Prefácio
Faltava na produção teológica em nossas terras brasileiras um texto de Cristologia que, destinado principalmente aos que se iniciam nas artes da ciência divina, se propusesse como manual. Não falta mais. Temo-lo nesta obra que o Pe. Dr. Françoá Costa nos põe em mãos. Nela, nos é apresentado um estudo da pessoa e da obra de Jesus Cristo em plena sintonia com as diretivas do Concílio Vaticano II em que se reconhece o lugar que cabe à Sagrada Escritura como a alma da teologia (Dei Verbum, n. 24). Assumindo tal princípio, coerentemente, o Concílio determina que a teologia dogmática comece sempre pelos temas bíblicos (cf. Optatam Totius, n. 16). Esse mesmo Concílio reafirma, de acordo com a lógica da história da salvação, especialmente com o texto de Hb 1,1-2, a importância do mistério do Verbo feito carne em sua centralidade, o que deve inspirar todas as nossas considerações em torno à revelação de Deus. Afirma ainda que “a ‘economia’ cristã, como nova e definitiva aliança, jamais passará, e não se há de esperar nenhuma outra Revelação pública antes da gloriosa manifestação de nosso Senhor Jesus Cristo (cf. 1 Tm 6,14; Tt 2,13)” (Dei Verbum, n. 4). Estas perspectivas são integradas explicitamente e estão assaz presentes no livro Jesus Cristo, o único Salvador, como se vê já a partir de seu título. Ele assume, levando a necessárias consequências, o dado de fé segundo o qual a revelação plena e definitiva de Deus se dá em Jesus de Nazaré. A este propósito, a Igreja tem afirmado a unicidade de Jesus Cristo como salvador e de sua obra salvífica, inclusive nos documentos que se referem ao contexto de pluralismo religioso e de diálogo com o mesmo. O autor se coloca, portanto, em plena sintonia com o recente do Magistério da Igreja.
Jesus Cristo é aqui apresentado no marco da grande história da salvação, porém a partir do Evangelho, como coração da Escritura. Aqui se nota a sintonia com o modo eclesial de ler a Bíblia, uma vez que Jesus Cristo é a inteligibilidade do texto sagrado, que dele fala e a ele conduz. Assim fizeram os nossos Santos Padres, cujo testemunho aprendemos a valorizar, especialmente desde a renovação patrística dos séculos XIX e XX, mas, muito especialmente a partir do esforço teológico de autores como Henri de Lubac, Joseph Ratzinger e Jean Daniélou. Deste último teólogo, o Pe. Françoá Costa dá testemunho de que muito aprendeu por ter feito sua tese doutoral na obra dele, o que fica patente pela abundante citação do grande teólogo francês. Ler a Escritura na Tradição e nela encontrar o Cristo, implícita ou explicitamente, é o que o autor deste livro nos leva a fazer quando analisa os diversos textos da Escritura tanto do Novo quanto do Antigo Testamento, no contexto harmônico da tipologia, porém sem desatender os métodos histórico-críticos em seu estudo e exposição dos diversos temas escriturísticos.
Um aspecto destacado por vários autores recentes é a necessidade da união entre a cristologia e a soteriologia. Isto é bastante claro na presente obra, que evidencia a unidade entre o ser e o agir de Jesus de Nazaré. Sem omitir a possibilidade de um tratado à parte de soteriologia, o autor prefere uni-los, atendendo não somente à sensibilidade teológica atual, mas também em coerência com os grandes mestres da Cristologia. Efetivamente, Santo Tomás de Aquino, na terceira parte da Suma de Teologia, realiza um estudo sobre Jesus Cristo no qual ele é apresentado desde o começo como o Salvador da humanidade. Sem dúvida, essa maneira de expor o tratado sobre Jesus Cristo não deixa de ser uma sugestão para o estudo sistemático desta parte da teologia: uma única matéria teológica que se chame cristologia ou cristologia-soteriologia, na qual seja considerada também a nossa salvação em Jesus Cristo. Sendo apenas uma sugestão, as faculdades e os professores que acolherem como livro de texto, ou como manual de referência, este que agora prefaciamos, podem perfeitamente continuar a fazer a divisão entre as duas matérias utilizando a primeira metade do livro para a cristologia; a segunda, para a soteriologia.
