Observação sobre a Ilustração da capa
Nossa Senhora do Rosário, de Francisco de Zurbarán, de 1633-34. Museu Wielkopolskiego, de Poznan (Polônia).
É uma das pinturas que melhor expressam a tradição do Rosário dos monges cartuxos. Ela está dominada por um rompimento de glória em que os anjos abrem umas amplas cortinas, aparecendo Nossa Senhora, sentada sobre um trono de querubins e coroada com dupla coroa: uma de rosas e outra real, combinadas. O Menino brinca sobre os joelhos da Mãe, abençoando a que o contempla.
A Virgem Maria, com sua direita, recebe numa bandeja o Terço que um anjo lhe apresenta. Na parte esquerda, outro anjo lhe entrega um buquê de rosas, as Ave-Marias, rezadas “em louvor de Deus e de sua bendita Mãe, a Virgem Maria”, como dirá Adolfo de Essen numa visão d’Ela.
Zurbarán representou assim a Maria em atitude de entregar o Rosário aos cartuxos ajoelhados sobre um formoso tapete no qual estão espalhados botões de rosas que expressam suas Ave-Marias.
Entre os monges a quem Nossa Senhora destina o Terço, estão, à sua direita: Henrique de Kalkar (†1408), Domingos de Tréveris (†1460), o qual dirige seu olhar diretamente ao trono de Maria. No lado esquerdo: João Rode (†1439 aprox.), pintado com as mãos juntas, nas quais se pode ver o anel e, no pescoço, a cruz peitoral, após ele Adolfo de Essen (†1439) e, mais atrás, aparece ainda outra figura apenas delineada, que poderia ser Tiago Meisenberg (†1484), o Cartuxo que iniciou a Domingos na devoção ao Rosário em sua forma anterior, ou um devoto de Nossa Senhora, desejoso de honrá-la com seu Rosarium, o Santo Rosário, recurso iconográfico muito comum entre os artistas.
Prólogo à presente edição
Após duas publicações deste trabalho — a da Editora Cultor de Livros (São Paulo, 2010) e a da Analecta Cartusiana (Salzburgo, 2012) — vem à luz esta terceira, da mesma Cultor de Livros, a fim de que todos aqueles que desejarem rezar o Rosário na forma original das Cláusulas, possam dispor do material necessário.
É bom lembrar em relação ao tipo de oração do Rosário da Virgem Maria, tão arraigada no Ocidente, como ao da chamada Oração de Jesus, no Oriente, que ambas nasceram no silêncio da vida monástica, dentro da escola meditativa de Maria (cf. Lc 2,19), que acolheu a Palavra de Deus antes em seu coração meditativo e só depois em seu seio virginal. Nessa oração, junto com o louvor divino que ela encerra, a consideração dos mistérios de Cristo e de Maria — “membro eminente e inteiramente singular da Igreja” (LG,53) — forma o pano de fundo, colocando-nos nessa mesma escola de acolhida do Verbo.
Sim, o Pe. Paschoal Rangel, SDN, assevera, numa linguagem poética e teológica, que
“o Rosário não é apenas uma louvação oral. É, muito profundamente, uma oração meditativa. E a meditação nos conduz a pensar amorosamente nos mistérios da vida de Jesus, ‘dentro do horizonte do mundo e da vida de Maria’. É Maria nos levando a participar do universo de seu pensamento e do seu coração, que todo se move em torno de Jesus. A gente vai, Maria nos conduzindo pela mão, comungar da própria ação salvífica de seu Filho” (Maria, Maria... Ladainha: invocações e metáforas feitas para louvar. Belo Horizonte. Ed. O Lutador, 1991, pp. 105-106).
Lembremo-nos de que nas origens do Rosário, os cartuxos da região do Rio Reno quiseram insistir sobre esses mistérios ou cláusulas; por isso, São Paulo VI chegou a dizer:
“É coisa conhecida que, exatamente para favorecer a contemplação e para que a mente estivesse sempre em sintonia com as palavras, se costumava outrora — e tal costume conservou-se em diversas regiões — ajuntar ao nome de Jesus, em cada Ave-Maria, uma cláusula, que chamasse a atenção para o mistério enunciado” (Marialis cultus, 46).
Como é importante acolher o Verbo! Sim, acolhê-Lo na fé operante pela caridade, como referência de nossa esperança, tal como fez Nossa Senhora. São Tomás de Aquino, como sempre genial, tem um texto que gostaríamos de reproduzir na íntegra, pois ele nos convence de como esta escola de Maria é a via privilegiada para que o homem que um dia se afastou de Deus pela desobediência, possa, pela obediência (ob-audire), a Ele voltar.
