Quisera eu que, assim como me mandaram com ampla licença escrever o meu modo de oração e as mercês que o Senhor me tem feito, também me houvessem permitido, bem detalhadamente e com clareza, dizer meus pecados e minha ruim vida. Dar-me-ia grande consolação; mas não mo permitiram; antes, muito me ataram neste ponto. Por isso, por amor do Senhor, peço que tenha diante dos olhos quem essa narração de minha vida ler, que fui ruim, a ponto de ainda não ter achado Santo, dos que se converteram a Deus, com quem me consolar. Sim, pois vejo que, depois do chamado do Senhor, não tornavam a ofendê-lo. Eu não só voltava a ser pior, mas parecia estudar o modo de resistir às graças de Sua Majestade, como quem se via obrigada a servir mais e tinha consciência de não ser capaz de pagar nem o menos que já devia.
[2]
Seja bendito para sempre Aquele que tanto me esperou e a quem de todo o coração suplico que me dê graça para, com toda a clareza e verdade, redigir esta relação que meus confessores me mandaram fazer. O mesmo Senhor também o quer há muito tempo, bem o sei, mas não tinha me atrevido. Seja para sua glória e louvor e para que, futuramente, conhecendo-me melhor, ajudem a minha fraqueza, e eu de algum modo possa servir ao Senhor pelo muito que lhe devo. Para sempre O louvem todas as criaturas. Amém.
O fato de ter pais virtuosos e tementes a Deus, e de ser tão favorecida do Senhor, se eu não fosse tão ruim, bastar-me-ia para ser boa. Era meu pai afeiçoado a ler bons livros, e os tinha em língua vernáculo para que seus filhos os lessem. Isso, com o cuidado que minha mãe tinha de nos fazer rezar e de nos ensinar a ser devotos de Nossa Senhora e de alguns Santos, começou a despertar-me à piedade, a meu parecer na idade de seis ou sete anos. Fazia-me muito bem não ver em meus pais estima senão para a virtude. Tinham muitas. Era meu pai
[3] homem de muita caridade com os pobres, piedade com os enfermos e bondade com os criados; tanto era assim que jamais se pôde conseguir dele que tivesse escravos, porque lhes tinha grande compaixão; e tendo uma vez, em casa, uma escrava de um irmão seu, a tratava como a seus filhos. Dizia causar-lhe insuportável pena só de pensar que ela não era livre. Foi de grande verdade; jamais alguém o ouviu jurar, nem murmurar. Honestíssimo, em extremo.
Minha mãe, que também tinha muitas virtudes e era de grandíssima honestidade, passou a vida com frequentes enfermidades. Sendo muito bela, jamais deu ocasião a que se entendesse que dela fazia caso; e, apesar de morrer aos trinta e três anos, já usava traje de pessoa idosa. Era de trato muito ameno e de bastante entendimento. Foram grandes os trabalhos que passou durante o tempo que viveu. Morreu muito cristãmente.
Éramos três irmãs e nove irmãos; todos, pela bondade de Deus, se assemelharam a seus pais, em ser virtuosos, exceto eu, que, no entanto, fui a mais querida de meu pai. E, antes que eu começasse a ofender a Deus, não era isso, ao que parece, sem alguma razão, pois tenho lástima quando relembro as boas inclinações que me tinha dado o Senhor, e quão mal usei delas. Meus irmãos em nada me impediam de servir a Deus.
Tinha um quase de minha idade
[4] que era o meu mais querido, ainda que eu a todos tivesse grande amor e eles a mim; ficávamos juntos lendo as vidas de Santos. Como eu via os martírios que por Deus passavam as santas, parecia-me que compravam muito barato o gozo de Deus, e desejava muito morrer assim, não por amor, ao que entendo, mas para gozar tão em breve dos grandes bens que lia haver no céu. Unia-me por isso com meu irmão para tratar dos meios de o conseguirmos. Planejávamos ir à terra de Mouros, esmolando por amor de Deus, para que lá nos cortassem a cabeça; e parece-me que nos dava o Senhor ânimo em tão tenra idade para o executar se houvesse algum meio, mas o fato de termos pais muito nos embaraçava.
[5] “Em extremo nos espantávamos quando líamos que a pena e a glória hão de ser para sempre. Acontecia-nos ficar longas horas tratando disso, e gostávamos de dizer muitas vezes: “Para sempre! Sempre! Sempre!” Ao pronunciar estas palavras por muito tempo, era o Senhor servido que me ficasse impresso na alma, nesses tenros anos, o caminho da verdade.
Como vi que era impossível ir aonde me matassem por Deus, tentamos ser eremitas, e numa horta que havia em casa procurávamos, como podíamos, fazer ermidas, amontoando umas pedrinhas que logo caíam; e assim, em nada achávamos remédio para nosso desejo. Faz-me agora devoção ver como me dava Deus tão depressa o que perdi por minha culpa.