Sem ser exaustivo, o autor deste livro se dá conta daquela literatura que mostra uma “cristologia arcaica”, mas que é testemunha impressionante de um período da história da Igreja, frequentemente legada ao esquecimento. O autor está atento também à literatura paralela aos livros canônicos da Bíblia que, longe de favorecer o que Adolf von Harnack chamou de “helenização do cristianismo”, mostra, pelo contrário, que os aspectos fundamentais da Cristologia e seus principais temas, não foram determinados por uma assunção indevida de mitos ou categorias do mundo grego, mas que eles já estavam presentes na expectativa messiânica judaica. Padre Françoá, seguindo Jean Daniélou, evidencia que na compreensão tradicional de quem é Jesus Cristo e do que ele fez por nós, não se encontra uma indevida influência do pensamento grego. Ela é determinada pela divina revelação.
O estudo dos concílios cristológicos no presente livro ocupa seu lugar correto: logo após o estudo bíblico sobre Jesus Cristo e antes dos desenvolvimentos históricos medievais e modernos sobre o mistério da encarnação e da salvação. Nesse sentido, a centralidade do Concílio de Calcedônia em cristologia fica bem ressaltada pelo autor, o qual se coloca no marco de uma cristologia emoldurada na obediência ao Magistério da Igreja, que propõe a verdade de sempre ao homem de cada momento. A perspectiva do Dr. Costa em Jesus Cristo, o único Salvador é prioritariamente “de cima”: a partir da revelação se deduz as grandes verdades histórico-dogmáticas sobre Jesus Cristo e sua ação salvífica. Sabemos que a teologia, há várias décadas, tem optado fortemente por uma Cristologia “de baixo”, o que se revela peculiarmente forte em nosso contexto latino-americano. É certo, porém, que grandes benefícios advêm do diálogo entre essas duas tendências, como se deu naquele ocorrido entre as escolas de Alexandria e de Antioquia. A aproximação e o diálogo entre essas duas tendências podem iluminar diversos aspectos do pensamento teológico atual, levando-o a uma nova síntese, cujo esboço se pode já encontrar no presente livro.
A ação salvadora de Jesus Cristo se dá como aliança – de Deus com a humanidade, do Verbo com a humanidade, da graça com cada alma através dos Sacramentos da Igreja e das ações extraordinárias do mesmo Deus – que, num primeiro momento, parece se realizar de maneira mais unilateral, pois à fidelidade de Deus que não falha se contrapõe a infidelidade humana, para, posteriormente, na humanidade de Jesus Cristo, ser verdadeiramente bilateral: a fidelidade do homem Jesus no tempo corresponde à fidelidade de Deus em sua eternidade que se empenha no tempo e no espaço. É a partir do conceito de aliança que nosso autor apresenta a união hipostática, mistério central da Cristologia, a qual nos fala da união do divino com o humano na única Pessoa do filho de Deus. É também a partir do mistério da aliança que ele enfoca a soteriologia: assim como Deus fez aliança na Páscoa através do antigo Cordeiro, o mesmo Deus faz aliança com a humanidade através do novo Cordeiro de Deus, que é o seu Cristo. É ainda a partir da aliança que ele propõe a compreensão da nossa relação com Deus Pai, em Jesus, pela ação do Espírito Santo. É muito bom termos uma obra em língua portuguesa que valorize tanto essa categoria que, sem dúvida alguma, se encontra no coração da Bíblia.
A vida de Jesus Cristo encontra-se trabalhada neste livro com grande respeito ao mistério, atenta à história bíblica e com enorme atenção à Tradição. O leitor poderá encontrar, nesta obra, respostas a diversos questionamentos referentes a passagens de difícil interpretação do Novo Testamento. Um ponto alto, talvez o mais impressionante deste manual de Cristologia, é o que trata sobre mistério central da nossa salvação, a cruz e a ressurreição de Jesus. Aí o autor valoriza a novidade de publicações bem recentes em torno a essas questões. Neste sentido, vale a pena sublinhar o desenvolvimento que o autor dá ao tema da redenção-salvação, às especulações que faz em torno do mistério do descenso de Cristo à região da morte, aos aspectos salvíficos dos dias entre a ressurreição e o envio do Espírito Santo em Pentecostes. Como Santo Tomás de Aquino, o Dr. Costa trata do mistério da Virgem Maria no contexto da Cristologia-soteriologia. Assume uma perspectiva, compartilhada por teólogos atuais, que a situa no plano da salvação, mais precisamente no coração do mistério da redenção, aprofundando aspectos de sua mediação materna. Ainda que não sejam verdades dogmáticas sobre Maria Santíssima, sem dúvida são apontamentos a serem tidos em conta no desenvolvimento da própria Mariologia no seu fazer-se atual.
