus é bela, admirável e misericordiosa na proporção em que reúne em si o maior número das aludidas cinco qualidades, elevadas estas ao supremo grau.
Antes de tudo, a perfeição das obras divinas consiste nos profundos abismos da sua condescendência. E cada obra de Deus é de condescendência. Ele fez-se infinitamente pequeno, diz Santo Efrém, para formar o mundo que nos parece tão grande. Ele não necessita de nós ou de qualquer outro ente contingente, por mais sábio, santo ou belo que seja. A criação não é necessária à sua glória ou à sua bem-aventurança e nem, rigorosamente falando, à sua bondade. Nenhuma das obras visíveis de Deus é necessária: a criação foi maravilhosíssima ação de condescendência. Houvesse o Verbo eterno se revestido da natureza de anjo e a tivesse associado à sua pessoa divina, essa mostra de condescendência teria sido, deste ponto de vista, ainda maior que a criação, porque a mais ter-se-ia aprofundado a divina condescendência. O Verbo eterno assumiu, entretanto, a natureza ínfima do homem, ínfima entre as naturezas racionais. Realizou assim obra mais perfeita do que teria sido a de assumir a natureza angélica, por isso mesmo que revela mais condescendência e mais profundo amor. Se o homem não tivesse caído, e Nosso Senhor se tivesse dignado assumir a natureza impassível da humanidade não culposa, a fim de permanecer conosco e ser um de nós, esta ação seria de tão perfeito amor que nem os anjos, nem os homens o teriam imaginado, sem o auxílio da revelação. E que diremos de ter ele assumido a nossa natureza passível e de ter realmente sofrido e esgotado todos os meios de sofrimentos espirituais e corporais, não só a despeito dos nossos pecados, mas para remir-nos deles, fazendo-nos seus coerdeiros no reino dos céus? Eis aí uma obra mais perfeita ainda, porque o abismo de condescendência é mais profundo. Assim, parece que, nas obras de Deus, porque são obras, e obras suas, o grau de condescendência que nelas há seja a medida da sua perfeição. Quanto mais amor nelas se contém, mais perfeitas são; e quanto mais se digna Deus de se abaixar, mais cheia de amor é a sua condescendência.
O segundo critério para determinar a perfeição das obras divinas depara-se nas alturas a que elas se elevam.
Toda condescendência do Criador implica a elevação da criatura até ele. Realmente: é este o objetivo da condescendência. A criação não tem outro fim. A Igreja, a graça, os sacramentos, as boas inspirações, as manifestações de Deus, tudo isso significa aproximar-se a criatura do seu Criador. Assim, remir os homens dos seus pecados mediante o sangue de Jesus Cristo e permitir-lhes viverem a vida da imortal bem-aventurança embelezada por suas mãos, após o dia do juízo, com todas as alegrias, menos a da visão da Santíssima Trindade, seria grande obra de amor, porque transporta os homens do pecado à santidade, tornando-os amigos de Deus, de inimigos que eram.
Mas quanto mais perfeita a obra que lhes permite ver a Deus face a face, tal qual ele é, e sentirem-se conformados à semelhança do glorioso corpo do nosso diletíssimo Senhor?
A lei antiga foi bela obra de compaixão de Deus; mas foi eclipsada por mais perfeita beleza, a do Evangelho, cuja verdadeira beleza mal podemos apreciar. Como, entretanto, o característico da lei judaica, em comparação com os esparsos fragmentos da religião natural e primitiva revelação pelos sistemas do paganismo, era que os homens então tinham Deus perto de si, privilégio que não era dado aos outros povos; do mesmo modo no Evangelho é a presença de Deus e a intimidade da nossa união com ele que dão à Igreja de Cristo sobre excelente beleza. Assim, na teologia ascética contamos os graus de perfeição na mortificação pela medida em que nos elevamos mais e mais para perto de Deus; e na teologia mística distinguimos os estados sucessivos da oração mental, a altura, que alcançamos na contemplação, conforme a intensidade e perfeição de nossa união com Deus, em cada um destes estados. A graça é maior que a natureza, porque nos eleva a maior proximidade de Deus e a glória avantaja-se à graça, porque estreita ainda mais a união da alma com Deus. Assim, quanto maior a altura da criatura, maior é a beleza e a perfeição dessa obra.
O caráter puramente espiritual das obras de Deus é outro sinal, pelo qual se poderá medir a sua perfeição. Importa dizer, por outras palavras, que o espírito é mais glorioso que a matéria, e a alma mais admirável que o corpo. A regeneração espiritual do mundo é obra mais bela do que a primitiva criação material, se bem uma não pudesse existir sem a outra. Um milagre operado mediante palavras parecerá mais perfeito do que mediante um instrumento material, posto que este meio possa ser mais expedito e glorioso para Deus. Mais, matéria e espírito são criaturas de Deus e Deus serve-se delas, juntas ou separadas, conforme lhe apraz; todavia, quanto mais espiritual a sua maneira de ação, mais perfeita geralmente a consideramos. É precisamente por isso que a ação da graça nas almas dos homens se reveste de maior dignidade e encanto.
Assim, supondo que duas obras divinas, cuja execução seja igualmente grande e de objetivo de igual importância, a nossa preferência penderá para a que for formada de modo mais espiritual, visto que sob este aspecto se nos representa em mais alto grau o caráter do Onipotente. E assim parece que foi em consequência de noções erradas e rasteiras acerca do reino e soberania do Messias que os judeus ficaram inconversos obstinados. O erro de não perceber o caráter espiritual atraiu sobre Tiago e João a censura da parte do Senhor. Uma ideia grosseira sobre a ressurreição do corpo provocou indignação de São Paulo, e a falta de discernimento espiritual suscitou a apostasia de muitos em Cafarnaum, quando Cristo explicou, a primeira vez, a doutrina da santa Eucaristia. A glória de Deus está especialmente envolta no feitio espiritual de suas obras e no discernimento dele pelas suas criaturas. Podemos, portanto, considerar a presença desse método peculiar, como critério de perfeição, quando, pelo menos, esse sinal concorre com outros.
