O personalismo é uma filosofia que nasceu na Europa durante a primeira metade do século XX, e caracteriza-se por colocar a pessoa no centro de sua reflexão e de sua estrutura conceitual. Procede de múltiplas fontes, mas se consolidou na França dos anos 1930 e adquiriu posteriormente uma importância notável em toda Europa, influenciando acontecimentos relevantes, como a Declaração da ONU sobre os Direitos Humanos, as Constituições europeias posteriores à Segunda Guerra Mundial e o Concílio Vaticano II. No entanto, desde os anos 1960, foi perdendo relevância pela influência concomitante do marxismo, do estruturalismo, da crise do pós-concílio, das correntes ideológicas ligadas a maio de 1968, etc.
Hoje, no entanto, essa situação mudou, e o personalismo se encontra em um momento de expansão: são produzidas publicações de e sobre filósofos personalistas, aumentam o número de teses doutorais e de Congressos, investiga-se sua aplicação em novas áreas, como a psicologia ou a bioética personalista, surgem novas instituições que se inspiram nele ou o promovem, etc. Seu crescimento, além disso, não se limita ao mundo acadêmico: afeta também o público geral. Nessa época de crise das ideologias, da proibição pós-moderna dos grandes escritos, e de um meio social tão rico de informação como carente de referências, a necessidade de contar com uma antropologia que proporcione uma visão do homem integral, harmônica e profunda se faz cada vez mais urgente. E o personalismo parece estar em condições de oferecer essa visão tão necessária.
O objetivo desse livro é introduzir o leitor nessa filosofia, por meio de um passeio por seus autores e de uma descrição de seus conceitos fundamentais, esperando que assim seja possível descobrir sua grandeza, beleza e potencialidade.
O texto está estruturado do seguinte modo: em primeiro lugar (cap. I), analisamos o contexto cultural e histórico em que o personalismo surgiu. Depois passamos a descrever as principais correntes personalistas, começando pela francesa (cap. II), que é a mais importante, e continuando (cap. III) com os diversos autores e correntes personalistas da Itália, Polônia, Alemanha e Espanha. Em seguida (cap. IV), analisamos o personalismo como corrente filosófica e apresentamos os elementos estruturais e temáticos que o caracterizam a partir de uma síntese pessoal.
O personalismo surgiu na Europa durante a primeira metade do século XX, como movimento de resposta coletiva a um conjunto complexo de questões sociais, culturais e filosóficas: o auge do individualismo e dos coletivismos, tanto de direita (fascismo e nazismo), como de esquerda (marxismo); a preponderância de um materialismo cientificista, que negava o valor da verdade a qualquer proposição não experimental; uma forte crise de valores, percebida por alguns como crise global da civilização ocidental; uma crescente descristianização; a crise econômica e ideológica gerada pelo
crash de 1929 em Wall Street; a desestabilidade política causada pela vulnerabilidade das democracias parlamentares; a evidente necessidade, por parte do mundo católico, de enfrentar criticamente a modernidade e a consciência, nos católicos e no mundo filosófico em geral, do ocaso ideológico dessa mesma modernidade; a revolta antihegeliana liderada por Kierkegaard; a aparição de novos “temas” a serem elucidados de forma crítica: a mulher, as relações interpessoais, a comunidade, etc.
Todo esse complexo conjunto de problemas confluiu lentamente, e por caminhos muito diferentes, no que se chama de “despertar personalista”, isto é, na consciência de que, para enfrentá-los e, principalmente, para superá-los, era necessário recorrer ao conceito de
pessoa, e construir, a partir disso, um novo projeto filosófico, uma nova antropologia.
Essa reconstrução seguiu caminhos muito variados, frequentemente relacionados entre si e, em alguns casos, relativamente independentes: desde as propostas de ética personalista de Scheler, passando pelo personalismo tomista de Maritain, pelo personalismo comunitário de Mounier, pelas filosofias do diálogo dos pensadores judeus, ou pelo existencialismo personalista de Gabriel Marcel. Todos esses perceberam problemas bastante semelhantes, e procuraram resolvê-los a partir de uma matriz filosófica comum: o personalismo. Vamos expor essas propostas filosóficas nos capítulos seguintes. Agora buscaremos esclarecer o complexo marco que deu lugar a todas essas filosofias, o que nos dará chaves hermenêuticas valiosas e indispensáveis para entendê-las com profundidade.