O autor deste livro manifesta sua fé no mistério da encarnação de maneira clara e se propõe a levar seus leitores a entenderem de maneira lúcida algo do que se pode entender do mistério do Verbo que se fez homem para nos salvar. Diversas posições assumidas pelo autor podem se chocar com aspectos da mentalidade atual. Ele leva a sério os riscos que as convicções de contextos que, para usar um termo caro a Bento XVI, se caracterizam, em diversos aspectos, como relativistas. É certo, porém, que o leitor tem nas mãos um livro de estudo sobre Jesus Cristo que se situa, ex professo, no âmbito da fé católica.
Mons. Dr. Antonio Luiz Catelan Ferreira
Professor do Departamento de Teologia da PUC-Rio
Membro da Comissão Teológica Internacional
Apresentação
Todo professor, em sua tarefa docente, vai preparando, pensando nos seus alunos, aulas que, posteriormente, com certa ordem, poderiam virar textos de estudo cada vez mais sistemáticos; um dia, talvez, tais textos poderão ser utilizados por alunos jamais conhecidos. Esta é a aventura de escrever um livro que pretenda abranger o necessário para cursar as disciplinas que, nos estudos teológicos, chamam-se cristologia e soteriologia. Contudo, essas disciplinas teológicas encontraram, sobretudo no século XX, defensores entusiasmados de que a soteriologia não pode ser algo separado da cristologia, que é preciso unir em Jesus Cristo, nas considerações teológicas, sua ação e seu ser
[1]. Um dos livros mais completos sobre cristologia-soteriologia em língua portuguesa publicado no Brasil é de Mario Serenthà, o qual começa, por exemplo, com o tema da ressurreição de Jesus
[2] Ainda que nós não sigamos a orientação de Serenthà neste nosso livro, não somente estamos atentos à unidade dessas disciplinas, mas defendemos também a ideia de que essas disciplinas são um único tratado teológico e, como o leitor poderá comprovar, esse livro o levará pelos conteúdos que normalmente devem compreender a cristologia e a soteriologia. Contudo, não ignoramos o fato de que há autores que defendem que cada um desses tratados deveria ser exposto separadamente por causa da amplitude e complexidade própria de cada um deles
[3].
Nesse contexto, um dado mostra-se importante para entender o surgimento de mais um manual: é fato que, a partir dos anos 70 do século XX, a teologia na América Latina, em alguns setores, distanciou-se das orientações do Magistério Católico. Portanto, além das necessidades acadêmicas, viu-se necessário escrever esse texto para oferecer aos alunos uma oportunidade de estudarem sobre a obra e a pessoa de Jesus Cristo em pleno acordo com o Magistério eclesiástico, sem, ao mesmo tempo, dogmatizar pontos nos quais a Fé da Igreja os deixa em aberto.
A orientação das páginas que se seguem encontra-se em continuidade com essa grande linha teológica seguida pelo último Concílio Vaticano, segundo a qual a reflexão teológica realiza-se no contexto da história da salvação. Para sublinhar esse aspecto, esse manual consta de três partes bem definidas. A primeira parte é histórica e, por isso, partimos dos dados do Novo Testamento, pois desde o começo, apesar do tipo de história que temos no Evangelho, defendemos essa historicidade como realidade fundamental para falarmos do Jesus real, aquele que existiu na Palestina, que pregou, que morreu e ressuscitou. Esse momento mais importante da História Sagrada, a vida de Jesus, teve uma influência decisiva no Universo, especialmente no nosso mundo conhecido; por isso, procuramos entender, também historicamente, a presença de Jesus Cristo ressuscitado na Igreja e no mundo. Esta primeira parte termina propondo alguns elementos importantes para fazer cristologia-soteriologia que esteja atenta tanto aos elementos perenes como aos movimentos da história.
Na segunda parte, entramos mais uma vez na Sagrada Escritura, porém tendo em conta a história do dogma. No entanto não queremos que o leitor tenha a impressão de que os dogmas católicos são realidades engessadas, quadriculadas, sem vida. Tal caricatura é simplesmente distante da realidade. Julgamos de grande importância contextualizar o dogma cristológico-soteriológico na economia da salvação, cujos momentos mais importantes encontram-se escritos na Bíblia. Somos, porém, conscientes de que Deus quer salvar a todos, por isso defendemos a existência de uma espécie de economia da salvação entre os povos pagãos, pois a sabedoria grega, principalmente, demonstra-o amplamente, especialmente através de seus principais filósofos, como Sócrates, Platão e Aristóteles. Afirmado o anterior, somos conscientes de que Jesus Cristo é o único salvador da humanidade e que a Igreja Católica, bem unida ao seu Esposo Jesus, é o sacramento universal de salvação.
