Introdução
O propósito do presente trabalho é estudar os poemas de Fernando Pessoa, atribuídos ao heterônimo Alberto Caeiro, dentro da tradição da poesia da Natureza como o contestador da linguagem mística cristã e da subjacente visão de mundo que nela se consubstancia. O objeto material deste estudo é, portanto, o conjunto dos poemas Caeiro, constituído pelas três coleções intituladas O Guardador de Rebanhos, O Pastor Amoroso e Poemas Inconjunctos
[1], enquanto o ponto de vista através do qual os examinarei é o de suas relações de continuidade e de descontinuidade com a tradição da poesia da Natureza e suas relações polemizantes com a linguagem mística cristã. Antes, porém, de entrar diretamente no tema proposto, procederei à delimitação de minha maneira de ver a criação heteronímica e Alberto Caeiro entre os demais heterônimos.
Para tanto, recordarei o conhecido texto em prosa de Pessoa, publicado na Obra Poética da edição Aguilar como Nota Preliminar às
Ficções do Interlúdio, em que o poeta de
Orpheu estabelece uma hierarquia de graus da poesia lírica e onde coloca no grau supremo o poeta dramático, o despersonalizado por excelência, aquele no qual coexistem vários poetas “escrevendo em poesia lírica”
[2]. No texto em questão, convida-nos a supor que “Shakespeare em vez de criar o personagem de Hamlet como parte de um drama, o criava como simples personagem, sem drama. Teria escrito, por assim dizer, um drama de uma só personagem, um monólogo prolongado e analítico”
[3].
Com Maria Teresa Rita Lopes acredito que “L’essentiel de la création dramatique, pour Pessoa, n’est pas l’invention d’une histoire mais la création de personnages ayant une vie autonome. Ce ne sont pas leurs agissements qui l’intéressent mais ce que Maeterlinck pourrait appeler leur “vie profonde”
[4].
Cada heterônimo é uma ficção de Fernando Pessoa, uma personagem dramática sem estar inserida numa ação que, como ele o disse, “forma cada uma uma espécie de drama; e todas juntas formam outro drama (...)
[5] Cada uma é uma maneira de ver o mundo, pois como diz Massaud Moisés, “no fundo mesmo de sua obra circula o problema do conhecimento, fulcro de toda a sua densidade dramática e poética” e ainda: “É justamente dessa possibilidade, por todos os títulos extraordinária que tem Fernando Pessoa de mudar a posição dialética e contemplar o mundo por um dos seus infinitos ângulos possíveis que nascem os
heterônimos”
[6]. Meu fim é analisar somente a personagem fictícia Alberto Caeiro, no seu “monólogo prolongado e analítico”, o drama formado pelos poemas Caeiro e não o complexo dos heterônimos e nem o drama formado por todos eles juntos. Meu fim é surpreender a maneira Caeiro de ver o mundo.
[1] Utilizarei sempre nas citações dos poemas de Fernando Pessoa a edição: Pessoa, Fernando — Obra Poética. 4.ª ed., Rio de Janeiro, Companhia José Aguilar Editora, 1972.
[2] Pessoa, F. — op. cit., p. 199.
[3] Pessoa, F. — op. cit., p. 199.
[4] Lopes, Maria Teresa Rita —
Fernando Pessoa et le Drame Symboliste: Héritage et Création. Paris, Fundação Calouste Gulbenkian, Centro Cultural Português, 1977, p. 109.
[5] Pessoa, F. —
Presença. Coimbra, n. º 17, Dezembro, 1928. p. 10.
[6] Moisés, Massaud — Fernando Pessoa (Aspectos de sua Problemática). São Paulo, Instituto de Estudos Portugueses da FFCLUSP, 1957, p. 12.