Provavelmente, a palavra mais adequada e decisiva para expressar o sentimento global que deu origem ao despertar personalista é
crise: a existência de uma profundíssima crise social, moral e intelectual, que exigia uma resposta à sua altura. Uma crise que se tornou especialmente acentuada no período entreguerras, em que a Europa, que começava a sair de uma catástrofe terrível, parecia encaminhar-se inevitavelmente para outra de dimensões ainda maiores. Stefan Zweig, um contemporâneo, descreveu essa situação de forma brilhante: “Por minha vida, galoparam todos os corcéis amarelados do Apocalipse, a revolução e a fome, a inflação e o terror, as epidemias e a emigração; vi nascer e propagar-se, diante de meus próprios olhos, as grandes ideologias de massa: o fascismo na Itália, o nacional-socialismo na Alemanha, o bolchevismo na Rússia e, sobretudo, a pior das pestes: o nacionalismo, que envenena a flor de nossa cultura europeia. Vi-me obrigado a ser uma testemunha indefesa e impotente da inconcebível queda da humanidade em uma barbárie como não se via há muito tempo, e que manejava seu dogma deliberado e programático da anti-humanidade”
[1].
Essa crise foi percebida também pelos pensadores personalistas, que tentaram responder a ela de diferentes ângulos, tanto teóricos como práticos. Scheler a antecipara com lucidez em
A posição do homem no cosmos, afirmando que o homem moderno havia perdido a orientação, tornando-se um enigma para si mesmo. Antes disso, Kierkegaard intuiu que os sistemas coletivos de raiz hegeliana só poderiam conduzir ao esmagamento do homem, que, portanto, deveria desprender-se deles. Posteriormente, foi cada vez mais intensa a percepção de que a solução dos desafios culturais e ideológicos que se apresentava era cada vez mais peremptória e urgente, convicção que se apurou especialmente nos anos 1930, quando o problema se mostrou como uma crise de civilização, e não apenas um simples problema intelectual.
Os católicos, particularmente, conceberam essa crise como uma mudança de época em que um mundo, uma civilização – que há dois mil anos se apoiava no cristianismo, se alimentava de sua sabedoria, e se inspirava mais ou menos explicitamente em sua moral e seu dogma – havia decidido expressamente deixar de ser cristã, e caminhar por outros cursos, que pareciam conduzir ao precipício. Pierre van der Meer, um intelectual holandês que circulou pelo grupo de Leon Bloy e Jacques Maritain, afirmava nessa época: “Enormes acontecimentos tiveram lugar nos últimos vinte e cinco anos (1914-1939). A face d da terra mudou completamente. Todos os valores em vigor antes de 1914 se tornaram obsoletos. Romperam-se as tábuas da lei antiga da civilização cristã, e nossa civilização perdeu a unidade; já nem sequer é cristã, por mais que, velhos e cansados, tivéssemos a ilusão de viver eternamente sob sua sombra. Acreditávamos que [ela] duraria ao menos tanto quanto nós mesmos. Não suspeitávamos da possibilidade de uma transformação”
[2].
Mounier compartilhava da mesma percepção, mas sua perspectiva era mais ampla. O problema não se encontrava somente no catolicismo. Era mais complexo, e deveria ser enfrentado globalmente e com radicalidade, com uma revolução espiritual, que seria o único modo de contê-lo. Por isso e para isso fundou a revista
Esprit, como explica sua esposa Paulette Leclercq. “Apresentava-se, diante de seus olhos, uma extrema urgência humana. A crise da civilização fazia estragos por todos os lados, e faz vacilar perigosamente as estruturas existentes. No mundo inteiro, crise econômica com Wall Street em 1929, crise social com milhões de desempregados em todo o mundo. Na França, crise política e cultural, posto que, sob a aparente segurança econômica e capitalista, o clima de humanismo tradicional e estereotipado seria rapidamente varrido pela Frente popular e pelos perversos ruídos de seu império colonial. Em nossas fronteiras, na Alemanha e na Itália, o indivíduo ficaria cada vez mais ameaçado pela pressão coletivista dos regimes nazista e fascista. Sem mencionar o regime da Rússia, sobre o qual, ao menos em 1932, pouco se sabia, mas era o suficiente para compreender que aniquilaria a dignidade da pessoa humana. Por todos os lados, o homem estava ameaçado em sua profunda liberdade de expressão e de ação”
[3].