Três capítulos compõem, portanto, a segunda parte desse livro: no primeiro, procuramos entender a tipologia presente na Escritura através de algumas “figuras” veterotestamentárias; no segundo, observamos como as realidades superam as figuras, pois estas se cumprem em Jesus de Nazaré; no terceiro capítulo, sem perder de vista a dinamicidade da salvação, tratamos alguns temas clássicos dos manuais de cristologia e que perfazem a dogmática realizada no contexto da Igreja na antiguidade até o século VIII.
A terceira parte, mais do que uma vida de Jesus Cristo, é um estudo de algumas estações da vida de Jesus nas quais essa disciplina tem particular interesse, evitando o isolamento das verdades de fé. Temas como a consciência que Jesus Cristo tinha de si mesmo e de sua missão aparecerão, por exemplo, no momento em que ele é apenas um adolescente e visita o Templo; a graça e a santidade de Jesus Cristo aparecem no umbral de sua vida pública. Enfim, esses dois são apenas exemplos do conteúdo apresentado nos cinco capítulos dessa última parte que correspondem à infância, à vida pública, ao mistério pascal e à temática relacionada à redenção, a morte de Jesus e os mistérios de sua ressurreição.
Desde o começo, portanto, e visando a unidade da ciência teológica, defendemos que o “estudo sobre Cristo” (cristologia) é também estudo sobre “o nosso salvador” (soteriologia). Nesse sentido, não separamos a soteriologia da cristologia, mas entendemos ser uma única disciplina que, para forjar uma unidade mais notória na mente de quem a estuda, deveria estar unida em seus aspectos mais ontológicos, como igualmente nos mais existenciais. Para facilitar a leitura situada numa teologia orante, tivemos a preocupação de colocar vários textos que chamamos de “meditação da Igreja”. Isto é, primeiramente a Igreja celebra, ela ora o Mistério de Jesus Cristo; com o passar do tempo e à medida que vão surgindo as perguntas sobre Jesus de Nazaré, ela lhes vai respondendo e muitas vezes inclusive as transforma em dogmas, verdades incontestáveis. Essas verdades, declaradas como
de fé divina e católica (dogmas), ou não, são novamente rezadas na fé da Igreja, repensadas constantemente, amadas no coração da Esposa. Por isso, quisemos deixar à consideração do leitor diversos autores cristãos que rezaram, pensaram e amaram Jesus Cristo na Igreja. Temos a convicção de que essa maneira de fazer teologia nos oferece o Cristo real e verdadeiro, e não o ídolo mental que tantas vezes se procurou construir a partir de ideologias que com o passar do tempo, graças a Deus, são destruídas, porém não sem deixar grandes prejuízos.
O texto que o leitor tem nas mãos é fruto de alguns anos em sala de aula, de oração e de pensamento. Tenho certeza de que não é um texto perfeitamente acabado. Consciente das limitações, espero superá-las com os anos de oração, de pesquisa e docência sobre o mistério de Jesus Cristo que a Divina Providência ainda me conceder. No entanto, como a nossa ciência é necessariamente limitada, esperamos que um dia ela se verá substituída pela visão do Deus uno e trino e pelo abraço que daremos em Jesus Cristo, nosso Senhor e Salvador, aquele que deu sentido à nossa vida, salvando-nos.
Agradeço a todos os que me ajudaram nesse trabalho, especialmente aos meus alunos em suas indagações. De fato, esse texto é para eles. Ao Prof. Dr. César Izquierdo, da Universidade de Navarra, meus agradecimentos mais sinceros, pois foi ele o primeiro que teve a paciência de introduzir-me num estudo sério sobre a pessoa e a obra de Jesus de Nazaré, durante os anos da tese de doutorado. E, indo um pouco mais atrás, lembro-me de um dos professores mais cultos e mais entusiasmados pela teologia que já conheci, o Dr. Lucas Francisco Mateo-Seco, que nos animava com seu rigor científico e sua capacidade de rir até mesmo com os assuntos mais sérios da teologia. Ao entregar esse livro aos leitores, penso especialmente nos alunos da Faculdade Católica de Anápolis (Goiás), da qual sou professor e diretor, e nos alunos do
Institutum Sapientiae, do qual sou professor de cristologia e de outros tratados sistemáticos.
Agradeço ao meu bispo, Dom João Wilk, a autorização para que essa obra fosse publicada. Sou muito grato também à Gabriella Gomes Silva, por sua ajuda na correção do texto, e ao Rafael de Souza Marques que, em sua criatividade, deu-me a ideia para a capa deste livro. Finalmente, muito me alegraria se esse texto fosse também de proveito para muitas pessoas, se ele ajudasse a conhecer e a amar mais a Jesus de Nazaré, Deus verdadeiro e homem verdadeiro.
