“Todos os bens vieram-me com ela; recebi de suas mãos riquezas incontáveis. É para os homens um tesouro inesgotável, e a quantos dela se serviram, tornou-os participantes da amizade de Deus”
[1].
Estas palavras, aplicadas por Salomão à sabedoria que procede de Deus, podem aplicar-se igualmente à graça divina. A verdadeira e celestial sabedoria, de que fala a Sagrada Escritura, consiste nesta iluminação sobrenatural, derramada em nossas almas, do seio da luz divina, pelo Sol da eterna sabedoria. Eis por que semelhante iluminação constitui o mais belo fruto da graça para nós.
Para caracterizar a plenitude de bens, que desde a Encarnação trouxe à terra o Primogênito de Deus, diz S. João no início de seu Evangelho: “Vimos sua glória, a glória do Unigênito do Pai, cheio de graça e de verdade”
[2]. É esta mesma graça a que deseja o apóstolo S. Paulo aos fiéis, no princípio e no fim de suas epístolas: “A vós graça e paz, da parte de Deus Pai e de Nosso Senhor Jesus Cristo”
[3]. Não duvidamos, portanto, em afirmar ser a graça o mais precioso dos tesouros, visto conter todos os outros bens. Mais ainda, o único tesouro, o objeto mesmo do Evangelho, isto é, da Boa Nova, baixada do céu, trazida à terra pelo Filho de Deus. Pela graça, tornamo-nos verdadeiramente filhos de Deus, adquirimos o direito aos maiores bens que possa o Altíssimo dispensar a suas criaturas, o direito de possuí-lo. Quer Deus ser a herança de seus filhos, com toda a riqueza de sua magnificência e bondade.
“Grandes e preciosas”, diz S. Pedro, “as promessas que Deus nos fez por Jesus Cristo, para vos tornardes por estas mesmas graças, participantes da natureza divina!”
[4] Infinitamente
grandes, sobrepujando de muito a todas as coisas criadas, por melhores e mais excelentes que sejam. Infinitamente
preciosas, contendo o melhor que em sua onipotência podia conceder-nos Deus, e compradas como foram, ao preço do sangue do próprio Filho de Deus. Aponta o Príncipe dos Apóstolos o motivo de tais promessas:
Para fazer-vos, por estas mesmas graças, participantes da natureza divina. Poder-se-ia a alguma criatura dar algo de maior, do que erguê-la assim de sua baixeza, do nada de sua própria natureza, para introduzir-se na companhia de Deus, participante agora da natureza do Criador?
Estas poucas palavras de S. Pedro revelam-nos toda a sua grandeza e valor. Deixam-nos entrever o grandioso e o sublime deste mistério. É o grande mistério de Cristo, de que fala o Apóstolo, mistério que “não se manifestou, nas épocas passadas, aos filhos dos homens, tal qual hoje se revela pelo Espírito aos santos apóstolos e aos profetas de Deus, isto é, serem os gentios membros do corpo de Cristo, participando das promessas de Deus, em Jesus Cristo, pelo Evangelho”
[5]. A este mistério referia-se ainda o mesmo Apóstolo: “Jamais passou pelo pensamento humano, nem nos pôde ser revelado senão pelo Espírito, que penetra as profundezas da divindade”
[6]. Quanto maior e mais oculto à nossa visão natural é o mistério da graça, tanto mais nos cumpre estimá-la, admirá-la em sua grandeza, apreciá-la em seu justo valor.
Este mistério tão grande, tão consolador — sentimos em dizê-lo — mal se conhece entre os próprios cristãos, não obstante o claro e explícito ensinamento da Escritura e da Santa Igreja. Ignorância tanto mais deplorável quanto somente a apreciação da graça pode fazer compreender nossa dignidade, aquilatar a imensidade de nossas esperanças, sondar a inesgotável riqueza dos méritos de Cristo.
