Diz um velho axioma teológico que a Natureza e a Graça nada fazem sem razão de ser, pois Natureza e Graça têm suas leis próprias. A saúde, o crescimento, o desenvolvimento de nossa vida espiritual, tanto natural como sobrenatural, estão submetidos a condições bem definidas. Pode-se transgredir essas leis em certos casos especiais, quando uma forte emoção, uma aflição da alma, uma circunstância especial qualquer, legitimam ou desculpam essa transgressão. Nem sempre, porém, isso se dá sem perigo. Assim como a vida do corpo se atrofia ou é afetada quando violamos as condições fundamentais de seu desenvolvimento, também a vida do espírito e da religião periclita e perde a sua frescura, força e unidade.
O que acima se disse aplica-se particularmente à vida espiritual regular de uma comunidade. Na vida do indivíduo, o excepcional tem um campo de ação muito mais vasto. Mas quando se trata de um grande número de pessoas reunidas, desde que se leve em conta o conjunto de instituições, práticas e orações que regula de modo permanente a piedade coletiva, a observância das leis fundamentais de uma sã vida do espírito, natural e sobrenatural, torna-se um problema existencial. Pois agora não se trata de modalidades da atitude espiritual da criatura em face de Deus, mas de entidades estáveis, exercendo de modo permanente a sua influência sobre a alma. Essas entidades não têm por fim exprimir estados de alma particulares, mas correspondem mais à existência normal de cada dia. Exprimem não a vida interior de determinada pessoa, com o seu temperamento peculiar, mas a vida interior de uma comunidade formada dos mais diversos elementos espirituais. Assim é fácil perceber que qualquer falha inicial se desenvolverá irresistivelmente na alma. A princípio essa falha poderá conservar-se encoberta pelas emoções, pelas necessidades morais, pelas circunstâncias especiais e particulares que tenham originado a atitude espiritual em questão. Mas desde que tais circunstâncias de tempo e lugar desaparecem, desde que o estado de alma regular se restabelece, também aparecerá, crescerá e se desenvolverá em profundidade e amplitude a falha inicial.
Essas condições básicas mostram-se com a maior clareza sempre que a vida religiosa de uma grande comunidade se desenvolveu de modo contínuo através um largo espaço de tempo. As leis essenciais tiveram ocasião de manifestar nela todos os seus efeitos. Na existência em comum de pessoas de temperamentos, de origem social e às vezes de raça diversa, e através de períodos históricos diferentes, tudo quanto havia de particular e acidental desapareceu, ficando em relevo apenas o essencial e o universal. A atitude espiritual, cristalizada pelo tempo, tornou-se assim objetiva.
A manifestação definitiva desse cânon objetivo de vida espiritual é a Liturgia da Igreja católica. Ela pôde desenvolver-se katà toû hólou, isto é, universalmente, de acordo com as condições de tempo, de lugar, e de todas, as formas de cultura humana. Assim é ela a melhor mestra da “Via ordinária”, da ordem essencial da piedade coletiva.
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Precisemos o significado de liturgia. O que é preciso focalizar antes de mais nada é a relação sobre ela e a vida espiritual não-litúrgica.
O fim primordial e peculiar da liturgia não é o culto prestado a Deus pelo indivíduo. Ela não procura nem a edificação, nem o despertar espiritual, nem a formação interior do indivíduo como indivíduo. Não é ele o sujeito da oração e da ação litúrgicas. Não é também a simples soma de um grande número de fiéis que ela nos apresenta numa igreja como expressão material da unidade da paróquia no tempo, no espaço e no sentimento. O sujeito da liturgia é a união da comunidade cristã como tal, algo mais que a simples soma dos indivíduos; é a Igreja. A liturgia é o culto público e oficial da Igreja, exercido e regulado por ministros escolhidos para esse fim, os sacerdotes. Nela Deus é cultuado através a unidade coletiva espiritual como tal, e esta, por sua vez, se estrutura nesse culto. É importante compreender essa essência objetiva da liturgia. Pois justamente aqui o conceito católico do culto coletivo diverge nitidamente do conceito protestante, que se refere sobretudo ao indivíduo. É precisamente na integração de seu ser no seio de uma unidade mais alta que o crente encontrará a libertação e a formação interior. É o que decorre logicamente da natureza profunda do homem, ao mesmo tempo individual e social.
