O presente volume pretende ser, antes de mais nada, um documento das capacidades espirituais e religiosas da criança. Procuramos deixar falar o máximo possível as próprias crianças, não somente por meio de suas palavras, colhidas ao vivo, como também através de desenhos. Este trabalho é o resultado de uma experiência de mais de 30 anos de catequese com crianças de três-quatro anos até onze-doze anos; neste primeiro volume nos limitamos a falar de tudo o que pudemos observar em crianças de até seis anos, exceção feita a algumas observações no primeiro capítulo e sobretudo no capítulo sobre a formação moral, no qual quisemos documentar o reflexo do trabalho executado antes dos seis anos sobre as motivações dos comportamentos na segunda infância.
O método adotado foi o da observação das crianças em centros de catequese especificamente preparados, privados e paroquiais; neles, uma vez por semana, as crianças passam boa parte da tarde, tendo, portanto, a possibilidade de desenvolver atividades livres, com a ajuda de um material que foi criado e gradativamente corrigido com base em suas reações. Além destes centros, o trabalho foi desenvolvido também em algumas escolas maternais e primárias e, desta forma, tivemos oportunidade de observá-lo em um contexto diferente, no qual a catequese se insere de maneira mais espontânea na vida das crianças.
[1]
Evitaram-se, salvo algumas raríssimas exceções, as pesquisas sistemáticas, procurando, ao contrário, colher, no decorrer de conversas em grupo ou a sós, o pensamento da criança. Particularmente indicativo foi observar a solicitação, por parte das crianças, para que lhes fossem repetidos várias vezes determinados assuntos e a utilização que elas faziam do material; quando as víamos permanecer constantemente como que encantadas frente à apresentação de alguns temas, e utilizar durante um longo tempo determinados elementos de material, quando isso se repetia em um longo espaço de tempo e com crianças de diferentes ambientes e mais ou menos da mesma idade, julgamos perceber nisto a indicação de que o argumento e a maneira de apresentá-lo respondiam aos interesses e às exigências da criança.
Dessa forma, foi se delineando vagarosamente um conjunto de elementos — poucos e essenciais — que a criança demonstrou absorver com alegria e naturalidade, e conhecer não de forma escolástica, mas como se fizessem parte dela, como se os tivessem sempre conhecido. No que diz respeito às parábolas, por exemplo, algumas foram simplesmente deixadas de lado e reservadas para uma idade mais madura, concentrando-nos em outras que haviam se mostrado objeto constante do apaixonado interesse da criança.
A experiência nascida em Roma com crianças de classe média logo se desenvolveu em novos centros, em ambiente agrícola e operário, em Roma e nos subúrbios, em outras cidades da Itália; na África (Chade), no Brasil, México e Estados Unidos, Canadá e Argentina, passando, então, pelo crivo de crianças de culturas diferentes. As reações das crianças de diversos ambientes frente aos argumentos que apresentamos neste livro foram sempre as mesmas. Isso nos induziu a pensar que não estávamos diante da reação pessoal desta ou daquela criança, mas sim frente a um fenômeno que dizia respeito à criança.
Nos dois primeiros capítulos falamos dos “atores” da catequese: Deus, a criança, o adulto. Procuramos documentar a existência de um misterioso vínculo entre Deus e a criança, laço que se manifesta talvez como decorrência de alguma solicitação — mesmo que mínima e extremamente discreta — por parte do adulto, mas que subsiste na infância mesmo em casos de “desnutrição” espiritual, e parece preceder qualquer instrução religiosa.
As manifestações de alegria serena e pacificadora, observadas na criança em contato com o mundo de Deus, nos permitiram constatar que a experiência religiosa corresponde na criança a uma “fome” profunda. A experiência religiosa é fundamentalmente uma experiência de amor, e o amor é, para o ser humano, essencial à vida. O homem não se satisfaz somente vivendo, mas vivendo amado e amando. Portanto, nos perguntamos se a criança não encontra no fato religioso a satisfação de uma exigência existencial a ponto de influir sobre a formação harmônica de sua personalidade e, na ausência desta satisfação, algo que incide negativamente. Gostaríamos de recordar as palavras de Bultmann, segundo o qual o fato religioso tende à “complementação do ser”. Esta “fome” é mais sentida e evidente na criança, que é particularmente rica de amor e necessitada de amor, quase como se houvesse uma certa conaturalidade entre ela e Deus, que é Amor.
O presente trabalho não leva em consideração crianças abaixo dos três anos, porque a nossa experiência tem início nesta idade. Nós, porém, vemos nisto uma limitação muito negativa. É fato, contudo, que a partir dos três anos é possível observar nas crianças determinadas manifestações, sobretudo de oração, que não podem brotar do nada, e que nos fazem pensar na presença, na idade precedente, de potencialidades pouco ou nada conhecidas. Em que elas consistem e como poderiam ser estimuladas é algo, ao menos para quem escreve, totalmente desconhecido.