O santo diz assim:
“O Filho de Deus não é outro que o Verbo de Deus. Não é um verbo, uma palavra pronunciada ao exterior, porque o verbo exterior passa e desaparece. É um verbo, uma palavra concebida no interior. Assim o Verbo de Deus é um com Deus, segundo a natureza e igual a Ele. O verbo [a palavra que pronunciamos] não é da mesma maneira em Deus e em nós. Em nós, a palavra é um acidente. Em Deus, o Verbo é como o próprio Deus, visto que em Deus não há mais do que a essência divina. Por outro lado, ninguém pode dizer que não há Verbo em Deus, porque se fora assim, Deus não teria inteligência. Se Deus existiu sempre, igualmente [existiu] o seu Verbo.
Como o artesão executa todas as suas obras segundo o modelo elaborado de antemão com a sua inteligência, modelo que não é mais do que o seu verbo, igualmente Deus realiza todas as coisas pelo seu próprio Verbo, o qual é como a sua ciência e a sua arte. ‘Por Ele tudo foi feito’, declara São João.
Se o Verbo de Deus é Filho de Deus, e se todas as palavras de Deus são como semelhanças desse Verbo, convém-nos escutar essas palavras com todo o coração. Se as escutamos com gosto, não é sinal de que amamos a Deus? Devemos também crer nas palavras de Deus. Por esse motivo o Verbo de Deus, quer dizer, Cristo, permanece em nós. ‘Que Cristo habite em vossos corações pela fé’ (Ef 3,17), dizia São Paulo aos seus correspondentes.
É necessário também fazer sem cessar do Verbo, habitando em nós, o objeto de nossa meditação. Crer não é suficiente, é conveniente igualmente meditar. De outra maneira, a presença em nós do Verbo de Deus não seria de nenhum proveito. Pois bem, esse gênero de meditação é um grande auxílio contra o pecado. O salmista no-lo testemunha: ‘Conservei no coração vossas palavras, a fim de que eu não peque contra Vós’ (Sl 118,11). O homem justo exercita-se sem cessar nessa meditação: ‘Feliz o homem que medita a lei do Senhor dia e noite’ (cf. Sl 1,1-2), diz-nos ainda o salmista. Por isso São Lucas escreve a propósito da Virgem Santíssima que Ela ‘conservava todas estas coisas e meditava-as no seu coração’ (Lc 2,19).
Enfim, façamos nossa a recomendação de São Tiago: ‘Sede praticantes da Palavra, e não meros ouvintes, enganando-vos a vós mesmos’ (Tg 1,22)” (Sobre o Símbolo dos Apóstolos. Artigo II. Op. cit. pp. 138-139).
Que a Virgem Maria, aparecida em nossas vidas como aurora de salvação, nos leve, com seu Rosário, ao Sol de Justiça pelo qual nosso coração anela.
Ir. Vanderlei de Lima,
eremita de Charles de Foucauld
Prólogo à primeira edição
Como é bom e precioso descobrir o valor dum tesouro antigo conservado em nosso patrimônio, sua atualidade e fecundidade, fonte viva.
A cada tempo o Senhor nos concede o que mais nos convém. Hoje para alimentar nosso amor pela oração ele nos sensibiliza para “a leitura orante da Bíblia” que nos conduz ao Senhor Jesus. Compreendemos o valor e o gosto do modo de oração, simples, repetitivo, litânico, às vezes chamado
mantra.
O Rosário da Virgem Maria, forma de oração humilde e popular, contém e destaca estes valores.
Um dos caminhos de vivê-los é a oração do Rosário “com cláusulas” que foi cultivado na tradição cartusiana e é recomendado pela Igreja.
“O baricentro da
Ave-Maria, uma espécie de dobradiça entre a primeira parte e a segunda, é o nome Jesus. Às vezes, na recitação precipitada, perde-se tal baricentro e, com ele, também a ligação ao mistério de Jesus que se está a contemplar. Ora, é precisamente pela acentuação dada ao nome de Jesus e ao seu mistério que se caracteriza a recitação expressiva e frutuosa do Rosário. Já Paulo VI recordou na Exortação apostólica
Marialis cultus o costume, existente nalgumas regiões, de dar realce ao nome de Cristo acrescentando-lhe uma cláusula evocativa do mistério que se está a meditar. É um louvável costume, sobretudo na recitação pública. Exprime de forma intensa a fé cristológica, aplicada aos diversos momentos da vida do Redentor”.
[1]
“A fim de favorecer a contemplação e para que a mente concorde com a voz, diversas vezes foi sugerido pelos pastores e pelos estudiosos restabelecer o uso da cláusula, uma antiga estrutura do Rosário que, aliás, nunca desapareceu completamente.
