PREFÁCIO DA PRIMEIRA EDIÇÃO FRANCESA
Quem fizer um estudo aprofundado dos autores de espiritualidade notará uma diferença sensível entre os ensinamentos dos antigos e os da maioria dos autores modernos. Uns e outros estabelecem que a perfeição só pode ser adquirida pelo auxílio da graça e que exige grandes esforços. É a doutrina católica adotada por todos. Os modernos, porém, fazem sobressair a parte da vontade na aquisição da perfeição; não fazem mais que expor as lutas que a alma deve travar contra os seus defeitos e as virtudes que deve praticar; mas não se aplicam em mostrar os auxílios poderosíssimos que são concedidos às almas plenamente fiéis, e os frutos preciosos que obtêm. Os autores antigos, pelo contrário, salientam principalmente a parte da graça, os efeitos admiráveis que opera nas almas generosas, as luzes que concede, o desprendimento que produz, a intimidade com Deus, doce, familiar e cheia de amor que torna possível, e pintam com cores vivas a felicidade da vida perfeita. Assim é que Clemente de Alexandria, declarando ter recebido sua doutrina dos apóstolos, fala longamente do gnóstico, isto é, do homem sábio da ciência sobrenatural e plenamente esclarecido por Deus; faz sobressair o seu desprendimento absoluto, o seu completo abandono, a paz profunda de que goza, as suas grandes virtudes, a sua perfeita semelhança com Deus. Dionísio, o místico, cuja doutrina sempre foi tão apreciada pelos santos e pelos doutores, e que tanto insistiu sobre as três fases da vida espiritual: purgação, iluminação, união, refere-se, com frequência, à ciência inexprimível, mas muito elevada, que Deus dá às almas muito fiéis e à união toda de amor que se estabelece entre ele e essas almas. São Máximo, Talássio, Hesíquio, falam também com entusiasmo da inefável união da alma com Deus e dos frutos de virtude que produz. Cassiano, que, no entanto, sob a influência da heresia meio-pelagiana, tende a exagerar a parte da vontade e a diminuir a da graça, depois de ter afirmado a ligação íntima que existe entre a perfeição da oração e a perfeição da virtude, descreve um belo quadro da perfeita oração, em que a alma mergulha na contemplação da Divindade e se une intimamente a Deus por uma oração contínua, que outra coisa não é senão o exercício do puro amor, e declara que este é o fim a que deve tender o servo de Deus, e o dom que Deus concede às almas generosas (Conf. IX e X). São Gregório, igualmente, exalta as vantagens da vida perfeita em que a alma compreende mais do que pode exprimir, em que recebe mais do que pode conceber, em que é favorecida por uma paz profunda, livre dos desejos terrestres e fortalecida na prática das virtudes. São Bernardo, em seu tratado “Da conversão”, convida o pecador convertido, depois de ter chorado e reparado suas faltas, a desejar os benefícios espirituais, o paraíso das delícias interiores: “Paradisum voluptatis internae”. Se o souber procurar, encontrará por certo esse paraíso, esse canteiro ornado das mais belas flores, em que se respiram um frescor delicioso; porque, afirma ele, não mente aquele que disse: “Tollite jugum meum... et invenietis requiem animabus vestris”: “Tomai o meu jugo e encontrareis o repouso de vossas almas” (De conversione ad cler., cap. XII, XIII, XIV). Nos seus belos sermões sobre o Cântico dos Cânticos, fala em termos comovedores do beijo divino; descreve muitas vezes e com satisfação os encantos que contém esse beijo, as visitas que o Esposo divino faz à alma, a união muito íntima que contrai com ela, as graças que lhe concebe, as virtudes com as quais a adorna. Assim também Ricardo de São Vítor, que, na Idade Média, gozou de grande autoridade como autor espiritual da “Scala claustralium”, tão apreciado por Suarez, os autores dos opúsculos: “Paradisus animae, de adhaerendo Deo”, S. Boaventura e outros, compraziam-se em mostrar as grandes vantagens da vida interior perfeita. Encontramos as mesmas exortações nos grandes místicos do século XIV: Ruysbroek, Tauler, Suso. Esses também gostam de comentar as palavras do Espírito Santo: “Gustate et videte quoniam suavis est Dominus”: “Provai e vede quão suave é o Senhor”. “Mihi adhaerere Deo bonum est”: “é doce unir-me a Deus”. Tauler, principalmente, não se cansa de repetir, sob uma forma sempre nova, esta grande verdade: Dai-vos a Deus e Deus dar-se-á todo a vós; renunciai à vossa vontade para fazer a sua, e ele mesmo fará a vossa; abandonai-vos a Deus em tudo, e Deus proverá a todas as vossas necessidades corporais, a todos os vossos desejos espirituais, com uma magnanimidade e uma liberalidade que todas as criaturas juntas não saberiam ter. O autor da “Imitação” se apraz em repetir que a alma que vive da verdadeira vida interior e se entrega toda a Deus, é bem recompensada já neste mundo de todos os seus sacrifícios: “Frequens illi visitatio cum homine interno, dulcis sermocinatio, grata consolatio, multa pax, familiaritas stupenda nimis”: Deus visita sempre o homem interior, seus colóquios são doces, suas consolações encantadoras, sua paz é inesgotável e sua familiaridade incompreensível, etc., etc. (Livro II, cap. I). S. Inácio escrevia, em 1548, a S. Francisco de Bórgia, convidando-o a esforçar-se por obter do divino Mestre seus “dons muito santos como o dom das lágrimas... a alegria e o repouso espiritual, as consolações intensas, etc., sem as quais os nossos pensamentos, palavras e obras são imperfeitos, frios e turvos”. E S. Inácio tinha certeza que esses dons seriam concedidos a seus discípulos, pois diz em sua constituição: “Quanto aos religiosos que receberem uma formação plena, é certo que serão homens espirituais. Eles não caminharão e, sim, correrão no caminho de Deus. É, por conseguinte, inútil prescrever-lhes o quer que seja em matéria de orações, meditações, penitências: Uma única regra lhes basta: amor e discrição sob a sanção dos superiores”. “S. Inácio contava, pois, conclui justamente o padre Ciou, que seus filhos saíssem do período de formação... de tal modo habituados à oração, que não lhes fosse mais necessária outra direção senão a do Espírito Santo, controlada pela obediência” (Espiritualidade de S. Inácio, II, p. 23). S. Teresa, em todos os seus escritos, esmera-se em mostrar o que o autor da “Imitação” chama “os maravilhosos efeitos do amor divino”. Falando daqueles que se dão a Deus sem reserva, diz: “Esses são seus filhos prediletos a quem desejaria ver sempre a seu lado e dos quais nunca se separa, porque esses mesmos não querem separar-se dele. Fá-los sentar à sua mesa, dá-lhes os alimentos com os quais se nutre, e vai, por assim dizer, até a tirar o pedaço da própria boca para dar-lho” (Caminho da perfeição, cap. XVI). S. João da Cruz não faz outra coisa em seus escritos senão ensinar o que é a vida unitiva com suas graças preciosas de amor infuso, mostrando os verdadeiros meios de atingi-la, de nela manter-se e progredir, fazendo desse caminho, todo de amor belas descrições que levam a apreciar grandemente e desejar vivamente tais graças. S. Francisco de Sales compôs o seu livro do Amor de Deus “para as almas adiantadas na devoção”. É um tratado completo da vida de amor ou vida unitiva, em que o santo doutor expõe quais os sentimentos, as disposições interiores, os métodos de oração e também as virtudes admiráveis daqueles que alcançaram o perfeito amor. No trabalho curto, porém substancial, em que os discípulos do padre Lallemand lhe condensaram a doutrina, tudo diz respeito à perfeição: vê-se lhe a natureza, a excelência, as imensas vantagens, os obstáculos que impedem a sua aquisição, os meios mais seguros de obtê-la; os frutos do Espírito Santo, e as virtudes que Deus concede às almas muito interiores. O padre Surin, discípulo do padre Lallemand, relembra constantemente as riquezas espirituais e todos os grandes benefícios que são o apanágio das almas perfeitas. O diálogo de S. Catarina de Sena, compêndio das revelações feitas à santa dominicana pelo Padre Eterno, e que ela revelava durante os seus êxtases, continha longas e belas descrições do estado unitivo, das luzes concedidas às almas unidas, de suas obras, de suas grandes virtudes, das admiráveis prerrogativas do perfeito amor. Encontram-se também, no compêndio