No entanto, nem todos os pensadores personalistas acreditavam que a crise fosse tão extrema. Nisso Mounier foi singular – talvez por sua juventude – e, provavelmente, supervalorizou sua importância e gravidade. Ainda que a sociedade ocidental tivesse graves problemas internos e externos, tinha recursos suficientes para sobreviver – como a história parecer ter demonstrado de maneira eficiente. De qualquer forma, tanto a crise real quanto a percepção – mais ou menos acertada – dessa crise é um marco de referência imprescindível para a compreensão do movimento personalista. Anunciava-se, sem sombra de dúvidas, um gravíssimo problema que não poderia ficar sem resposta. E esse estímulo tão insistente foi um motor decisivo tanto para criação do pensamento personalista, quanto para sua difusão e consolidação
[4].
A complexidade da crise, e mais ainda, da situação europeia durante a primeira metade do século XX, não permite considerá-la detalhadamente. É necessário limitar o alcance da análise. Por isso, examinaremos só alguns dos fatores mais relevantes que configuraram esse
pathos e esse
ethos do qual surgiu o personalismo: o ambiente cientificista, que influenciou, por reação, muitos personalistas, impulsionando-os a proclamar a primazia do espiritual; o auge do individualismo e do coletivismo, chave na determinação do conceito de pessoa, tanto pela reação a ambos movimentos, como pela aceitação de algumas de suas teses; alguns pressupostos e problemas filosóficos (Kant, Kierkegaard, etc.) que prenunciaram o personalismo; e, por último, a percepção específica desse problema no catolicismo, já que a imensa maioria dos personalistas foram católicos que viveram com profundidade suas convicções
[5].
[1] Sweig, S.
El mundo de ayer. Memorias de un europeo, Barcelona, Acantilado, 2002, p. 13.
[2] Van der Meer, P.
Hombres y Dios, Desclée de Brower, Buenos Aires, 1949, p. 9-10. Sobre Van der Meer, cf. Fazio, M.
Cristianos en la encrucijada. Los intelectuales cristianos en el período de entreguerras, Rialp, Madri, 2008, p. 28-38.
[3] Mounier, P.
Cristiani e non credenti nell’ambito del personalismo, en VV.AA.,
Mounier tret’anni dopo. Atti del Convegno di studio dell’università cattolica, Vita e Pensiero, Milão, 1981, p. 17.
[4] Nos Estados Unidos, em épocas anteriores, surgiu uma corrente filosófica que se denominou “Personalismo”, e chegou a contar com filósofos de certo relevo, como Border Parker Bowne (1847-1910), que fundou a chamada Escola de Boston, na qual se destacaram Edgar Sheffield Brightman (1884-1953) e Albert Cornelius Knudson (1873-1954). Ralph Tyler Flewelling (1871-1960), por sua vez, foi o líder da Escola da Califórnia e fundador da revista
The personalist, ativa entre 1920 e 1979. Sua relevância foi escassa, porque surgiu de modo independente e desconexo do movimento que estamos analisando e, sobretudo, porque levanta um personalismo idealista completamente alheio aos personalistas europeus. Segundo Parker Bowne, por exemplo, a matéria não seria real, e apenas o espírito existiria. O ponto de encontro entre ambas as correntes parece situar-se, além da primazia da pessoa, em certa inspiração comum em alguns protopersonalistas, como Bergson e Renouvier, e na oposição ao hegelianismo. Mas esses pontos de contato não são suficientes para integrá-los ao movimento personalista aqui entendido. De fato, quase sempre são considerados como independentes. Ferrater Mora é uma exceção, pois, em seu
Dicionário de Filosofia, os enquadra no personalismo. Essa inclusão está justificada na medida em que se trata de uma corrente que recebeu esse mesmo nome e que aposta na primazia da pessoa, mas o faz sobre pressupostos culturais, teóricos e filosóficos muito diferentes do personalismo entendido habitualmente. Sobre essa corrente, cf. Gacka, B.,
American Personalism, Oficiyna Wydawnicza “Czas”, Lublin, 1995, e
Bibliography of The personalist, Oficiyna Wydawnicza “Czas”, Lublin, 1999.
[5] De fato, muitos deles eram conversos: Maritain, Marcel, von Hildebrand, Edith Stein, etc.