Sobre o autor
Jean Grou, nascido na diocese de Bolonha, em 24 de novembro de 1731, entrou muito jovem para o Colégio dos Jesuítas. Aos 15 anos foi admitido ao noviciado, e aos 17 pronunciou os primeiros votos. Em seguida, passou para o ensino, segundo o costume da Companhia, ocasião em que se desenvolveu o seu gosto pela literatura.
Apreciava, sobretudo, Platão e Cícero, nos quais encontrava, além da grande riqueza de estilo, belos pensamentos e uma moral mais pura do que se costumava encontrar nos antigos autores. O primeiro fruto do seu trabalho sobre a filosofia grega foi a tradução francesa da
República de Platão, em 2 volumes. A esta tradução seguiu-se a das
Leis, do mesmo autor, e mais tarde a dos
Diálogos.
Grou morou durante alguns anos em Pont-a-Mousson, onde fez os seus últimos votos, quando os jesuítas já haviam deixado a França. Depois de expulsos de Estanislau, foram também expulsos de Lorena. Grou foi então a Paris, onde tomou o nome de Leclaire. Ali vivia muito afastado, repartindo o tempo entre o estudo e as práticas de piedade. Foi quando Baumont, arcebispo de Paris, o encarregou de escrever sobre vários assuntos relativos à religião, dando-lhe por isso uma pensão, que foi suspensa depois de algum tempo.
Uma santa religiosa da Visitação, a qual diziam ser favorecida com graças especiais, e que Grou conheceu através de um de seus confrades, o convenceu a entrar resolutamente no caminho da perfeição. Durante o tempo que lhe sobrava, dedicava-se aos exercícios espirituais e aos cuidados do seu ministério.
Dessa vida laboriosa, surgiu a composição de diversos livros sobre assuntos de piedade. A sua primeira obra desse gênero foi a
Moral des Confessions de Saint Augustin, Paris, 1766, 2 volumes. O autor propunha-se opor a moral cristã aos sistemas dos incrédulos, e aspirava os seus princípios nos escritos de Santo Agostinho. Em seguida, publicou os
Caractères de la Vraie Dévotion, Paris, 1788, no qual dá a definição de devoção, assinalando os seus fundamentos, objeto e meios. Logo depois vieram as
Maximes spirituelles, avec explications, Paris, 1789. Nesse período, compôs também alguns pequenos tratados de piedade, que foram copiados para uso de uma distinta senhora, de quem era diretor espiritual. Assim, esses manuscritos, que formam nove volumes, foram conservados. Grou empreendera ainda um grande trabalho que lhe custou catorze anos de estudo e pesquisas. Antes de deixar a França, confiou os manuscritos a uma senhora. Mas aconteceu que esta foi presa durante o Terror
[1], e os seus empregados, com receio de comprometê-la, decidiram queimar os papéis.
O Padre Grou vivia em paz, desempenhando com zelo o seu ministério; era muito estimado, recebia uma pensão do rei e, com seus conselhos e escritos, praticava o bem. Quando começou a revolução, fez o propósito de permanecer escondido em Paris, a fim de continuar a exercer secretamente a sua missão, mas a religiosa, de quem já falamos, aconselhou-o a se retirar para a Inglaterra, e o conselho foi acatado. Convidado por um antigo confrade, o capelão de Thomas Weld, senhor inglês, católico e rico, aceitou morar no seu castelo, tornando-se diretor espiritual de toda a sua família.
A sua doçura e prudência, bem como os seus conhecimentos de vida interior, foram de grande utilidade às pessoas que nele confiaram. Foi então que soube que seus escritos, trabalho de tantos anos, haviam sido destruídos por um incêndio em Paris. Suportou a perda com a máxima calma, dizendo simplesmente: “Se Deus quisesse tirar glória daquele trabalho, tê-lo-ia conservado”.
Observava, quanto possível, a regra dos jesuítas. Levantava-se diariamente às quatro da manhã, sem luz nem fogo; fazia uma hora de oração, recitava o breviário e preparava-se para a Missa, a qual nunca deixou de celebrar até à sua última doença. Praticava a pobreza, nada possuindo de próprio, e pedia com simplicidade os livros ou roupas de que precisava. A sua principal característica era a fé viva, a constante tranquilidade de alma, e sua grande humildade, candura e zelo.