Introdução
Cristologia é o nome da disciplina central da teologia e significa “estudo sobre Cristo”, mais precisamente, um discurso sistemático sobre o ser de Cristo baseado principalmente na fé dos concílios do primeiro milênio cristão e das discussões em torno a eles, cujo momento mais importante foi o Concílio de Calcedônia, no ano 451. Conexo ao tratado de cristologia, se encontra o de soteriologia ou “estudo sobre a salvação”. Para ser mais exato, soteriologia é um discurso sistemático sobre a salvação realizada em Jesus Cristo em favor de toda a humanidade. Assim como a cristologia trata mais sobre o ser de Cristo, a soteriologia versa sobre a sua atuação salvífica em nosso favor.
O objeto da cristologia é Jesus Cristo; o da soteriologia, a salvação que Jesus nos oferece. Quanto à metodologia da cristologia-soteriologia, há basicamente duas tendências: a primeira é mais tradicional e se poderia chamar, numa linguagem relativamente nova, de cristologia “desde cima” ou “cristologia descendente”; a segunda tendência metodológica esteve presente em alguns momentos da história e teve grande êxito na segunda metade do século XX, chamamo-la cristologia “desde baixo” ou “cristologia ascendente”. Essa consideração metodológica não é inocente, muito menos indiferente. Não é inocente porque por detrás da defesa de uma ou outra metodologia se encontra muitas perspectivas que, frequentemente, nos levam a interrogar se são ou não acordes com a Fé Católica. Tampouco são indiferentes, como se fossem meramente caminhos científicos para tratarem sobre o mesmo objeto: de fato, uma maneira ou outra de buscar a compreensão do mistério “Jesus de Nazaré”, influencia de maneira decisiva no resultado da pesquisa.
A cristologia-soteriologia dita “desde cima” se encontra aberta ao fato de que aquilo que sabemos sobre Jesus nos foi revelado por disposição divina e faz parte do plano eterno de Deus. Utilizando o método “descendente”, o teólogo estará atento aos dados da revelação expressados na Tradição e na Escritura, assim como à interpretação que o Magistério da Igreja fez sobre esses mesmos dados. Nessa perspectiva, aceitaremos o fato de que “o Verbo se fez carne” (Jo 1,14) e, portanto, conscientes de que Jesus Cristo é Deus que veio nos visitar tomando aquilo que é nosso, nos abriu o caminho para que a nossa realidade passageira chegasse à felicidade dos tabernáculos da divindade. Essa maneira de fazer teologia sobre Jesus e a salvação está presente nos primeiros pensadores cristãos, como Irineu e Tertuliano, nos grandes teólogos medievais, como Santo Tomás de Aquino ou São Boaventura, e continua presente naquelas teologias que têm preocupação de acertar a descrição sobre o objeto desse estudo.
Efetivamente, não se pode falar de Jesus de Nazaré corretamente se não se tem em conta a revelação divina sobre quem ele é. Para demonstrar essa afirmação, basta que observemos nos textos do Evangelho como algumas pessoas viam Jesus e seus milagres e mesmo assim tinham uma visão distorcida sobre ele, alguns até chegaram a dizer que ele estava endemoninhado (cf. Mt 12,9-14; Mc 3,22-30). Dito de outra forma, não basta observar o homem Jesus para deduzir que ele é Deus, mas é preciso partir dos dados da revelação, entre eles que Jesus de Nazaré é Deus que se fez homem, para entender, de maneira contextualizada, sua maneira de agir. Tampouco é suficiente dizer que Jesus de Nazaré era um homem totalmente aberto a Deus nas camadas mais transcendentais da sua existência por mais que fosse contestado nas camadas predicamentais desta mesma existência.
Afirmando o anterior, não fica difícil deduzir que a cristologia “desde baixo” ou “ascendente” se encontra diante de um grande desafio. Assim como alguns contemporâneos de Jesus, vendo sua pessoa e suas ações, distorceram, com grande frequência, o significado da realidade, encontramo-nos também nessa tendência metodológica ascendente erros verdadeiramente grotescos sobre quem é Jesus. Por exemplo, muitas vezes se deduziu que Jesus seria um pacifista; outras, um revolucionário; outros ainda, que se trata apenas de um homem iluminado por Deus. Muitas “cristologias”, que se vendem em livrarias cristãs, estão minadas por esses pensamentos. A cristologia “desde baixo” é frequentemente “Jesuologia”, isto é, busca o homem histórico chamado Jesus e, a partir de suas ações e palavras transmitidas no Evangelho, deduz uma série de teses difíceis de serem provadas. Ademais, é frequente ver nessa metodologia indutiva com pretensões mais científicas como se espalha constantemente a dúvida sobre a divindade de Jesus e se relativiza a salvação que ele nos veio trazer.