das revelações feitas a S. Madalena de Pazzi, belas páginas sobre as disposições das almas perfeitas. E por que se aplicam esses grandes mestres, e tantos outros cujos nomes seria longo citar, em apresentar a seus discípulos a lista dos favores que o Senhor concede àqueles que lhe estão unidos por um verdadeiro amor? É a fim de lhes excitar o zelo, de torná-los corajosos e enérgicos nas lutas necessárias para adquirir a perfeição. Quando os hebreus chegaram a pequena distância da terra prometida, ordenou o Senhor que fossem enviados doze exploradores ao país a ser conquistado. Evidentemente, queria que a descrição que fizessem ao voltar dessa terra magnífica, onde corriam o leite e o mel, excitasse o ardor dos israelitas e lhes abrasasse o ânimo. É a mesma razão que levava os grandes mestres a traçar tão belos aspectos da vida perfeita. S. Teresa, o declara francamente: “Com que fim pensais, minhas filhas, que eu vos tenha mostrado o termo, e feito conhecer a recompensa antes do combate, dizendo-vos qual a vantagem para a alma de beber nessa fonte celeste e de desalterar-se em suas águas vivas? É a fim de que não desanimeis com os trabalhos e contradições que se encontram no caminho, e que caminheis com coragem, sem ceder ao cansaço; pois poderia acontecer que, ao chegardes à fonte e faltando apenas o último esforço de beber água, abandonásseis o projeto e perdêsseis tão grande benefício, por desesperardes de atingi-lo, e vos julgardes incapazes de consegui-lo (Caminho da perfeição, cap. XIX, sub fine). Como o faz notar alhures essa grande santa, a necessidade desses estímulos se impõe, porque a renúncia total é muito dura à nossa pobre natureza e só o pensamento dos bens que procuramos pode confortar- -nos a alma: “Parece bem rigoroso dizer que não nos devemos conceder nenhuma satisfação no quer que seja, mas é porque não se fala nas doçuras e nas delícias que acompanham essa renúncia, bem como em todas as vantagens que nos trazem mesmo nesta vida” (Ibid. cap. XII). Os autores modernos quase nunca descrevem os preciosíssimos frutos do amor perfeito; dão, é certo, excelentes conselhos, mas não oferecem às almas essas esperanças tão reconfortantes, não fazem reluzir a seus olhos os esplendores da terra prometida, não lhes mostram as belas paisagens, o clima ameno, os frutos deliciosos. Traçam as regras da via purgativa e da iluminativa, ensinam a progredir nessas duas vias, mas não falam, ou muito pouco, da via unitiva, não lhes dão a conhecer os encantos, não incutem um ardente desejo de possuí-la. Para empregar uma comparação de S. João da Cruz (Subida, II, 13), eles ensinam a subir a escada que conduz aos apartamentos reais, porém evitam de falar dos favores concedidos pelo rei àqueles que são admitidos à sua intimidade, ou do que terão de fazer, uma vez introduzidos no aposento do bem-amado Soberano. “Não falemos de tudo isso, dizem eles, com receio de ilusões; aplicai-vos somente a subir a escada”. Assim se dirigem mesmo àqueles que transpuseram os degraus dessa escada e já se acham junto do Rei. De onde vem tão notável diferença? Parece-nos evidente que, se a maior parte dos autores modernos não descreveu com a mesma atenção dos grandes mestres o estado unitivo, é que o não compreenderam da mesma maneira. Dissemos em outro lugar (Vida da união a Deus), que no século XVI, teólogos de talento, após o célebre Melquior Cano, tiveram prevenções lamentáveis contra a espiritualidade em geral, e, em particular, contra a mística, que combateram com um zelo mais ardente que prudente. Induzidos em erro pelo temor excessivo do iluminismo e do quietismo, lançaram a suspeita sobre os ensinamentos dos melhores autores espirituais, e fizeram escola, pois data dessa época uma infeliz oposição aos verdadeiros princípios da mística, bem como a alteração da doutrina tradicional. Esse movimento acentuou-se ainda no fim do século XVII e durante todo o século XVIII. Desde então muitos autores não tiveram a verdadeira noção da via unitiva; não viram, sobretudo, o papel importante e decisivo que representam nesse caminho os dons do Espírito