Com relação ao adulto, tentamos esclarecer no 2º capítulo o caráter e os limites de sua função, que pode ser definida como a do “servo inútil” porque está a serviço de uma potencialidade na criança, que não é sua, e de uma Palavra que não lhe pertence, porque os resultados de seu trabalho ultrapassam sempre as premissas; todavia, deve ser “servo”, isto é, não pode eximir-se de um serviço, que é necessário para a criança e também para a Palavra de Deus, tendo bem presente que frente a ela não somente não há mais grego, nem israelita, nem sequer — acreditamos nós — adultos e crianças; diante dela somos todos ouvintes de uma mensagem que, através de fatos e palavras, Deus dirige ao seu povo. Esta mensagem especial pode ser acolhida somente através de uma escuta coletiva, em que a voz da criança pode ter, às vezes, tons mais fortes e profundos do que a do adulto.
Nesta perspectiva, o centro de catequese é um lugar em que a comunidade das crianças e seus catequistas vivem juntos experiências de caráter religioso. O centro de catequese é um lugar em que se celebra a Palavra de Deus, escutando e rezando, onde juntos se medita, reflete-se e se trabalha. É o lugar em que a criança pode fazer tudo isso em seu ritmo, que é mais lento do que o do adulto, preparando-se desta forma para participar mais conscientemente da vida da comunidade dos adultos.
Nos capítulos descritivos que se seguem, explica-se como procedemos ao apresentar cada argumento, ou melhor, como, depois de muitas experiências, chegamos a apresentá-los; indicamos e comentamos as reações mais frequentemente observadas nas crianças, procurando, mesmo que de maneira inadequada, suas razões psicológicas e teológicas.
Os grandes temas tratados com as crianças são: Cristo - Bom Pastor, que nos protege e nos defende, com o qual “nos sentimos bem”, de acordo com uma expressão frequente nas crianças, e a Eucaristia, como "Sacramento do Dom” que o Pai nos faz de Sua presença em nossa vida, presença dinâmica, que provoca em nós uma resposta. Cristo-luz e o batismo, como o ato com o qual Ele nos transmite a sua luz/vida de Ressuscitado. O reino de Deus — também poderíamos falar do mistério da vida — como a misteriosa e preciosa presença, em nós e ao nosso redor, da força vitalizadora de Deus, que nos sustenta, nos conduz e nos faz crescer. Estes são elementos que dão, antes de mais nada, segurança e, respondendo, portanto, a uma exigência particularmente sentida na infância, estabelecem a relação com Deus em um plano de fé, de confiança e abandono. A criança, o adolescente e o adulto integrarão este plano com base nas diferentes exigências das diversas idades, de modo que o semblante de Deus se enriquecerá gradativamente de outros aspectos: o Deus que não somente doa o Seu amor, mas que perdoa; o Deus que, em Cristo, nos propõe um ideal de vida heroica; o Deus que busca no homem uma relação nupcial.
Ademais, os elementos que mencionamos colocam em evidência o elemento do regozijo no fato religioso. De fato, acreditamos que a infância é o período de regozijo sereno de Deus, em que a resposta que a criatura dá a Deus consiste em aceitar, na alegria plena, o dom. O momento de uma resposta diferente, que envolva o homem inclusive no esforço e na luta, chegará, mas devemos respeitar as etapas do desenvolvimento humano.
Seguem-se aos capítulos descritivos três capítulos de caráter mais sistemático. No primeiro deles, “A formação moral”, observa-se como o anúncio cristão — feito na infância sem nenhuma referência moral e com a única finalidade de que a criança o receba e desfrute dele — se reflete mais tarde na segunda infância também no plano dos comportamentos. Pareceu-nos ver que o anúncio tem um efeito imediato de caráter gozoso, e um outro de mais longo prazo no plano dos comportamentos, pelo qual a vida ética, concretizada nas ações, se desenvolve com base em realidades amadas e usufruídas. Julgamos ter aqui uma prova do fato de que tudo o que a criança recebeu na
infância deu consistência à sua vida. No capítulo sobre o “Método dos sinais” procurou-se colocar em evidência o seu caráter religioso. O método dos sinais é um método indispensável — parece-nos — quando se quer falar da realidade transcendente, portanto o nosso discurso não pode ser outra coisa senão uma aproximação. O uso de um método diferente que, ao invés de falar através de imagens e em tom alusivo, usa uma linguagem abstrata e pretende definir, arrisca-se a desnaturalizar o conteúdo que pretende transmitir, porque o método deve de alguma maneira ser da mesma natureza de seu conteúdo.
