Primeira parte
Os princípios do dom de si
É justo darmo-nos a Deus
Deus é o princípio de todas as coisas
Dar-se a Deus é entregar-lhe corpo e alma, abandonar-lhe todas as capacidades, aspirações e sentimentos, desejos e temores, esperanças e planos de futuro, reservando apenas o cuidado de O amar.
Dar-se a Deus é esquecer-se de si, é depositar no Coração de Cristo todas as preocupações, todas as solicitudes e os mil contratempos da vida quotidiana, é confiar-lhe todos os interesses pessoais, encarregando-O de prover a tudo, de tudo remediar.
Dar-se a Deus é desprender-se de si próprio para só pensar nEle, é consagrar-se às obras que visam a sua glória, é estender na medida das próprias forças o reino da verdade e do bem, é devotar-se aos outros por amor do Mestre, é auxiliar, instruir, reconfortar, aliviar e, principalmente, converter e conduzir a Deus.
O dom de si é o fiat - “faça-se” - contínuo no decorrer de todos os acontecimentos, de todas as vicissitudes, de todas as variações exteriores e interiores, é a aquiescência simples e filial a todas as vontades do Pai celeste, o abandono completo a todos os desígnios da Providência.
Feliz aquele que se entrega a Jesus com simplicidade, porque Jesus, por seu turno, também se lhe entrega. Instala-se como Senhor na alma daquele que o ama. Encarrega-se dos seus interesses, defende-o contra os inimigos, livra-o de todas as preocupações, preserva-o de todos os perigos e, em troca, só lhe pede o coração. E assim se faz a doação recíproca entre Cristo e a alma, doação inteiramente fundada no amor.
É um dom recíproco, uma vida repleta de amor, cheia de misteriosos atrativos para as almas puras, para os corações generosos. Não se pertencer a si, e sim inteiramente a Cristo, deixá-lo dispor da sua criatura como bem entender, contentando-se com amá-lo: que existência feliz! Colaborar na obra de Cristo, ver-se encarregado por Jesus de velar pelos seus interesses, com Ele combinar os meios de arrancar à morte espiritual as almas imortais: que ideal sedutor! Poder mergulhar a todo o instante no oceano sem fundo da Divindade, aí sentir-se infinitamente distante das bagatelas que absorvem a atividade dos homens: que paz deliciosa, que imperturbável encanto!
Ser admitido na divina familiaridade de Jesus, partilhar das suas alegrias e fazê-lo partícipe das próprias penas, compensá-lo, à força de ternura, da ingratidão dos homens: que sorte invejável para as almas sensíveis, para os corações que amam!
Senhor, quero pertencer ao número destas almas felizes. Quero selar convosco um pacto fraterno, ceder-Vos todo o meu coração, para possuir totalmente o vosso; esgotar, amando-Vos, todas as forças do meu ser, depois esquecer-me de mim mesmo e ir convosco à conquista das almas: que visão do Céu!
E esta visão, todos podemos transformar em feliz realidade. Basta para isso trilharmos o caminho da verdade: é necessário andar na verdade (cf. 3Jo 4). Basta voltarmo-nos para Deus a cada momento, por um ato de amor, e oferecer-lhe o ser que dEle recebemos.
Deus é o nosso princípio. Foi Ele que nos criou, é Ele quem nos conserva e concorre para cada um dos nossos atos. Ele age a todo o instante em todas as nossas faculdades, em cada um dos nossos sentidos e em cada uma das células de que se compõe o nosso corpo. Reconhecer com amor o seu soberano domínio, eis o dom de si mesmo.
A ação divina penetra todos os nossos pensamentos e afetos, as nossas impressões, sentimentos e atos; sustenta todas as criaturas, coopera no movimento de cada um dos milhões de seres que povoam o universo. Abandonemo-nos sem temor à sua Providência; submetamo-nos por amor a esta Vontade soberana à qual ninguém pode esquivar-se. Mais uma vez, nisto consiste o dom de si, a santidade.