Concebe-se comumente a graça de Deus como o restabelecimento de um dom perdido pelo pecado, como um auxílio com que o amor divino socorre nossa natural fraqueza, preservando-nos assim do pecado e fortalecendo-nos na prática do bem. Com razão, por certo, enumeram-se entre os efeitos da graça o perdão dos pecados e esta celeste assistência; não menos certo, porém, é esquecer-se, com excessiva frequência, o que constitui o maior valor e a essência mesma deste dom.
É o perdão dos pecados uma graça; restitui-nos Deus o amor misericordioso com que nos distinguia antes da queda. Mas, que representava para nós semelhante amor? Alguma coisa equivalente à nossa natureza humana, ou infinitamente mais rica, mais elevada que ela? Seria justamente este o benefício que conferira à nossa natureza um esplendor maravilhoso, erguendo-a acima de si mesma, até ao coração de Deus, até à união fraterna com seu Filho.
Ajuda, sim, a graça à fragilidade de nossa alma contra as tentações e incita-a para o bem; facilita-nos o cumprimento dos deveres e a obtenção de nosso fim último. Permanece, porém, a questão: Vem a graça ao encontro do homem para assistir-lhe, para ajudá-lo colaborando com suas forças naturais, no plano mesmo da natureza? Reduz-se seu papel a fortalecê-lo apenas? Ou, além disto, eleva-o, glorifica-o, comunicando-lhe nova natureza, nova força, uma vida nova?
Tudo depende da resposta que se der a estas diferentes perguntas. Importa atermo-nos ao primeiro ponto, o que sem dificuldade conseguiremos, determinando, de modo claro e preciso, a noção da graça cristã.
Que se entende por
graça? Antes de tudo, é o amor cheio de atenções de um superior para com seu inferior, por exemplo, de um senhor para com seu servo, um rei para com seu vassalo, em nosso caso. Deus para com a sua criatura racional — sobretudo se a este amor se junta a complacência que encontra o primeiro nas qualidades e boas obras do segundo.
Aplicamos também a palavra “graça” ao efeito deste amor, ao objeto ou motivo desta complacência. Solicitamos de um homem ou do próprio Deus uma graça, quando lhe suplicamos que se digne conceder-nos coisa pelo amor misericordioso e indulgente com que nos distingue. Neste sentido, chama a Sagrada Escritura de “graça” a bondade, a beleza, a amabilidade que nos fazem dignos da complacência e do amor de Deus: “A graça foi derramada em teus lábios, por isto Deus te abençoou para sempre”
[7].
Importa acrescentar — e é de suma importância na questão que nos ocupa — que existem dois modos de gozar de consideração junto de uma pessoa de elevada posição. Podemos antes de tudo gozar de uma graça, por assim dizer, geral, ordinária, merecida, devida; e desfrutar também de uma graça, absolutamente especial, extraordinária, não merecida, livre. A esta última denominamos graça no sentido próprio e estrito.
Consideremos, por exemplo, um poderoso e nobre rei. Amará ele com amor verdadeiro a todos os seus vassalos, enquanto lhe forem submissos, ou melhor, pelo fato mesmo de o serem. Dedicará a cada um o interesse e o cuidado merecidos por sua condição e seus atos. Se mais não faz, cumpre apenas seu dever; poder-se-á dele dizer: é misericordioso, benevolente; não, porém, afirmar que “alguém caiu em suas graças”. Isto só se dará quando amar a seus súditos, ou alguns dentre eles, mais intensamente do que é obrigado, quando lhes conferir maiores bens do que aqueles que lhes cabem por direito de nascimento. Será especialmente misericordioso, se consagra livremente a seus vassalos perfeito e total amor; se, em sua benevolência, se abaixa a ponto de com eles tratar como com seus próprios filhos; se os eleva até à própria dignidade, e os cerca de honras reais; se, numa palavra, os coloca acima de sua condição, tornando-os, na medida do possível, semelhantes a seus próprios filhos.