Dizíamos que a cristologia ascendente se encontra desafiada. E, no entanto, o mesmo deve se dizer sobre a metodologia “desde cima”. Os nossos tempos são racionalistas em alguns ambientes, sentimentalistas em outros. Para os racionalistas, resulta-lhes tremendamente difícil aceitar que Jesus seja Deus que se fez homem; para os sentimentalistas, é muito complexo afirmar que Jesus Cristo é o único salvador da humanidade, diante de uma sociedade tão pluralista desde o ponto de vista religioso. A absolutização da pessoa e da obra de Jesus, proposta pela Igreja, resulta-lhes intolerante e pouco respeitosa para com a pluralidade e os sentimentos das pessoas. Como resposta inicial a essas objeções, há que dizer que a cristologia-soteriologia que se faz utilizando uma metodologia “descendente” é possível desde a fé e deve ser recebida na fé, de tal maneira que o primeiro momento da cristologia deve ser a fé que procura entender (
fides quaerens intellectum), nem tanto a do entendimento que busca a fé (
intellectus quaerens fidem).
Efetivamente, teologia é uma ciência que se faz no interior de uma comunidade que crê e é um serviço à Igreja. Ademais, não se trata de qualquer serviço, mas uma
diakoní
a que pressupõe o
kerygma e a
katekhesis. Teologia não é necessariamente apologética, ainda que os que aprofundam na sua fé terão condições de dar razões de sua esperança (cf. 1 Pd 3,15). Cristologia e Soteriologia pedem, portanto, um contexto de fé na Divina Revelação, que pressupõe a primeira evangelização e a exposição sistemática da Fé Católica. Tal maneira de pensar não é menos científica, mas uma maneira própria de realizar a ciência teológica.
Nesse sentido, a Congregação para a Doutrina da Fé denunciou, no ano 2000, a tendência de fazer cristologia-soteriologia no contexto de uma metodologia cujos resultados são desastrosos para manter a própria Fé:
Na reflexão teológica contemporânea é frequente fazer-se uma aproximação de Jesus de Nazaré, considerando-o uma figura histórica especial, finita e reveladora do divino de modo não exclusivo, mas complementar a outras presenças reveladoras e salvíficas. O Infinito, o Absoluto, o Mistério último de Deus manifestar-se-ia assim à humanidade de muitas formas e em muitas figuras históricas: Jesus de Nazaré seria uma delas. Mais concretamente, seria para alguns um dos tantos vultos que o Logos teria assumido no decorrer dos tempos para comunicar em termos de salvação com a humanidade.
Além disso, para justificar, de um lado, a universalidade da salvação cristã e, do outro, o fato do pluralismo religioso, há quem proponha uma economia do Verbo eterno, válida também fora da Igreja e sem relação com ela, e uma economia do Verbo Encarnado. A primeira teria um plus-valor de universalidade em relação à segunda, que seria limitada aos cristãos, se bem que com uma presença de Deus mais plena.
Semelhantes teses estão em profundo contraste com a fé cristã. Deve, de fato, crer-se firmemente na doutrina de fé que proclama que Jesus de Nazaré, filho de Maria, e só ele, é o Filho e o Verbo do Pai. O Verbo, que «estava no princípio junto de Deus» (Jo 1,2), é o mesmo «que Se fez carne» (Jo 1,14). Em Jesus «o Cristo, o Filho do Deus vivo» (Mt 16,16), «habita corporalmente toda a plenitude da divindade» (Cl 2,9). Ele é «o Filho unigênito, que está no seio do Pai» (Jo 1,18), o seu «Filho muito amado, no qual temos a redenção [...]. Aprouve a Deus que n’Ele residisse toda a plenitude e por Ele fossem reconciliadas consigo todas as coisas, estabelecendo a paz, pelo sangue da sua cruz, com todas as criaturas na terra e nos céus» (Cl 1,13-14.19-20)
[4]
Quanto à nossa maneira de fazer teologia, a mesma Declaração já citada, apoia-a, ao afirmar que “para fazer frente a essa mentalidade relativista, que se vai difundindo cada vez mais, há que reafirmar, antes de mais, o caráter definitivo e completo da revelação de Jesus Cristo. Deve, de fato, crer-se firmemente na afirmação de que no mistério de Jesus Cristo, Filho de Deus Encarnado, que é «o caminho, a verdade e a vida» (cf. Jo 14,6), dá-se a revelação da plenitude da verdade divina: «Ninguém conhece o Filho senão o Pai e ninguém conhece o Pai senão o Filho e aquele a quem o Filho o queira revelar» (Mt 11,27); «A Deus, ninguém jamais O viu. O próprio Filho Único, que está no seio do Pai, é que O deu a conhecer» (Jo 1,18); «É em Cristo que habita corporalmente toda a plenitude da divindade e n’Ele participais da sua plenitude» (Cl 2,9)
[5].