Além do mais, este método não é somente um meio necessário de iniciação ao cristianismo — em que Cristo é o “sinal” máximo do Pai —, mas também um instrumento de formação na mentalidade de fé, uma maneira de acostumar-se a não limitar o nosso campo cognoscitivo à realidade tangível e visível, para aprender a ler os “sinais” não somente na Bíblia e na liturgia, como também no mundo que nos rodeia.
No capítulo final, enfim, nos perguntamos se a nossa catequese pode ser definida como antropológica; procuramos esclarecer que ela pode ser considerada como tal não enquanto baseada sobre a experiência individual da criança, mas, antes, sobre a sua estrutura de fundo. Isto é, não procuramos o sustentáculo antropológico da mensagem nesta ou naquela experiência vivida pela criança, mas em suas exigências vitais, que podem ser sintetizadas — como dizíamos — em sua necessidade de amar e ser amada. A experiência oferece como base para a mensagem um campo já trabalhado — e às vezes desgastado — pela vida transcorrida, e de qualquer forma limitado; a exigência, ao contrário, é como uma “fome” à espera de ser saciada, como uma mola pronta para ser acionada e, em comparação com a experiência, apresenta-se como um dinamismo virgem. Frente a uma certa exigência de fundo na criança, procuramos satisfazê-la com um alimento religioso.
O que nos pareceu mais significativo foi, além disso, observar como os temas, isoladamente apresentados à criança, convergiam em sínteses, frequentemente ricas em conteúdo teológico, nas quais o Bom Pastor tinha um lugar dominante. Muitos desenhos reproduzidos neste volume documentam este fato: a Eucaristia é o pasto ao qual o Pastor chama as suas ovelhas para nutri-las com o seu amor; com o batismo a ovelha é acolhida no redil e recebe a luz, torna-se uma “ovelha de luz”. A oração é normalmente de louvor e ação de graças ao Pastor que nos acolhe “em seu belo redil”. A figura do Pastor se sobressai ao lado da Gruta de Belém, e Bom Pastor e Círio pascal são duas imagens que se equivalem; o Natal e a Páscoa são vistos, portanto, como a vicissitude histórica do Bom Pastor. É notável o fato de que tal unidade tenha resultado das expressões verbais ou gráficas das crianças, ainda antes de estar claramente definida na mente dos catequistas. Nós nos limitávamos a apresentar cada um dos argumentos, visando individualizar qual seria o aspecto de Deus que corresponde às exigências dos pequenos e quais os meios com que apresentá-lo. Um fenômeno semelhante de convergência espontânea de cada elemento da mensagem cristã com relação à figura do Bom Pastor — constante em grupos de crianças de ambientes os mais diversos — estava sempre associado àquelas manifestações de paz serena, de sensação de saciedade profunda a que fizemos alusão. Então nos perguntamos se a pessoa do Bom Pastor não seria a figura em que se satisfazia de maneira específica aquela exigência religiosa observada na criança.
A experiência religiosa — dizíamos — coincide com a exigência vital mais essencial, enquanto experiência de amor. O Bom Pastor
dá a vida por suas ovelhas e veio para que
elas tenham vida e a tenham com muita abundância; a parábola nos anuncia uma plenitude de amor, que coincide com uma plenitude de vida. O dom de amor de que fala a parábola não é uma abstração, nem tampouco é um dom de coisas; o Bom Pastor se dá a si mesmo por suas ovelhas: dá seu cuidado, sua presença, sua orientação, consumando tal doação na morte, porém, uma morte que o leva à ressurreição.
O dom de amor do Pastor, portanto, não satisfaz somente a nossa exigência vital mais profunda, mas realiza aquela que parece ser a lei fundamental da vida. Em cada nível da realidade, a vida parece desenvolver-se através de “mortes” sucessivas que levam a formas de vida mais plena. É uma lei que vemos realizar-se à nossa volta, na natureza e em nós mesmos, em que a vida se desenvolve através da “morte” da criança e do adolescente que éramos para alcançar níveis cada vez mais completos. O segredo da realidade parece ser esta contínua passagem do “menos” para o “mais”, de uma morte para uma ressurreição. O segredo da realidade parece ser uma semente de vida escondida, às vezes, nos elementos mais opostos a ela. O germe da ressurreição está presente também na morte e quanto mais se minimiza e se esconde, mais parece tornar-se potente e capaz de levar a vida a realizações maiores. O mistério cristão nos parece a expressão emblemática e historicizada de uma lei que rege o desenvolvimento de todo o universo. A mensagem cristã, longe de afastar da realidade, longe de constituir uma superestrutura, enraíza-se no mais profundo do homem e de toda a realidade; nutre o homem em sua “fome” mais insuprível e o ilumina acerca de tudo que o rodeia. É exatamente nesta sua correspondência em relação às necessidades do homem e à realidade que encontra explicação — parece-nos — aquele sentido de plenitude gozosa que a criança sente em contato com Ele. Evidentemente, a parábola do Bom Pastor é captada em sua riqueza só de maneira progressiva; mas é importante — a nosso ver — basear a catequese em poucos elementos essenciais, capazes de entreabrir-se frente à criança, à medida que ela se torna adolescente e adulta, e de levá-la em direção a uma compreensão cada vez mais profunda do real.