A cláusula, que se harmoniza bem com a índole repetitiva e meditativa do Rosário, consiste numa proposição relativa que segue o nome de Jesus e relembra o mistério anunciado. Uma cláusula correta, fixa para cada dezena, breve no enunciado, em conformidade com a Escritura e a Liturgia, pode ser uma ajuda válida para a recitação meditativa do santo Rosário”.
[2]
O subsidio que nos é oferecido é uma partilha da Família Cartusiana do tesouro conservado em sua vida e tradição. São três exemplos do Rosário segundo a tradição das cláusulas.
A inserção da nova série dos “mistérios da luz”, no ciclo dos mistérios, pode ser uma oportunidade e meio para retomar ou introduzir a oração do Rosário com cláusulas, ajudando a compreender melhor a natureza e as possibilidades da oração do santo Rosário.
Como não podemos prestar atenção a tudo ao mesmo tempo, a oração do Terço é libertadora e não só liberta da necessidade da dar atenção a cada uma das palavras recitadas, mas a oração em cláusulas pode ajudar a superar o costume duma intenção em cada dezena, o que é válido, mas que pode desviar a atenção do mistério.
O Rosário é uma oração contemplativa, contemplar Jesus nos seus mistérios com Maria. Sua monotonia o enriquece e o próprio terço em nossas mãos nos amarra e nos liberta.
Além do ritmo de oração na vida cartusiana centralizado na Liturgia das Horas e na Missa de Comunidade, quantos rosários na oração pessoal e privada foram e são rezados pelos Cartuxos para eles e por nós Igreja de Jesus.
Apresento com alegria e segurança este modo simples e rico de orar.
+ Dom Paulo Moretto,
Bispo de Caxias do Sul.
Prólogo à segunda edição
A primeira edição deste pequeno trabalho, intitulado
O Rosário das Cláusulas. Uma Lectio orante com Nossa Senhora, apareceu em São Paulo em 2010, editada pela
Cultor de livros, sendo muito bem recebida.
No decurso desse trabalho, deparamos com diversas representações iconográficas cartusianas do Santo Rosário que, nesse momento, não condiziam com o nosso objetivo, e por isso não foram estudadas.
Graças à gentileza do Dr. James Hogg e da equipe de analecta cartusiana, da Universidade de Salzburg para editar temas de nossa Ordem, aproveitamos agora para publicar um estudo comparativo dos exemplares iconográficos mencionados que são uma testemunha a mais da história e da devoção do Rosário em suas diversas modalidades.
Mas como as imagens sozinhas não expressam suficientemente a realidade que as motivou, pensamos fazê-las preceder de uma segunda edição do trabalho realizado em 2010, aproveitando a ocasião para aprofundar melhor alguns aspectos. Os dois trabalhos aparecem, pois, juntos sob o título:
O Rosário das Cláusulas e a
Iconografia Cartusiana do Rosário.
[3]
Certamente que o Rosário nos coloca ante um tema fascinante: a busca daquela
oração contínua que os monges do Deserto procuraram com denodo e que na espiritualidade do Oriente fez surgir a chamada
Oração de Jesus e, na do Ocidente, a oração do
Rosário.
A fim de ver até que ponto a herança dos Padres do Deserto iluminou a oração dos Cartuxos do século XIV e, desse modo, influiu na configuração do Rosário, é interessante escutar o que o
Doutor estático, Dionísio de Rickel, o Cartusiano (†1471), nos diz:
“É muito útil ter uma fórmula que possamos repetir com facilidade a fim de elevar o espírito a Deus e manter a atenção dentro da finalidade própria da nossa vocação. Segundo são João Cassiano, alguns dos antigos monges empregavam este versículo: ‘Vinde ó Deus em meu auxílio! Senhor, socorrei-me sem demora!’ (Sl 69,2); outros preferiam este: ‘Iluminai a vossa face sobre o vosso servo; salvai-me pela vossa fidelidade! Senhor, que eu não fique defraudado, por vos ter invocado!’ (Sl 30,17). É evidente que podem ser empregadas outras fórmulas semelhantes, segundo o Espírito Santo nos sugerir. Eu mesmo escolhi este versículo que me pareceu muito proveitoso: ‘Criai em mim um coração que seja puro, ó meu Deus, e renovai-me intimamente com um espírito decidido’ (Sl 50,12). Cada vez que me encontro distraído, perturbado ou com pensamentos profanos, recito esse versículo e retorno, sem tardança, ali de onde me tinha caído e onde devo morar. As almas devotas de Nossa Senhora empregam a saudação angélica ou outras jaculatórias referidas a Maria. Se o podemos, entreguemo-nos a esses exercícios mais longa e frequentemente; eles nos reconduzem a nosso fim próprio, nos fazem crescer na pureza do coração (a apátheia), e nos preservam da dispersão”.[4]
Este monge da região renana, ao referir-se a alguns cartuxos que escolheram a fórmula da saudação angélica para sua oração pessoal, sem dúvida que tem em mente seus irmãos Cartuxos da mesma região do Reno, como Henrique Egher de Kalkar (†1408), Adolfo de Essen (†1439) e, sobretudo, Domingos de Tréveris (†1460), que desde 1409 promovia a utilização da Ave-Maria acompanhada por umas cláusulas da vida de Cristo e Nossa Senhora, pronunciadas estas verbalmente ou de forma mental.