A nossa vida passa-se no seio de Deus. Pela sua substância divina, Ele está presente em toda a parte e tão realmente como no céu. Abandonemo-nos em seus braços. Deixarmo-nos carregar por Ele é a perfeição. Viver no seu regaço, como a criança no regaço de sua mãe, é a vida perfeita. Lançar nEle todas as nossas preocupações, confiar-lhe o cuidado de prover às nossas necessidades e limitar-nos a amá-lo, é a vida espiritual, prelúdio da eterna vida de amor.
Deus é o fim de todas as coisas
Deus não é só o Princípio, mas também o Fim de todas as criaturas e de cada ser em particular.
O menor inseto oculto sob uma folha tem a sua razão de ser, tanto quanto a fera da floresta; o grão de poeira que volteia no ar tem a sua finalidade, como os globos incomensuráveis que percorrem o espaço; o mais humilde mortal, o escravo desconhecido que erra pelo deserto, tem um fim a atingir, tal como o monarca que preside aos destinos do mundo.
Perante um Deus de infinita majestade, toda a elevação, toda a grandeza, todo o mérito criados desaparecem. Tendo sido feitos por Deus, todos os seres devem cumprir o seu destino na terra existindo para Deus. Eu sou, disse Ele, o Alfa e o Ômega, o Princípio e o Fim (Ap 1,8).
O ser privado de razão e de liberdade cumpre infalivelmente o destino que Deus lhe marcou. Só o homem recebeu de Deus o maravilhoso e assustador privilégio de alcançar o seu fim pela livre escolha da sua vontade. Semelhante a Deus, ele tem o conhecimento do bem e do mal. Sabe que a sua razão lhe foi dada para conhecer a Verdade e a sua vontade para aderir ao Bem soberano. Se se conformar com esta disposição divina, abandonando-se ao querer de Deus, restituir-lhe-á por um ato espontâneo do coração o ser que dEle recebeu e alcançará o fim para o qual foi criado.
Dar-se a Deus conforme o plano por Ele mesmo estabelecido é, pois, o fim do homem, é a primeira e a última das suas obrigações, aquela que abrange todas as outras. Ao alcançar a idade da razão, o homem encontra-se, a respeito de cada um dos seus atos livres, em face desta alternativa: ou observar o plano querido por Deus ou contrariá-lo. Todos escolhem necessariamente uma ou outra solução: Aquele que não é por mim, diz Cristo, é contra mim (Mt 12,30).
Como é de lastimar todo aquele que se recusa a obedecer a Deus! Condena-se à confusão, ao desgosto, ao infortúnio.
A desordem não pode gerar a paz. Por toda a parte vejo almas infelizes, famílias desunidas, nações conturbadas, em toda a parte há desordem porque se nega a obediência devida a Deus. A rebelião instalou-se permanentemente na sociedade moderna; ela é o permanente descontentamento, porque é a revolta contra a ordem, contra a autoridade, contra Deus.
Mas toda a desordem traz o castigo consigo e o castigo é a restauração da ordem lesada.
Deus, com efeito, sempre alcança o fim que se propõe. Ele sustenta nas suas mãos o mundo inteiro, com tudo o que contém: criatura alguma pode escapar ao seu domínio soberano; a sua glória, não a dará a outro. Ele abrange tudo, de um polo ao outro do universo, com força, e tudo dispõe com suavidade (1Sb 8,1). A sucessão dos Impérios, a sua prosperidade e declínio, os acontecimentos que encheram a história do mundo, as guerras, os distúrbios, as descobertas, tudo aconteceu porque Deus o quis ou permitiu, e foi dirigido por Deus para o fim que tem em mira - para Ele. Os homens julgavam-se senhores dos destinos do mundo e foram apenas instrumentos inconscientes do divino Obreiro.