Depois dessas considerações metodológicas, o autor deste livro faz uma preferência clara: método dedutivo, isto é, “desde cima” ou “descendente” ou “a priori”. As nossas premissas maiores foram recebidas da Revelação e é a partir delas que devemos chegar às nossas conclusões teológicas, inclusive como respostas de fé a Deus, que de fato se revelou. Contudo, não vamos ignorar a importância dos vários aspectos da cristologia ascendente e, sem dúvida alguma, não deixaremos de tê-la em conta ao tratar os mais diversos temas tanto da cristologia quanto da soteriologia. Tentar fazer uma ciência sobre Jesus “a posteriori” é válida, porém, os resultados podem ser qualquer coisa; prova-o a experiência dos séculos XIX e XX. Sem defender um racionalismo dedutivo para falar de Jesus Cristo, um empirismo sobre ele tampouco é possível, pois não acedemos a Jesus de Nazaré de maneira experimental, mas na fé da Igreja e, portanto, a nossa ciência teológica deve estar também no contexto da fé eclesial.
Também foi dito que a cristologia-soteriologia é o tratado central da teologia. Esta afirmação se justifica quando nos damos conta de que o conhecimento que temos de outros mistérios da fé cristã dependem desse centro revelador, que é a pessoa e a obra de Jesus Cristo. Efetivamente, nós conhecemos a Trindade por causa de Jesus Cristo, que nos revelou que Deus é seu Pai e que ele nos enviaria o Espírito Santo; conhecemos a realidade da graça porque ele se manifestou como doador do auxílio do Pai através do Espírito Santo; sabemos que existe uma Igreja porque Jesus Cristo a fundamentou e a fundou; os sacramentos nada mais são que atualizações do mistério de sua Páscoa; a escatologia é esperança nele, em Jesus de Nazaré; a moral cristã nada mais é que
imitação de Cristo; a mariologia tem sua referência em Jesus Cristo de maneira semelhante a como a lua recebe a sua luz do sol.
No conjunto da Suma de Teologia de Santo Tomás de Aquino, a Cristologia-Soteriologia ocupa, na arquitetura teológica do Doutor Angélico, um lugar igualmente central e se encontra na terceira parte: são 59 questões compostas por mais de 300 artigos, os quais equivalem a mais de 300 temas. Desde o começo, Tomás de Aquino unifica a cristologia e a soteriologia ao expor o plano da obra:
Nosso Salvador, O Senhor Jesus Cristo, para
salvar seu povo de seus pecados (Mt 1,21), segundo o testemunho do anjo, mostrou-nos em si mesmo o caminho da verdade, através do qual possamos chegar pela ressurreição à bem-aventurança da vida imortal. Por essa razão, para levar a termo o trabalho teológico (
ad consumationem totius theologici negotii), depois de considerar o fim último da vida humana, as virtudes e os vícios, é necessário que nossa consideração prossiga tratando do Salvador de todos e dos benefícios por ele concedidos a todo o gênero humano.
Para tanto, em primeiro lugar, devemos considerar o próprio Salvador; em segundo lugar, seus sacramentos, pelos quais alcançamos a salvação; em terceiro lugar, o fim da vida imortal, à qual chegamos ressuscitando por ele.
Quanto ao primeiro tópico apresentam-se duas considerações: a primeira refere-se ao próprio mistério da Encarnação, segundo o qual Deus se fez homem para a nossa salvação; a segunda, ao que nosso Salvador, isto é, o Deus encarnado realizou e sofreu (S.Th. III,
prólogo).
A meu ver, a maneira como Santo Tomás propõe a cristologia-soteriologia continua bastante atual, pois ainda que siga a ordem de estudar primeiramente sobre o ser de Cristo e depois sua ação salvadora, não perde de vista, desde o começo, que está sempre falando do Salvador. É sob este prisma que ele trata não somente todas as questões da terceira parte, mas também teve em conta o mistério do Salvador Jesus Cristo para estudar os assuntos que antecederam esse tratamento central da teologia cristã. Contudo, esse nosso livro não é um escrito de teologia tomasiana, mais ainda, nem nos consideramos tomistas para fazer um trabalho de tal magnitude, ainda que tenhamos o apreço a Santo Tomás que a Igreja pede aos professores de teologia. No entanto, como verá o leitor, nossas referências a Santo Tomás de Aquino terão a constância normal de pessoas que admiram o trabalho desse gigante da teologia católica. Aproveitaremos, além do trabalho intelectual de Tomás de Aquino, a tradição teológica de todos os tempos, sempre em sintonia com o Magistério Católico.