Hoje em dia é bem reconhecido que tais monges foram os pioneiros do Rosário atual; portanto, é normal que junto a seus nomes, por vezes, apareçam representações gráficas dos mesmos na iconografia do Rosário, dentro da tradição cartusiana.
Que a Virgem orante nos ajude a ir a Jesus Cristo, seu Filho, fazendo memória de seus mistérios, pois só n’Ele está o caminho que nos conduz ao Pai, o qual nos guarda no consolo de seu Divino Espírito, que é nossa Paz.
Cartuxa Nossa Senhora Medianeira, Brasil.
Festa da Santa Mãe de Deus, 2014.
1. Um convite da Igreja ao Rosário das cláusulas
A oração do Santo Rosário é já, por si mesma, uma Lectio Divina, mas o Rosário que vai enriquecido por cláusulas dos mistérios de Cristo e de Maria, acentua ainda mais esse aspecto.
O Papa São Paulo VI, guiado pelo espírito conciliar de voltar às fontes de inspiração de toda vida cristã, em relação ao Santo Rosário, dirigiu à Igreja uma importante exortação em 1974, onde dizia:
É coisa conhecida que, exatamente para favorecer a contemplação e para que a mente estivesse sempre em sintonia com as palavras, se costumava outrora —e tal costume conservou-se em diversas regiões– ajuntar ao nome de Jesus, em cada Ave-Maria, uma cláusula, que chamasse a atenção para o mistério enunciado.[5]
Anos depois, em 2001, a Sagrada Congregação para o Culto Divino, no seu
Diretório sobre Piedade Popular, fez um elogio desta forma de rezar o Rosário, oferecendo inclusive algumas orientações, como vimos no texto citado Dom Paulo Moretto no prólogo da primeira edição deste trabalho.
Em 2002, São João Paulo II voltou de novo a mencionar as
cláusulas na sua Carta Apostólica
Rosarium Virginis Mariæ. Mas nem sempre é fácil dispor do material sobre essa forma de oração em língua portuguesa.
Pelo que temos conhecimento, as ditas
cláusulas, antes da primeira edição deste trabalho, só haviam sido publicadas num ótimo opúsculo sobre este tema, o do jesuíta alemão Karl Josef Klinkhammer.
[6]
Para fazer mais fatível o convite da Igreja a se aproximar desta forma de rezar o Rosário — uma vez comprovados os bons frutos da primeira edição —, é que o publicamos de novo, a fim de que possam ser ainda mais conhecidas essas
cláusulas, bem como as diversas formas de utilizá-las.
Agora bem, para valorizar melhor esta forma da reza do Rosário, é bom analisar antes, brevemente, o valor mesmo da oração cristã, para logo deter-nos em fazer um seguimento histórico da presente devoção e de como está configurada.
2. O valor da oração cristã
Sobre o valor desta oração cristã, convém começar afirmando com Clemente de Alexandria († ca.217) que:
a oração é um diálogo com Deus.[7] Orar é, pois,
conversar, ou, o que é o mesmo: é abrir o coração a um diálogo no qual o
outro quer me transmitir algo, a fim de poder eu dar-lhe uma resposta. Numa síntese mais precisa, a oração, na Sagrada Escritura, é receber com docilidade a “notícia” da
Boa Nova de Deus, para dar-lhe um retorno consciente e cordial.
(...)
[1] JOÃO PAULO II. Carta Apostólica
Rosarium Virginis Mariæ, [16-10-2002]. Ed. Paulinas. São Paulo, 2003.
[2] Diretório sobre piedade popular e liturgia — Princípios e orientações, [17-12-2001], n. 201.
[3] Nesta 3ª edição só publicamos o referente ao
Rosário da Cláusulas, sem incluir do tema da
Iconografia do Rosário na Cartuxa.
[4] Petite anthologie d’auteurs cartusiens, Grande Chartreuse, 1987, pp. 292-294.
[5] Exortação Apostólica
Marialis Cultus, [02-02-1974], n. 46.
[6] KLINKHAMMER, Karl Josef.
O Rosário. O Terço. A sua origem e a sua intenção primordial. Secretariado Nacional do Rosário. Fátima, 1998.