Ao lado das formas de piedade de uma objetividade estrita, há outras em que o elemento pessoal é mais acentuado. Tais são as práticas populares de devoção, por exemplo, os cânticos religiosos em vernáculo, as devoções com um fim particular, ou de uso local ou de uma época. Trazem bem nítida a marca de uma região ou uma época determinada, e se apresentam como uma expressão imediata das condições peculiares da comunidade. Ainda que mais universais e coletivas do que a oração estritamente individual, elas permanecem mais particulares que a oração da Igreja, a litúrgica. Nessas formas populares da piedade afirma-se muito mais fortemente o sentido de edificação particular. É por isso que as formas e as leis da vida litúrgica nunca poderão servir de cânon absoluto à oração extra-litúrgica. Nunca se poderá ter a pretensão de erigir a liturgia em cânon exclusivo da vida piedosa. Isso seria desconhecer as necessidades espirituais do povo fiel. Ao contrário, ao lado da vida litúrgica, a devoção popular deve sempre permanecer, afirmar-se e desenvolver-se livremente, conforme os caracteres históricos raciais, sociais e locais em questão. Nada mais errado que sacrificar ou querer à força adaptar a liturgia às formas infinitamente preciosas da espiritualidade popular. A despeito, entretanto, dos objetivos particulares da liturgia e da piedade popular, a primazia deve ser concedida ao culto litúrgico. A liturgia é e deve ser a “lex orandi”. A oração não-litúrgica deverá sempre regrar-se por ela, renovar-se nela, se deseja permanecer vital. Decerto que não se pode dizer que a liturgia está para a oração popular como o dogma para a fé individual, mas tudo se passa como se assim fosse. Em face da liturgia, as demais formas de vida espiritual reconhecerão mais facilmente os seus desvios, podendo com mais segurança regressar à Via ordinária. As necessidades espirituais dos lugares e das épocas, flutuantes e variáveis, hão de sempre traduzir-se espontaneamente na devoção popular; entretanto é a liturgia que, sempre e em toda a parte, refletirá cristalinamente as leis fundamentais, genuínas e imutáveis da sã piedade.
Neste ensaio, procurar-se-á justamente estabelecer algumas dessas leis. Um ensaio apenas, pois os seus resultados não pretendem ser, de qualquer modo, definitivos ou completos.
A liturgia mostra-nos antes de mais nada que a vida de oração da coletividade tem por suporte o pensamento. Suas orações são dominadas e vivificadas pelo dogma. Quem ainda não conhece a oração litúrgica, toma-a muitas vezes por engenhosas fórmulas doutrinárias da teologia, até perceber a abundância de emoção interior dessas fórmulas cristalinas. É o que se dá com as orações das missas de domingo. Onde o fluxo da oração litúrgica se expande com maior riqueza, ele é sempre dirigido e dominado por uma formulação clara e límpida.
A missa e o breviário compõem-se de trechos das Escrituras e das obras dos Padres da Igreja e nos obrigam a um constante trabalho de pensamento. Tais leituras são muitas vezes intercaladas de elementos de oração de espécie particular (responsórios), durante os quais o que foi lido e ouvido tem ocasião de ressoar na alma e descer ao coração.
[2] A lex orandi, a liturgia, é ao mesmo tempo lex credendi, lei da fé, por intermédio das velhas sentenças. Está totalmente penetrada do tesouro de verdade da revelação.