Santo. Os antigos explicavam os progressos das almas plenamente fiéis pelas graças místicas, e entendiam por aí graças de luz e de amor, graças de luzes devidas aos dons de inteligência, de ciência, de sabedoria, que esclarecem a alma e lhe aperfeiçoam a fé, graças de amor infuso, amor irrefletido, porém intenso e puro que fortifica a alma fiel e a mantém estreitamente unida a Deus. Os modernos, ao contrário, preocupados em diminuir o entusiasmo excessivo de alguns pelos favores místicos, aplicam-se em lhes depreciar a importância. Foram levados por aí a lhes dar uma noção muito diferente: apresentaram-na como graças “gratis datae”. Ora, as graças “gratis datae”, úteis para o bem do próximo, não têm ligação alguma com a perfeição daquele que as recebe; podem ser estímulos, mas, nunca, meios; são, portanto, puramente acessórias, e mesmo, é preciso dizê-lo, supérfluas. Pelos nossos esforços, pela nossa fidelidade, ajudados pela graça, podemos atingir os mesmos cimos de santidade a que são levadas as almas místicas pela ação de Deus”. Estas palavras, que copiamos de um teólogo contemporâneo, resumem bem o ensinamento ordinário da maior parte dos autores modernos. Por conseguinte, acrescentam eles, a alma pode elevar-se a uma grande perfeição, tanto pelo auxílio de uma simples meditação, quanto pelas orações mais elevadas em que se exercem as graças místicas. Esses autores foram levados a ensinar por aí que há duas vias unitivas muito distintas, uma, que chamam de extraordinária, e à qual não querem que aspiremos, é aquela em que a alma é favorecida por graças místicas; a outra, a via unitiva ordinária, a única desejável, é aquela que a alma atinge por suas próprias forças, com o auxílio das graças comuns, graças que levam à prática das virtudes cristãs ordinárias e que são dadas a todos, aos principiantes e aos perfeitos, aos fracos e aos generosos. Deixando o que chamam a via extraordinária aos cuidados dos autores que escrevem tratados especiais sobre os favores excepcionais, como visões, revelações, etc., eles não querem falar senão da via unitiva ordinária tanto nas exortações, como nos livros de espiritualidade. Descrevem-na como sendo aquela em que a alma submeteu plenamente sua vontade à de Deus, o que é muito exato, e limitam-se a essa declaração, não achando mais nada a acrescentar ao que já disseram quando trataram da via iluminativa, pois, na sua opinião, a via unitiva não difere da iluminativa senão por uma energia maior e uma maior firmeza na prática das virtudes. Essa mudança, no ensino da espiritualidade, nos parece lamentável e julgamos muito oportuna a volta à antiga doutrina. Não se pode fazer coisa melhor que seguir os grandes mestres. Quanto mais for dado às almas compreender as belezas e as vantagens da perfeição, tanto mais a desejarão, tanto mais esforços generosos farão, e tanto mais numerosas serão as que a atingirão. O fim do presente trabalho é fazer aspirar à vida unitiva. É fazer compreender que as almas unidas são muito agradáveis a Deus. É mostrar que ele as trata como privilegiadas, e lhes dá graças particulares que conduzem às virtudes perfeitas. É fazer ver o quanto elas são poderosas para o bem. É ensinar o que é necessário fazer para chegar ao estado de união. Tal é o nosso plano. Parece chegada a hora em que, segundo os desígnios da Providência, o reino do Coração de Jesus deve estabelecer-se no mundo. Ao inspirar ao santo Pontífice Pio X seus memoráveis decretos sobre a comunhão frequente, Jesus mostrou que queria dar-se com profusão a seus filhos. Daí já resultam grandes frutos e devemos esperar outros, maiores ainda. Mas para que Cristo dilate seu reino, é preciso, antes de tudo, que o número de seus verdadeiros amigos, daqueles de quem fez seus principais elementos de graça, seus mais poderosos auxiliares, se multipliquem na Igreja. Graças a eles, então, os infiéis voltarão à verdadeira fé, muitos pecadores se converterão, os cristãos em grande número se aplicarão à piedade, as almas do purgatório ficarão aliviadas, grande será a alegria no céu, e Deus receberá de seus filhos uma imensa glória.