Nada se faz na terra que não esteja a serviço dos fins previstos por Deus. O mal pode causar os seus estragos, as sociedades podem corromper-se, afastar-se de Deus, blasfemar o seu santo Nome. Os homens podem, no seu orgulho insano, voltar-se contra Deus, bani-lo do coração e do seio da família. Deus pode consentir que tenham um êxito aparente, pode tolerar que a sua Igreja seja perseguida e os seus servidores vilipendiados; pode permitir que a blasfêmia caminhe de fronte erguida, que o vício vagueie por toda a parte o seu olhar impudente, mas a sua tolerância tem limites. O dia do ajuste de contas virá e a glória que se recusaram a tributar-lhe espontaneamente, hão de prestar-lha forçados pela necessidade.
Senhor, não quero esperar por esse momento terrível para Vos glorificar. Não quero esperar ser constrangido a render-Vos as homenagens que a justiça reclama. Sois o meu fim último, o termo de toda a minha existência. Entrego-me a Vós por um ato livre da minha vontade; e renovarei este ato tantas vezes quantas me concederdes a graça de fazê-lo: ele será o começo, o progresso e o arremate da minha vida espiritual.
Deus é a causa exemplar de todas as coisas
Deus é a causa eficiente e a causa final de todas as criaturas e é também a sua causa exemplar. Ele não se contentou com marcar o ponto de partida e o termo da jornada das suas criaturas na terra: traçou-lhes também o itinerário a seguir. Tendo feito o homem à sua imagem e semelhança, destinando-o a reproduzir os seus traços divinos, quis ser seu Modelo infinitamente perfeito.
O homem, como aliás todas as criaturas, vive em Deus desde a eternidade. “NEle, diz Santo Agostinho, residem as causas de tudo o que acontece, as imutáveis origens de todas as coisas mutáveis e as razões eternas de todas as coisas temporais”
[1].
Deus vê, desde a eternidade, na sua inteligência, todos os seres que poderia criar e todos aqueles que realmente criará. Cada qual aí está com a sua natureza própria e o grau de beleza ou perfeição que deve atingir.
Nesta divina Inteligência estão determinados de antemão o caminho que toda a criatura deve percorrer ao longo da sua existência, a hora do seu aparecimento no mundo real, o papel que deve desempenhar e o destino que terá no instante em que desaparecer. Cada detalhe da sua existência futura aí está nitidamente definido. O livre arbítrio dos seres dotados de razão não altera em nada esta previsão divina. Deus tem diante de si o presente, o passado e o futuro.
E eu também fui distinguido por Deus desde a eternidade. Por entre uma infinidade de outros seres. Ele me enxergou na sua Essência, não como uma parte de si mesmo, mas como uma imitação possível da sua infinita excelência, como uma reprodução futura da sua divina Beleza. Desde então, marcou os traços que me distinguiriam das outras criaturas e previu o gênero de excelência que alcançaria aos seus olhos, a beleza e perfeição que me seriam peculiares.
Determinou ao mesmo tempo, com infinita precisão, a maneira pela qual atingiria essa santidade. Traçou o meu caminho na terra, especificou os recursos de que disporia, o auxílio que me seria prestado, as circunstâncias exteriores de tempo e lugar em que viveria, as pessoas com quem estaria em contato, os mais insignificantes episódios que exerceriam influência na minha vida. Previu as dificuldades que encontraria na prática da virtude, no íntimo do meu próprio coração, o jogo das minhas paixões, as minhas lutas e fraquezas, as minhas vitórias e a infinita paciência que teria de usar para comigo.
Ele louvou com júbilo, desde a eternidade, a minha vontade sincera, a retidão, o ardor do meu coração. Calculou os inumeráveis atos de amor que dele jorrariam como água pura de fonte abundante e regozijou-se com a intimidade na qual me admitiria um dia.
Pobre e débil criatura, eu ocupei o pensamento do meu Deus, desde toda a eternidade. Ele me amou, pois, quando eu ainda não podia conhecê-lo (cf. Jr 1,5), reservou para si o cuidado de me santificar, traçou-me o caminho e segura-me pela mão para que não me desvie para lado algum.
