Louis Martin, pai de Santa Teresa do Menino Jesus, teve que ser internado, a 12 de fevereiro de 1889, num local chamado “asilo de dementes”, depois de fugas, de gastos excessivos e de uso inquietante de um revólver... Ele teve que assinar seu impedimento jurídico, que foi publicado na cidade, e foi passar seus últimos anos com a sua família, quando sua paralisia ainda a permitia zelar por ele mais facilmente.
Essa catástrofe familiar – a pior que atingiu Santa Teresinha, que tinha por seu “rei” uma tão terna e lírica afeição – foi acolhida por Santa Teresinha paradoxalmente como um dom de Deus: “a nossa grande riqueza”, escreve ela em 12 de fevereiro de 1889, dia em que a hospitalização de seu pai pôs fim às últimas esperanças de cura.
Que a grande provação possa ser considerada como uma graça, nós lemos nos Anais de santidade. Grignion de Montfort, por exemplo, durante uma missão muito bem acolhida e sem contradição, dizia no mais puro fervor: “Nada de sofrimento, qual sofrimento!”
O Dr. Robert Cadéot estudou esse caminho de graça em Teresa de Lisieux e em toda a sua família através da admirável edição crítica, enfim completa, das obras de Santa Teresa do Menino Jesus.
Aqui, porém, ele vai mais longe. Sua contribuição em grande parte é inédita, daí a originalidade de seu livro: ele escreve a vida de Louis Martin, para aí estudar objetivamente e geneticamente, se é possível dizer, a evolução de sua santidade: sua vocação religiosa frustrada (como aconteceu com São Bento Labre e tantos outros), seu projeto de vida eremítica e celibatária e o casamento que lhe impuseram, mas ao qual se obrigou livre e discretamente: à meia noite, segundo uma tradição local.
O Dr. Cadéot estudou a vida de Louis Martin no Hospital Bom Salvador (seu asilo psiquiátrico). Ficamos sabendo o que era naquele tempo a vida dos doentes cuidados pelos religiosos: o acordar pela manhã (5h30 no verão e 6h no inverno), a possibilidade de ir à missa cotidiana para aqueles que não se exaltavam, e o trabalho que não era forçado, mas que dava a cada qual uma ocupação - esta razão de ser e de viver que falta drasticamente a certos desequilibrados que são privados, contra sua vontade, desse direito elementar, dessa justificação fundamental da qual todo homem tem necessidade.
A originalidade da pesquisa do Dr. Cadéot – e também seu valor – prende-se à articulação de duas perspectivas que raramente se conjugam.
O autor é médico. Cuidou de pessoas atingidas de arteriosclerose cerebral como a de Louis Martin. Ele as cuidou e acompanhou humanamente de perto: observou nessas pessoas afastadas da sociedade, decaídas, desprezadas, os valores que ainda possuíam. Tornando-se médico de uma casa religiosa para deficientes mentais profundos, constatou com o fundador da Obra: “Há entre eles, santos autênticos”. Pode assim recolher, ao mesmo tempo, luzes médicas, psicológicas e espirituais, que lhe permitiram esclarecer, de uma maneira nova, o caso de Louis Martin.
Reconheceu, colecionou e estudou as papeladas médicas do pai de Teresa. Assim aproveitou as observações do Dr. Assailly, médico e confidente de Celina Martin, que já vinha se interessando pelo caso. Fez a análise, estudou a etiologia. A causa não era, absolutamente, herança sifilítica (como se via em toda parte, durante muitos anos, os traumatismos e dramas de muitas famílias). Não era uma paralisia geral – tão mal nomeada, pois que não era uma paralisia. Era um diagnóstico de arteriosclerose cerebral e suas diversas modalidades, como demonstrou o Dr. Cadéot, prestando assim serviço – e justiça – à história às vezes muito sentimental e sem razão dos parentes de Teresa.
A seus conhecimentos de médico e de homem, ele acrescentou suas luzes de fé, não para projetar superestrutura, sonhos e ou fulgores nebulosos sobre o caso de Louis Martin, mas para penetrar com realismo médico e humano nesse caso. Se ele excluiu – direta e sem polêmica – as projeções psicanalíticas espalhadas diversas vezes sobre Teresinha e seus pais, ele não projeta muitos mistérios incertos, mas cita acontecimentos que esclarecem essa dolorosa história.
A vida de Louis Martin foi verdadeiramente entregue a Deus, no esquecimento de si e numa magnânima generosidade, na simplicidade que desabrocha na extraordinária oração que revela o sentido de todo o resto. Louis Martin, cumulado de graças e transbordando de felicidade que Deus dá àqueles que nada lhe negam, declara na sua volta de Alençon, em 1888:
“Na igreja Notre-Dame, recebi grandes graças, consolações tais que fiz esta oração: “Meu Deus, é demais! Sim, sou muito feliz, não é possível ir assim para o céu, quero sofrer alguma coisa por Vós!” E ofereci-me...”
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O resto – sombra e luzes, decadência físico-mental, mas também orações, e enfim, a serenidade na qual o doente não deixou de progredir até seu momento final – encontra-se na esteira dessa oblação.