Apliquemos esta distinção à graça de Deus, da qual é apenas uma pálida imagem à graça do rei a que nos referimos. É Deus o maior soberano dos céus e da terra, pois tudo criou e tudo lhe pertence. Tendo tudo criado por amor, ama suas criaturas com amor inefável, liberal e benevolente. Acima de todos os seres irracionais, ama, evidentemente, os dotados de razão, com infinito afeto de predileção, pois, feitos à sua imagem, podem estes conhecê-lo e amá-lo. Criou-os bons. A todos eles estende-se sua benevolência contanto que não o injuriem com alguma falta grave, e permaneçam dignos do seu primeiro amor pela fiel observância de seus mandamentos. Pode a criatura racional, por sua natureza e suas boas obras, estar, de certo modo, na graça de Deus.
É-nos lícito chamar de
graças, como o faz S. Agostinho, cada um dos bens e dons naturais de Deus, porquanto não era ele obrigado a criar-nos e foi por seu livre amor que nos tornou objetos destes mesmos dons. Uma vez, porém, que nos criou, não poderá deixar de conceder-nos todos os bens de que necessitamos para alcançar nosso fim natural. O benefício de que aqui falamos é portanto a graça em geral, não em sentido particular, estrito. Distinta desta é a graça cristã, trazida por Cristo ao mundo e ensinada pelo Evangelho, os Apóstolos, e os Padres da Santa Igreja.
A
graça cristã é a graça em seu mais elevado e perfeito sentido; é um benefício de Deus, particularíssimo, livre, misericordioso, total, que faz de nós, sob um título especialíssimo, os prediletos do Pai celeste.
Pela primeira, ama-nos Deus, na medida de nossos méritos, dentro de nossa natureza e de acordo com nossas boas obras naturais. Em virtude da segunda, ama-nos de modo sobrenatural, infinitamente acima do que por natureza merecemos. Livre e bondosamente desce ele de seu trono real até o nosso nada, para elevar-nos acima de nossa natureza. Ama-nos com ilimitado amor; poderia dizer-se com todas as suas forças, como se ama a si mesmo e a seu próprio Filho; adota nossa alma como filha e esposa; fá-la companheira de sua glória e felicidade; entrega-se-lhe afinal, para que o possua e dele goze eternamente.
No sentido cristão da palavra, é a graça este
amor sobrenatural de Deus para conosco. Não poderíamos qualificar de
graças senão a estes dons inteiramente sobrenaturais, mais preciosos do que o saberíamos julgar, decorrentes do amor sobrenatural de Deus. Nem tampouco toda a complacência que possa Deus encontrar em suas criaturas racionais é já a graça cristã; mas tão somente a complacência que lhe causamos em razão da beleza
sobrenatural de nossa alma, da amabilidade por ela recebida de seu amor sobrenatural.
Importa assinalar aqui a existência de uma importantíssima distinção entre a graça dos reis e a de Deus. Pode um rei amar e remunerar seus súditos além do que merecem; não, porém, torná-los mais amáveis, mais agradáveis a seus olhos do que na realidade o são. Deus, ao contrário, em virtude de seu amor sobrenatural, comunica à nossa alma um esplendor sobrenatural, tornando-a semelhante à sua natureza divina, de modo a refletir, ela em si, a imagem de sua divindade.
Esta amabilidade interior, real e sobrenatural da alma, chama-se também “graça de Deus”. Existe para isto um título especial; constitui antes de tudo o efeito principal do amor sobrenatural de Deus, sendo pois o objeto próprio de sua maior complacência em nós. Chamamo-la ordinariamente
graça habitual,
santificante,
graça de adoção, ou simplesmente
graça. Descreve-a o Catecismo Romano nestes termos: “Segundo a proposição do Concílio de Trento, imposta a todos os fiéis sob pena de excomunhão,
[8] a graça não é apenas o perdão dos pecados, nem tão pouco um simples favor externo de Deus, mas, sim, uma qualidade divina inerente à alma, como um resplendor e uma luz que apagam toda mancha de nossas almas, deixando-as mais belas e mais brilhantes”
[9].