A
Cristologia na história
Nesta primeira parte do nosso estudo, vamos apresentar uma visão histórica geral dessa disciplina teológica. Evidentemente, partiremos do Evangelho, nossa fonte escrita primária para o conhecimento da vida de Jesus Cristo, mas sem perder de vista que inclusive as quatro narrações do mesmo Evangelho que encontramos na Bíblia são produto de uma Tradição viva que continua a existir na vida da Igreja. Posteriormente, veremos como a visão dos evangelistas sobre Jesus é uma realidade completa, porém chamada a desenvolver-se harmonicamente no curso dos séculos. Esse trabalho será feito pelos Padres da Igreja e pelos Concílios da Antiguidade, dos quais o momento mais alto será o Concílio de Calcedônia (ano 451), que é o concílio da cristologia.
I - Jesus Cristo: do Evangelho aos Concílios da Antiguidade
Claramente, apresentar algumas anotações históricas sobre o estudo em torno à pessoa e à obra de Jesus Cristo diz relação ao período no qual se expõe o presente texto, já que a teologia dos nossos tempos não surge ex novo, isto é, deve estar atenta ao passado, especialmente à Tradição. Ou seja, não se pode começar a falar sobre Jesus Cristo com base à nossa experiência pessoal simplesmente, mas há que ter em conta que Jesus é aprendido “na Igreja”. Portanto, a nossa compreensão sobre o Mistério de Jesus Cristo só será correta se for não somente o Cristo dos Evangelhos, mas o Cristo dos Evangelhos tal qual a Igreja o entende.
1. Jesus Cristo: do Novo Testamento aos primeiros Concílios
Quando alguém deseja conhecer Jesus Cristo, é normal que indiquemos a leitura do Evangelho. Pensa-se, com razão, e aconselha-se com frequência que a Bíblia seja lida a partir dos Evangelhos. Essa maneira de ver as coisas justifica essa nossa primeira abordagem: vamos diretamente ao Evangelho, em suas quatro narrações, pois é lá que se encontra a fonte principal para conhecermos o Cristo da fé que, para nós, sempre se identifica com Jesus de Nazaré.
(...)
[1] Um desses defensores, já no século XXI, é o cardeal alemão Gerhard Ludwig Müller: “Na concepção bíblica e patrística, a doutrina da pessoa e da obra de Cristo formava uma unidade imediata. Somente na Escolástica tardia aparecem separadas na estrutura da dogmática a doutrina sobre a pessoa de Jesus (união hipostática) e a doutrina sobre a obra salvífica do Redentor. (...) Na teologia atual, a cristologia e a soteriologia devem ser expostas novamente, a partir de seu fundamento radical unitário, como
um tratado teológico. A fonte e o conteúdo de toda a soteriologia é a
pessoa de Jesus. A soteriologia é cristologia na medida em que se realça o aspecto da
pró-existência de Jesus. A soteriologia é coextensiva com a autocomunicação de Deus que se torna escatologicamente concreta no Filho encarnado de Deus. Jesus é o salvador absoluto e o portador da esperança da humanidade que atrai a todos a si” (Gerhard Ludwig MÜLLER,
Dogmática Católica. Teoria e prática da Teologia, vários tradutores, Petrópolis: Vozes, 2014, p. 268-269).
[2] Cf. Mario SERENTHÀ,
Jesus Cristo, ontem, hoje e sempre, ensaio de cristologia, tradução de Isabel Ferreira, São Paulo: Dom Bosco, 1986.
[3] Um desses autores é da Faculdade de Teologia da Universidade Pontifícia de Salamanca, Emílio J. Justo, que publicou um artigo sobre o assunto, em 2018, concluindo que “la salvación es una realidad suficientemente amplia y compleja para justificar que haya una parte de la teología dedicada a ella con identidad propia y con la independencia de una matéria singular. La soteriologia puede entenderse como tratado teológico, con un contenido determinado y con tareas específicas. Tiene como objeto el encuentro personal
entre Dios, que se da a sí mismo como salvación, y el hombre, que busca la salvación y la acoge como un don de Dios” (Emilio J. JUSTO,
El estatuto epistemológico de la soteriología, Scripta Theologica 50 (2018/2) 315).
[4] CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ,
Declaração Dominus Iesus, 9-10. Em http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/ rc_con_cfaith_doc_20000806_dominus-iesus_po.html Vista no dia 05/05/2019