O Dr. Cadéot recebeu luzes e confirmações de João Paulo II, sobretudo em sua homilia de 02 de agosto de 1980 aos doentes de Lisieux, a 15 de agosto de 1984, em Lourdes, bem como na conclusão de sua Carta Apostólica de 11 de fevereiro de 1984, sobre o sofrimento: “... pelo Cristo fica claro o enigma da dor e da morte”.
Ele recolheu as declarações de Teresa que esclarecem essa zona sombria: “Ficar criança diante de Deus é reconhecer seu nada...”
Percebe bem o sentido bíblico deste fim orientador: “Completo em minha carne o que falta aos sofrimentos de Cristo para seu corpo, que é a Igreja” (Cl 1,24). Louis Martin viveu isso.
Graças a essas luzes conjugadas, o médico, o homem e o cristão, rico de uma experiência que mereceria ser partilhada, esclarece os dramas e problemas de nosso tempo.
Os progressos da medicina, que prolongaram a vida humana, também multiplicaram os casos de arteriosclerose cerebral de que foi vítima Louis Martin: esta síndrome de decrepitude e de deficiência mental que todos nós tememos.
A eutanásia seria a solução? É o primeiro pensamento que vem ao espírito do homem moderno. E seria minha própria tentação se me encontrasse no limiar de tal prognóstico. Mas, todo sofrimento, mesmo esse, pode ser assumido no amor de Jesus Cristo. Ele pode se tornar precioso, e foi o que aconteceu com Louis Martin. Foi também o que aconteceu com inúmeros pacientes que o Dr. Cadéot acompanhou como médico, como amigo e como cristão. A deontologia médica lhe proíbe delinear cada caso, mas ele nos faz conhecer os frutos.
Este livro nos convida, pois, a reconhecer os caminhos pelos quais o amor pode habitar mesmo na desgraça: “Tudo coopera para o bem daqueles que amam a Deus” diz São Paulo (Rm 8,28). Mesmo o pecado, afirma Santo Agostinho. Mesmo a demência, acrescerá o Dr. Cadéot.
Este livro não deixará de colocar ao leitor uma pergunta que seu próprio autor não coloca, dominado que está pelo único cuidado da objetividade médica e espiritual: Seria necessário canonizar o pai de Teresa, como certas pessoas têm sonhado?
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Alguns veem nisso uma projeção ridícula sobre pequenos burgueses insignificantes, bons para servir de pano de fundo às improvisações da psicanálise. Sem tratar dessa questão e desse problema, o livro do Dr. Cadéot traz uma perspectiva positiva do assunto.
Essa vida exemplar entregue a Deus até o aniquilamento, em que a graça lhe outorgou algumas horas de calma e serenidade para acompanhar Teresa na sua tomada de hábito, manifesta uma realidade essencial ao mesmo tempo à Igreja e ao Evangelho: essa santidade sem obras nem aparato é, muitas vezes, ignorada ou desconhecida pela Igreja... Não seria necessário ilustrá-la, mostrando o modelo frutuoso e acessível a todos? Não seria necessário usar critérios menos sistemáticos e mais evangélicos para reconhecer e canonizar esse gênero de santidade?
Não seria necessário levar mais em consideração na Igreja a santidade dos pobres, que são os destinatários do Evangelho? Essa santidade muitas vezes reconhecida, como sabem os padres, não poderia ser posta em evidência mais concreta e menos anônima que na festa de Todos os Santos?
A santidade dos pobres foi a da Virgem Maria, que em seu
Magnificat se colocou entre eles, como um ser solidário de sua condição: “O Senhor olhou a pobreza de sua serva... Ele elevou os pobres!” (cf. Lc 1,48-52).
Na santidade dos pobres, o próprio Cristo aí se reconheceu. Daí o silêncio total sobre sua vida escondida em Nazaré, sua vida de artesão carpinteiro, filho (adotivo) de um carpinteiro, sua morte de pobre, saindo da sombra para ser tão depressa condenado pelos poderes deste mundo como agitador, talvez político. Sobre o terreno da história profana, a morte de Jesus fica como um fato obscuro. Seu processo não foi conservado, e os que o condenaram não o reabilitaram. Ele não apareceu aos autores de sua morte, mas somente aos pobres que acreditaram n’Ele. A respeito dessa história secular, à qual certos cristãos gostariam de permanecer reservados para reduzir a nada o “Jesus da história” em oposição ao “Cristo da fé”, há muito o que dizer. Toca-se aí no essencial. Se a história dos pobres é pobre também em documento e arquivos, ela é a história cristã fundamental, pois que o evangelho é a Boa Nova anunciadas aos pobres.
É assim que Louis Martin viveu com todos os seus, em uma extraordinária floração de consequências espirituais. Nunca se poderia agradecer o suficiente ao Dr. Cadéot por ter-se manifestado com tanta clareza de ciência e de despojamento.
Não digo (como também os autos): “É necessário canonizar Louis Martin”. É a Igreja que deve julgar. Mas é bom que o presente livro coloque essa questão muitas vezes obscurecidas pelo artífice, tanto do fervor como da crítica, na pura luz da História e do Evangelho.