Poderemos ficar surpresos ao ouvir falar em catequese — embora a palavra mais apropriada fosse evangelização — com relação às crianças abaixo dos seis anos, e ver que se dá a ela uma certa sistematicidade, indicando um determinado número de argumentos a serem apresentados assim como uma ordem de sucessão ligada ao ano litúrgico
[2].
De maneira geral, julgamos que um vago teísmo não pode substitui-la, mas que a religiosidade tende necessariamente a configurar-se em uma determinada religião.
Querer permanecer em um determinado plano de religiosidade sem conteúdos equivaleria — como dizia Santayana — a querer falar uma língua sem utilizar nenhuma linguagem falada. Se pretendo falar de Deus, devo usar uma linguagem, e a linguagem com a qual falo de Deus recebe o nome de religião positiva. Se depois entramos em terreno cristão, cada menção vaga entra em especial contraste com o caráter encarnado do cristianismo; a transmissão da mensagem é primordial e fundamental, pois se trata de uma religião baseada sobre uma Pessoa e um fato que não se pode conhecer caso não tenham sido anunciados. O cristianismo não pode ser captado, como é possível numa religião de caráter naturista, pela simples observação de tudo o que vemos. Marrou fala do cristianismo como de uma “religião douta’’. Isso vale para os adultos e, a nosso ver, para as crianças. Toda a psicologia moderna coloca em evidência as incríveis capacidades da infância; haveria, então, uma exceção somente para o que diz respeito ao terreno religioso? Em um período em que se fala da criança capaz de ler aos três anos, seria ela irremediavelmente “analfabeta” somente no que diz respeito à religião?
É evidente que não pretendemos fazer da criança um teólogo imberbe (entendendo teólogo no sentido pejorativo da palavra). Tudo o que estamos afirmando pode suscitar perplexidade se, falando em catequese ou evangelização, tivermos em mente uma apresentação abstrata e sistematizada ao estilo dos manuais. Não é nada disso que daremos à criança, mas tentaremos colocá-la em contato com as “fontes” por meio das quais Deus se revela e se comunica de forma viva, isto é, a Bíblia e a liturgia, adequadamente dosadas. Com isso, gostaríamos que também a criança participasse daquela renovação que está realizando na Igreja em nossos dias, como resultado de uma crescente familiaridade com as “fontes”. Gostaríamos que a criança encontrasse um lugar mais evidente na comunidade cristã que hoje em dia se coloca em uma posição especial de escuta ante a Palavra de Deus. Gostaríamos que, ao lado do adulto, e juntamente com ele, fosse contada entre o número de “ouvintes”.
Nas “fontes” encontramos os elementos necessários para iniciar a criança na leitura da terceira “fonte” da catequese: a vida. Veja-se especialmente o capítulo: “A educação para a admiração e o ‘Reino de Deus’”, no qual se explica como, por meio de algumas parábolas, ajudamos a criança a abrir os olhos com deslumbramento e encanto sobre o milagre da vida e sobre o mundo que a rodeia.
Não é sem receio que nos damos conta que propomos (especialmente nos capítulos 4 e 11) algumas coisas que não correspondem à direção atual da catequese. É evidente que não pretendemos fazer nenhuma afirmação categórica; pretendemos somente comunicar aquilo que nos pareceu ter sido visto até agora durante uma experiência suficientemente longa e com crianças dos mais diversos ambientes, em que a observação da criança foi o nosso princípio condutor. Pensamos também que uma gota no mar — como pode ser a nossa experiência, mesmo que estendida à de numerosos ex-alunos e colaboradores — pode, entretanto, ter algum valor ao explorar o misterioso mundo da criança e de sua relação com Deus. Para quem compartilhar dos alguns pontos aqui expostos, pedimos que os entendam não como um ponto de chegada, mas como um ponto de partida, para uma indagação mais ampla e profunda. Por tudo que houver de bom nestas páginas, e sobretudo pelo trabalho de que elas são expressão, agradecemos profundamente a Deus, que quis colocar-nos, através da criança, a serviço da sua Palavra, e com ela nos conduziu para uma compreensão mais essencial desta
[3].