No que se segue, ao falarmos das maravilhas e do inestimável valor da graça divina, consideramo-la especialmente neste último sentido. Movimentar-nos-emos assim, sem dúvida alguma, dentro do espírito da Igreja e particularmente do Concílio ecumênico de Trento.
Cumpre notar todavia que
as graças atuais sobrenaturais e as virtudes da fé e da esperança, por mais que possam andar, por vezes, separadas da graça santificante, jamais serão por ela diminuídas; ao contrário fará esta aparecerem aquelas em toda a sua grandeza e valor. Consistindo sua única missão em introduzir, conservar e aumentar a graça santificante em nossa alma, claro está que sua virtude divina e seu significado se patentearão na medida em que se manifesta a grandeza e a beleza desta mesma graça santificante.
São realmente grandes e indizíveis os mistérios que vamos revelar; daí a dificuldade de descrevê-los de modo ao mesmo tempo digno e acessível a todos.
Consolamo-nos, entretanto, com as seguintes palavras de S. Leão. Embora pronunciadas a respeito do mistério da Redenção, aplicam-se muito bem ao mistério da graça. “Compreendo”, diz ele, “ser coisa difícil; não é louvável, porém, privar o sacerdote aos fiéis do ministério de sua palavra; o objeto, pelo fato mesmo de ser inefável, permite-lhe falar; ainda quando impotente para exprimir a sublimidade do que devia anunciar, pode a palavra ousadamente tentá-lo. Concedamos que se sinta a fraqueza humana diminuída ante o esplendor de Deus, pequenina sempre para decantar as obras de sua misericórdia, fatigue-se nossa inteligência, faltem-nos ideias e palavras... convém reconhecermos nossa insuficiência para representar a majestade do Senhor”
[10].
Confiamos também que esta mesma graça, cujos esplendores nos propomos descrever neste trabalho, venha iluminar-nos, a nós e a nossos leitores, pois lhe abordamos o estudo com simplicidade infantil, com coração puro e profunda compunção. Assim
como resiste Deus aos soberbos e dá sua graça aos humildes, fará também aos pequeninos conhecerem a sublimidade desta graça. Com efeito ao mistério da graça em particular aplicou o Salvador estas palavras: “Bendigo-te, ó Pai, Senhor do Céu e da terra, porque ocultaste estas coisas aos sábios e as manifestaste aos pequeninos”
[11].
Leitor cristão, se nesta exposição alguma coisa encontrares que te pareça estranho, incompreensível, inaudito talvez, pensa no que disse o Apóstolo, ao falar da riqueza da graça: “Pode Deus operar em nós coisas infinitamente maiores de que podemos desejar ou compreender”
[12]. Tranquiliza-te, pois o que aqui expomos encontra-se no ensinamento claro da Sagrada Escritura e dos melhores doutores da Igreja.
Damos a seguir um rápido sumário do conteúdo desta obra.
No
primeiro livro explicaremos em que consiste a essência da graça santificante, e diremos ser ela uma qualidade sobrenatural, infundida por Deus em nossa alma, qualidade que nos eleva acima da nossa própria natureza e nos faz participantes da natureza divina e a ela semelhantes.
No
segundo livro demonstraremos como, por esta elevação, se une nossa alma a Deus, de modo sobrenatural e maravilhoso: Deus adota-a como filha, amiga e esposa.
No
terceiro livro trataremos dos efeitos produzidos pela graça em nossa alma e sobretudo da vida sobrenatural, celeste e divina por ela gerada em nós.
No
quarto livro apontaremos alguns outros efeitos e privilégios, que nos farão apreciar a graça sob um aspecto mais especial.
Concluiremos com o
quinto livro, demonstrando que nos cumpre adquirir a graça, cuja glória e valor formaram o objeto de nossa meditação; e que, uma vez em sua posse, devemos guardá-la, utilizá-la e cercá-la de toda honra.