Fazia esmolas como podia, mas pouca era a possibilidade. Procurava solidão para rezar minhas devoções, que eram bastantes, em especial o Rosário, do qual minha mãe era muito devota, e assim nos incutia a mesma devoção. Quando brincava com outras meninas, gostava muito de figurar mosteiros, fazendo como se fôssemos monjas, e, ao que me parece, desejava sê-lo, ainda que não tanto como as coisas ditas acima.
Recordo-me de que quando morreu minha mãe, tinha eu doze anos ou pouco menos.
[6] Quando comecei a entender o que havia perdido, fui aflita a uma imagem de Nossa Senhora e supliquei-lhe com muitas lágrimas que me servisse de mãe. Penso que essa prece, ainda que feita com simplicidade, me tem valido; pois conhecidamente com esta Virgem Soberana me tenho achado em tudo o que lhe encomendo, e finalmente me converteu a si. Aflige-me agora ver e pensar qual a causa de não perseverar inteiramente nos bons desejos com que comecei.
Ó Senhor meu! Tendes, ao que parece, determinado que me salve — queira a Vossa Majestade que assim suceda! — e já então me queríeis fazer tantas mercês como me tendes feito, por que não houvestes por bem, não em proveito meu, mas em reverência a Vós, que não se sujasse tanto a pousada onde tão continuamente havíeis de habitar? Aflige-me, Senhor, ainda o dizer isto, porque sei que foi minha toda a culpa, pois vejo que nada poupastes para que, desde essa idade, fosse eu toda vossa. Queixar-me de meus pais, também não posso, porque neles não via senão grande virtude e cuidado de meu bem. Entretanto, crescendo eu em idade e começando a entender as graças naturais que me havia dado o Senhor, as quais, segundo diziam, eram muitas, quando por elas lhe havia de ser agradecida, comecei a ajudar-me de todas para o ofender, como agora direi.
[1] O Padre Dominicano Pr. Garcia de Toledo.
[2] Essas expressões e muitas outras que se encontram frequentemente nos escritos de Santa Teresa, devem ser atribuídas à sua humildade e à dor que lhe causava a lembrança das resistências opostas por muitos anos às graças extraordinárias do Senhor. Seu coração agradecido em extremo, seu espírito altamente iluminado sobre o que merece Deus das criaturas, — primeiro pelo que é em Si mesmo e depois pelos seus benefícios e particulares mercês, — compreendia que não é muito chorar toda a vida a mínima infidelidade. É fato averiguado e incontestável que nunca perdeu a inocência do Batismo. Não só o atestam unanimemente todos os seus biógrafos e confessores, mas na própria Bula de canonização dirimiu todas as dúvidas o Santo Padre Gregório XV com as seguintes palavras: “Entre as demais virtudes suas, em que, como Esposa adornada do Senhor, se avantajou esta serva de Deus, resplandeceu de modo particular sua inteiríssima castidade, a qual tão excelentemente guardou, que não só conservou até à morte o propósito de guardar virgindade que tinha feito desde menina, senão também na alma e no corpo teve uma pureza angélica, livre de toda mácula e pecado”.
[3] Chamou-se o pai de Santa Teresa D. Afonso Sanches de Cepeda, fidalgo da antiga nobreza espanhola. Nasceu em Toledo, mas viveu em Ávila, cidade de Castela a Velha, chamada Ávila dos santos e dos cavaleiros, em razão dos filhos ilustres que deu à Igreja e à Pátria, dos quais o mais célebre foi certamente a grande Reformadora do Carmelo. Foi casado duas vezes. De seu primeiro matrimônio com D. Catarina del Peso e Henao, teve três filhos: João, Maria e Pedro. Do segundo, com D. Beatriz de Ahumada, mãe da Santa, nasceram-lhe: Fernando, Rodrigo, Teresa, Lourenço, Antônio, Pedro, Jerônimo, Agostinho e Joana.
[4] Rodrigo, quatro anos mais velho que a Santa.
[5] Tendo de idade sete anos, tentou a Santa realizar seus desejos de martírio, esquiva-se da casa paterna, juntamente com seu irmão Rodrigo, atravessa parte da cidade, transpõe uma das portas do Sul e a ponte do rio Adaja e lá vai pela estrada de Salamanca, em busca da “terra de Mouros”, quando, encontrados os fugitivos por D. Francisco Álvarez de Cepeda, seu tio, são restituídos à casa. Teresa, acusada pelo irmão como autora da aventura, longe de se desculpar, chora inconsolavelmente, vendo frustrados seus planos de martírio. A Igreja celebra essa linda façanha nessa estrofe do hino da Santa:
Arauto do Rei superno,
Abandonas, Teresa, a casa paterna,
Para dar às terras dos bárbaros
A fé de Cristo ou o leu sangue.
[6] Aqui há engano. Santa Teresa tinha então de treze para quatorze anos.