Em 1796, fez imprimir em Londres as
Mémoires pour une retraite sur l’amour de Dieu, com um pequeno trabalho a respeito do
Don de soi même à Dieu. Alguns teólogos notaram nessa obra certas ideias favoráveis ao quietismo, mas um bispo francês declarou a sua doutrina sã e pura. Publicou-se ainda em Londres um outro trabalho seu, intitulado
School of Christ.
O
Suplemento da Biblioteca dos escritores Jesuítas, que surgiu em Roma no ano de 1816, cita também de Grou,
La Science du Crucifix, Paris, Livraria Onfroy, e
La Science pratique du Crucifix à l’usage des Sacraments de la Pénitence et de l’Eucharistie, como complemento do precedente.
Dois anos antes de sua morte, foi atacado de uma penosíssima asma. Algum tempo depois desse ataque, sobreveio-lhe um derrame cerebral e, finalmente, a hidropisia; as pernas incharam extraordinariamente, de forma que não pôde mais ficar na cama, e passou seus dez últimos meses de vida sentado em uma poltrona. Até o fim continuou a ouvir em confissão os membros da piedosa família com a qual morava. Levavam-lhe a santa comunhão duas vezes por semana. Sentindo que o fim se aproximava, pediu e recebeu os sacramentos com pleno conhecimento. Pouco antes de exalar o último suspiro, com o Crucifixo na mão, exclamou: “Ah! Meu Deus, como é doce morrer nos vossos braços!” Faleceu no dia 13 de dezembro de 1803, com 72 anos completos.
Da verdadeira e sólida devoção
A palavra devoção, do latim, corresponde a dedicação. Pessoa devota é a pessoa dedicada a Deus. Não há termo mais forte do que “dedicação” para indicar a disposição da alma a tudo fazer e sofrer pela pessoa a quem se dedica.
A dedicação às criaturas (refiro-me à legítima e autorizada por Deus) tem necessariamente limites. A dedicação a Deus não os tem, nem pode ter. Se tiver a mínima reserva, a mais leve restrição, não será mais dedicação. A verdadeira e sólida devoção é a disposição da alma pela qual estamos prontos a agir sempre e a tudo sofrer sem restrição nem reserva, segundo a vontade de Deus. Tal disposição é o mais excelente dom do Espírito Santo. Nunca a pediremos com demasiado ardor e constância, e ninguém deve se ufanar de tê-la inteira e perfeita, porque está sempre sujeita a crescer, ou em si mesma, ou em seus efeitos.
Vemos, por esta definição, que a devoção é algo de interior e de muito íntimo, pois afeta o fundo da alma e o seu ponto mais espiritual: a inteligência e a vontade. A devoção não consiste no raciocínio, nem na imaginação ou na sensibilidade. Uma pessoa não é devota apenas por ser capaz de raciocinar bem a respeito das coisas de Deus, de ter ideias elevadas, e de conceber belas imagens espirituais, ou por se enternecer algumas vezes até às lágrimas.
Vemos ainda que a devoção não é coisa passageira, mas habitual, fixa, permanente, extensiva a todos os momentos da vida e reguladora de toda a nossa conduta.
A devoção se funda no princípio de que, sendo Deus a única fonte e o único autor da santidade, a criatura racional deve depender dele em tudo e se deixar governar inteiramente pelo espírito de Deus. A criatura deve sempre aderir a Deus do mais íntimo do seu ser, atenta constantemente a ouvi-lo em seu íntimo, sempre fiel em realizar o que lhe pede a cada momento.
Não podemos ser realmente devotos se não formos almas interiores, dados ao recolhimento, habituados a entrar em nós mesmos, ou antes, a nunca nos dissiparmos, a possuirmos a nossa alma em paz.
Quem se entrega aos sentidos, à imaginação e às paixões, não digo nas coisas criminosas, mas naquelas que não são más em si, nunca será devoto, pois o primeiro efeito da devoção é cativar os sentidos, a imaginação e as paixões do homem, e não se deixar arrastar pela própria vontade.
O curioso, precipitado, amigo da exterioridade, inclinado a se envolver nos negócios alheios, não pode habitar em si mesmo. O espírito crítico, maldizente, irônico, impulsivo, desdenhoso, altivo, suscetível em tudo que se relacione com o amor próprio apegado a seu parecer, indócil, teimoso ou escravo do respeito humano, da opinião pública, fraco, inconstante, instável nos princípios e na conduta, nunca será devoto no sentido a que me refiro. O verdadeiro devoto é homem de oração, que põe suas delícias em se entreter com Deus, sem nunca, ou quase nunca sair da sua presença. Não pensa sempre em Deus, o que é impossível neste mundo, mas fica sempre unido ao Senhor pelo coração, deixando-se conduzir em tudo pelo seu espírito.