Isto não quer dizer que coração e sentimento não tenham importância na vida de oração. A oração é por certo “uma elevação do sentimento a Deus”. Mas o sentimento deve ser guiado, amparado, clarificado pelo pensamento. Há casos particulares em que é possível a fixação e a permanência num movimento elementar do coração, nascido espontaneamente ou posto em evidência por um impulso feliz. Todavia, um tipo de oração que se repete muitas vezes deve levar em conta a diferença dos estados da alma, pois um dia nunca é igual a outro. Se o conteúdo desse tipo de oração é de ordem sentimental, então ele levará a marca de um estado de espírito particular, pois de todos os nossos elementos psíquicos é o sentimento o que mais tende a individualizar-se. Uma oração como essa deve, portanto, estar até certo ponto de acordo com o estado de alma de onde ela nasceu primitivamente, e o estado de alma atual daquele que ora. Senão ela, ou não é utilizável, ou acaba por falsear o sentimento. O que se evidencia quando nos lembramos que ela deve servir aos temperamentos mais diversos.
Para que uma oração coletiva possa ser útil, é necessário que ela se estruture num pensamento dogmático límpido e rico. Somente desse modo poderá servir a uma comunidade composta de temperamentos variados e na qual vibram as correntes emotivas mais diversas.
Da mesma forma só o pensamento assegura a saúde da vida espiritual. Só é boa a oração que vem da verdade. O que não significa apenas que ela não deve conter erros, mas que deve brotar da verdade total. A verdade torna forte a oração, penetrando-a com uma energia rude, forte e vivificante sem a qual esta amolece. O que se disse acima aplica-se à oração individual, e com maior razão à oração do povo, que se inclina com tanta facilidade para o sentimentalismo. O pensamento dogmático liberta-nos da servidão temperamental, do vazio e da moleza do sentimento, dando clareza à oração e tornando-a eficaz em nós.
Mas para preencher a sua função na coletividade é necessário que incorpore à oração a verdade integral.
Há na revelação certas verdades particulares que guardam estreita afinidade com determinados estados de espírito e determinados estados interiores. Pode-se notar que o homem de um dado temperamento tem marcada predileção por determinadas verdades da fé; é o que se dá, por exemplo, na conversão, em que certas verdades são o princípio animador da decisão ou, nos casos em que a dúvida surge, elas se constituem em apoio de todo o edifício da fé. Do mesmo modo, pode-se observar que a dúvida nunca age sem método, mas escolhe entre as verdades da fé aquelas que mais distantes se encontram do temperamento em questão.
Daí decorre que uma oração cuja base fosse apenas determinada verdade particular, acabaria por só satisfazer os temperamentos afins com ela, e mesmo neste caso, o desejo da verdade total sempre viria a se manifestar. Assim seria, por exemplo, uma oração que se fixasse exclusivamente na contemplação da misericórdia infinita de Deus, e que acabaria por não satisfazer a uma vida interior terna e delicada. Essa verdade postula o seu complemento: a majestade e a justiça de Deus. É por isso que o tipo de oração destinado à comunidade dos fiéis deve conter a plenitude absoluta das verdades da fé.
A liturgia é mestra nesse particular, pois ela integra na oração toda a amplidão do dogma. A liturgia não é senão a verdade rezada. E são as seguintes as verdades fundamentais
[3] que a integram: Deus em sua imensa realidade, plenitude e grandeza. Deus uno e Deus trino; a criação, a sua providência e onipresença; o pecado, a justiça e a redenção; o Redentor e o seu reino; os novíssimos. Tal é a única verdade cuja riqueza é inesgotável; a única verdade capaz de ser tudo para todos, de ser nova cada dia.
Uma oração coletiva não será, portanto, fecunda de um modo durável se não satisfizer à condição de não se isolar em apenas um setor da verdade revelada, mas o será se se incorporar tanto quanto possível à plenitude do ensinamento divino. Isto é importante sobretudo no que diz respeito ao povo, naturalmente inclinado a cultivar, com exclusão de todas as outras, uma verdade particular que se torna como que um hábito, uma vez experimentada e amada.
[4] Por outro lado, é evidente que a oração não deve ser sobrecarregada a ponto de querer apresentar todos os temas possíveis.
Sem o sopro das grandes correntes, a vida espiritual enfraquece, torna-se estreita e mesquinha. “A verdade vos libertará” — não apenas da servidão do erro, mas para a infinita amplidão do Reino de Deus.