O Senhor! Tratais as vossas criaturas com desvelos infinitos (cf. Sb 12,18), velais por elas com paternal solicitude! Temeis que os vossos filhos se afastem de Vós e se percam.
Dai-me, Senhor, a graça de sempre Vos amar.
Conclusão
Deus é o meu princípio; a minha inteligência deve reconhecer o seu soberano domínio sobre mim. Deus é o meu fim: a minha vontade deve entregar-se a Ele sem reservas. Deus é o meu modelo exemplar: toda a minha existência deve ser a reprodução desse divino Modelo.
Acho-me em relação ao meu Deus numa dependência absoluta e universal. Não é suficiente que o adore como o único Autor de tudo o que existe; não é suficiente que tenda para Ele, com todas as energias da minha alma, como para o único fim da minha existência. É preciso ainda que eu O siga passo a passo, em cada instante da minha vida, que me abandone à sua direção, que o deixe dispor de mim como bem quiser.
Sim, meu Deus, quereis que me dê a Vós, não só santificando-me, mas também pelo modo de santificar-me. Não Vos é indiferente que siga este ou aquele caminho para chegar ao Céu. Já me traçastes o rumo desde a eternidade.
Se não há pormenor da minha vida que não tenha sido previsto pela vossa Sabedoria e regulado pela vossa Providência, nada tenho que mudar, acrescentar ou reduzir. Não devo conceber aspirações de um destino diverso daquele que me traçastes. Não me cabe lamentar-me nem lamuriar. Não me compete perguntar-Vos pelas razões da vossa conduta a meu respeito, indagar por que me criastes com este caráter, com estas aptidões ou incapacidades, com estas paixões, revoltas interiores ou aspirações. Não me deveis explicações por me terdes feito nascer neste tempo de preferência a outro, viver neste lugar e meio, nestas circunstâncias, favoráveis ou não.
Meu Deus, quer me tenhais feito rico ou pobre, sábio ou ignorante, obscuro ou distinto pelo nascimento, ignorado ou desprezado; quer me tenhais dado luzes recusadas a outros, ou rodeado a minha alma de proteções que não concedestes a outros..., de nada devo pedir-Vos contas. São os eternos desígnios sobre mim. Devo aceitá-los e santificar-me nessas circunstâncias.
Como me iludia quando formava por mim mesmo projetos de santidade e, à margem dos desígnios divinos, sonhava com uma perfeição, uma carreira, trabalhos, luzes, consolações ou cruzes que não eram para mim! Como errava seguindo veredas estreitas, quando uma larga estrada me fora traçada por Deus desde a eternidade!
O destino que Ele concebeu desde a eternidade para cada alma é-lhe indicado no decorrer do tempo. A vida do homem desenrola-se como um filme de longa duração. Todos os acontecimentos, circunstâncias e momentos estão marcados com antecedência. Deus diz: “Adora e aceita”. A alma simples responde: “Aceito, amo e abandono-me à vossa ação”.
A alma indiferente passa sem se preocupar com o tesouro que desleixa, com a honra que desdenha. A alma hostil amaldiçoa e blasfema. E a ação de Deus continua a trazer a cada instante um novo dever, santificando sem cessar a alma que nEle confia.
Meu Deus, Princípio do meu ser, Fim da minha existência, Modelo da minha ação, eu me entrego, eu me abandono à vossa Vontade. O que me cumpre fazer é seguir-Vos passo a passo, como a criança agarrada à mão de sua mãe. Não quero andar um passo à frente nem um passo atrás. Irei ao vosso passo, cumprindo os pequenos deveres do momento presente, aceitando as cruzes que me trouxerem, abandonando-me, quanto ao resto, a todos os vossos desígnios, presentes ou futuros, sobre a minha alma.
Sei que tudo o que vem de Vós é bom, porque tudo foi previsto e regulado pela vossa amável Providência.