Para fazer oração não necessita de livro ou de método, nem de esforços da inteligência ou da vontade. Basta-lhe entrar docemente em si, onde sempre encontra Deus, e uma paz, por vezes saborosa, por outras árida, mas sempre íntima e real.
Prefere a oração na qual muito dá a Deus, a oração na qual sofre, a oração na qual combate pouco a pouco o amor próprio, sem lhe dar alimento algum, numa palavra, a oração simples, nua, despida de imagens, de sensibilidade e de tudo quanto a alma possa notar ou sentir em qualquer outra espécie de prece.
O verdadeiro devoto não busca absolutamente a si mesmo no serviço de Deus, esforçando-se por praticar a máxima da Imitação: Em qualquer parte onde estiverdes, abnegai-vos.
O verdadeiro devoto procura cumprir perfeitamente todos os seus deveres de estado e observar todas as conveniências reais da sociedade. É constante nos exercícios de devoção, mas não seu escravo; interrompe-os ou suspende-os, deixando-os até por algum tempo, quando o exige alguma razão de necessidade ou de simples conveniência. Contanto que não faça a sua vontade, estará sempre certo de fazer a de Deus. O verdadeiro devoto não se precipita em busca de boas obras, mas espera que se apresente a ocasião. Faz tudo o que depende dele para obter êxito, mas abandona o êxito nas mãos de Deus.
Prefere as boas obras humildes às grandiosas, porém, não fugindo delas quando interessam à glória de Deus e edificação do próximo.
O verdadeiro devoto não se sobrecarrega de orações vocais e práticas que não deixam tempo para respirar. Conserva sempre a liberdade de espírito; não é escrupuloso nem se inquieta a respeito de si mesmo, mas caminha com simplicidade e confiança.
Está resolvido a não recusar coisa alguma a Deus, a nada conceder ao amor próprio e a não cometer faltas voluntárias; procede com retidão, mas não se perturba, não é meticuloso. Se cai em alguma falta, não se perturba: humilha-se, ergue-se de novo e não pensa mais nisso. Não estranha suas fraquezas e imperfeições, e nunca desanima. Sabe que nada pode, mas que Deus pode tudo. Não se fia em seus bons propósitos e em suas resoluções, mas na graça e bondade de Deus. Se caísse cem vezes por dia, não se desesperaria, mas, estendendo os braços amorosamente para Deus, lhe suplicaria que o erguesse e dele se apiedasse.
O verdadeiro devoto tem horror ao mal, porém, tem ainda maior amor ao bem. Pensa mais em praticar a virtude do que em evitar o vício. É generoso, magnânimo e, se há necessidade de se arriscar por seu Deus, não teme nem o sofrimento, nem a morte. Prefere, finalmente, praticar o bem, mesmo com risco de cometer alguma imperfeição, a omiti-lo para evitar o perigo de pecar. Nada mais agradável do que a companhia de um verdadeiro devoto: é simples, franco, reto, despretensioso, meigo, afável, sincero e verdadeiro. Sua conversa é alegre e interessante, pois sabe se dedicar a diversões honestas. Leva a condescendência até aos últimos limites, contanto que não haja nisso pecado. Digam o que quiserem, a verdadeira devoção não é triste, nem para o devoto, nem para os outros.
Como poderia ser triste quem goza continuamente do verdadeiro bem, do único bem do homem? Tristes são as paixões, a avareza, a ambição, o amor. Para esquecerem os desgostos que lhes devoram o coração, os homens se atiram impetuosamente aos prazeres tumultuosos, trocando-os sem cessar, fatigando a alma sem jamais a contentar.
Quem servir a Deus, como deve, irá reconhecer a verdade da sentença: Servir a Deus é reinar, mesmo na ignomínia e nos sofrimentos. Os que procuram neste mundo a felicidade fora de Deus, verificam, sem exceção, a palavra de Santo Agostinho: O coração do homem, feito para Deus, estará sempre inquieto enquanto não repousar em Deus (Confissões, liv. I, cap. I).
Continua...
[1] Referência ao chamado “Período do Terror”, que ocorreu durante a Revolução Francesa e que durou cerca de um ano (1793-1794). Neste período ocorreram diversas perseguições políticas e assassinatos na guilhotina.