O quarto critério da perfeição das obras divinas está no duplo caráter de continuidade e multiplicidade que as distingue. A continuidade representa a imutabilidade de Deus, e a multiplicidade a sua magnificência e liberalidade. Assim, ser confirmado na graça, como o foram os apóstolos, é estado mais elevado que o nosso, pois é contínuo. Efeitos transitórios são menos perfeitos do que os que são permanentes. Meia hora de êxtase na terra com a vista intuitiva de Deus é muito inferior ao constante arroubo da visão beatífica no céu. O conceito de alguns pagãos de um Deus sem providência, que, tendo criado o mundo, deixou-o entregue a si mesmo, é, posta de lado a impiedade, ideia menos perfeita do que o representar como princípio de vida do mundo, suportando e sustentando todas as coisas e dando-lhes novo vigor; o erro dessa ideia está na omissão da continuidade. O mistério da perfeição perderia metade da sua beleza, se não compreendesse ao mesmo tempo a continuidade.
A multiplicidade é também especialmente de caráter divino. Assim, o perdão dos pecados só pelo batismo é uma obra bela e perfeita; mas quando o perdão se repete, se renova e se multiplica a cada hora pelo perpétuo sacramento da penitência, quanto mais bela e perfeita não é a obra do perdão! A glória da Igreja está em não se ter confinado nos limites estreitos da sinagoga, em terem aumentado os seus crentes e sobre cada um deles multiplicado a graça. O que é a criação de todo esse universo de mundos, em comparação com a efusão de uma só gota de sangue de Jesus? Mas, quando esse precioso sangue tinge de púrpura o pó do Jardim das Oliveiras, as pedras de Jerusalém, as dobras da sua túnica, as tiras dos açoites e os espinhos da coroa, a ponta da lança e o madeiro da cruz, quantas revelações da exuberância e da prodigalidade do amor divino! Assim, na continuidade e multiplicidade conjuntas em qualquer obra de Deus, que se nos depare, avistamos novas mostras de beleza e perfeição.
Enfim, as obras divinas são de maior ou menor perfeição, conforme representem e configurem maior ou menor número das perfeições divinas. Todas as obras de Deus são revelações dele mesmo, e como conhecer Deus é conhecer a vida eterna, que é a mais completa revelação dele, aí temos a maior prova da sua perfeição. O inferno, considerado simplesmente como parte da criação, é obra muito bela: é um esboço da inefável pureza do Onipotente; é um atestado dos esplendores da sua justiça. Mais: as argênteas linhas da sua misericórdia cruzam-se por sobre esse tenebroso abismo, pois ainda aí o pecado não é punido como o merece ser, e também as chamas vingadoras estão dia a dia pregando ao mundo e assim roubando-lhes milhões de almas que de outro modo seriam precipitadas no abismo e presas dos seus fogos. O inferno é um espetáculo terrivelmente belo.
Mais belo ainda, entretanto, é o purgatório, por ser ainda mais eloquente a justiça de Deus. Justiça para os pecados perdoados e para almas muito amadas por Ele. O purgatório é uma revelação mais completa da pureza divina do que o inferno, por exibir-nos a visão beatífica retardada em consequência dos pecados veniais ou já perdoados. Além disso, é uma demonstração de amor, o que o inferno não pode ser. Com efeito, mostra-nos os engenhosos artifícios da celestial compaixão, com o intento de multiplicar o número das almas salvas e impedir que, por covardia ou tibieza, se precipitem na ruína total. Assim, o purgatório, muito mais que o inferno, revela-nos os modos e os jeitos do nosso Pai celestial, permita-se-nos a expressão: impressões estas que o inferno, após longa meditação, não nos teria dado; e sob este ponto de vista, o purgatório é obra de maior beleza e perfeição que o inferno.
Mas, comparando-se sob o mesmo respeito o céu e o purgatório, torna-se evidente que o céu é obra muito mais bela e perfeita, pela simples razão de revelar-nos muitas coisas sobre Deus, isso independente de outras considerações óbvias. Com efeito, as obras de Deus são outros tantos espelhos, onde ele permite às suas criaturas contemplarem o reflexo das suas perfeições invisíveis e da sua beleza oculta e, conforme tal reflexão seja mais ou menos extensa, exata e clara, o espelho que a produz é mais ou menos perfeito. Um meio de determinar a perfeição de uma obra divina consiste em observar quantas perfeições divinas nele se refletem e com que grau, clareza e precisão.
Tais os cinco critérios, segundo os quais podemos aventurar-nos a julgar das obras de Deus; chamemo-los os cânones da beleza artística nas obras divinas. A beleza de Deus depara-se-nos em suas obras, na grandeza de sua condescendência, no grau da altura a que elas elevam as criaturas, no caráter puramente espiritual das suas obras; enfim, no maior número de perfeições divinas que nelas se reproduzem.
Seção II
Estes cânones acham-se todos reunidos na transubstanciação
Ora, todas essas excelências peculiares e cânones ou normas de beleza se congregam de modo notável na transubstanciação. A Encarnação, em favor de uma raça decaída, acrescida da humildade dos trinta anos de vida do Senhor, parecia degradar a misericórdia divina até à última profundeza.
(...)