1. Uma vez que nosso Mestre e Redentor Jesus Cristo
ofereceu-se à morte porque quis (Is 53,7), e não foi crucificado à força, mas sim pela sua livre e amorosa vontade, quanto mais se aproximava o dia, mais Ele se aproximava do lugar onde aconteceria a sua Paixão e Morte. Depois de entrar em Jerusalém com a solenidade dos ramos, de ter ido e vindo de Betânia ao templo da cidade; depois de terminar todos os seus sermões e cumprir o seu ofício de Mestre e estando prestes a começar o seu ofício de Redentor, para finalizar a sua doutrina, avisou claramente os seus discípulos sobre o dia de sua afrontosa e dolorosa paixão, que estava tão próximo. Disse-lhes:
Bem sabeis que daqui a dois dias será celebrada a festa solene da
Páscoa; pois eu vos digo que neste mesmo dia
Eu serei entregue nas mãos dos judeus e gentios, e eles
me crucificarão (Mt 26,2).
Os príncipes dos sacerdotes, cheios de inveja e irritados com a integridade e sinceridade com que o Senhor repreendera os seus vícios no dia anterior,
reuniram um conselho contra Ele na casa do sumo sacerdote, que se chamava Caifás (Mt 26,3), e nele determinaram duas coisas: a primeira, que convinha prendê-lo com esperteza e engodo, sem violência e publicidade. A segunda, que fosse depois da Páscoa; não por zelo pela religião e nem pelo respeito que deviam ao dia da festa, mas sim porque haveria em Jerusalém muita gente que conhecia e estimava Jesus, que tinha sido beneficiada por Ele, e eles temiam que essas pessoas fizessem um motim ou alvoroço que libertasse o prisioneiro de suas mãos e atrapalhasse as suas intenções. No entanto, fizeram tudo ao contrário do que tinham determinado: mataram o Salvador no dia da festa e prenderam-no com violência e à mão armada. Assim se vê quão frágeis são as intenções dos homens, e que não prevalecem sobre as determinações de Deus.
2. E o motivo da mudança pode ter sido este: Judas andava indignado e com más intenções contra o Salvador e contra a doutrina que Ele pregava. A perdição desse miserável e infeliz apóstata começou pela cobiça: ele era o responsável pela esmola que o Salvador recebia, mas, sendo um
ladrão (Jo 12,6),
roubava-a para usos particulares. Vencido e dominado por essa paixão, começou a desgostar-se e, pouco a pouco, a odiar e se aborrecer com a doutrina e com o Salvador, que com tanta simplicidade ensinava o amor à pobreza e condenava a cobiça às riquezas temporais.
Com o passar do tempo, Judas endureceu-se de tal maneira que, não querendo admitir e nem culpar a si mesmo pelo desgosto que trazia, culpava o Salvador, censurando-o e murmurando sobre o que Ele dizia e fazia; e, por fim, deixou de acreditar Nele. Considerava a doutrina do Senhor uma mentira e os seus milagres feitiçarias, e, com as suas palavras e mau exemplo, prejudicava os demais que ouviam e seguiam o Salvador. No sublime sermão que Este pregou, no capítulo 6 de São João, no qual prometeu que daria a comer o seu corpo e a beber o seu sangue, Judas deve ter sido um dos que mais murmurou, dizendo:
Dura é esta palavra, quem poderá ouvi-la? (Jo 6,60). Ele também deve ter liderado o motim que fez com que muitos discípulos do Salvador voltassem atrás e deixassem a sua doutrina (Jo 6,66); porque, entre outras palavras, o Salvador disse nessa ocasião:
há alguns entre vós que não acreditam em mim. O evangelista afirma que o Salvador disse isso porque
sabia desde o princípio quem não acreditava e quem o entregaria (Jo 6,64)
. Contudo, Judas continuava dissimulado entre os Apóstolos, e o Senhor, sabendo que ele tinha más intenções e tão pouca fé como os que o tinham deixado, para corrigi-lo com respeito e em segredo, disse aos doze ao mesmo tempo:
porventura vós quereis ir também? (Jo 6,67). E São Pedro, achando que os demais tinham os mesmos sentimentos que ele, respondeu em nome de todos:
Senhor, a quem ou aonde iremos? Tuas palavras são de vida eterna, e nós acreditamos e reconhecemos que Tu és o Cristo, o Filho de Deus (Jo 6,69). Mas o Salvador, que conhecia bem os seus discípulos, respondeu censurando Judas e dando-lhe uma oportunidade para se arrepender, se não estivesse tão endurecido:
Porventura não vos escolhi eu, aos doze? No entanto, um de vós é um demônio. Segundo o evangelista, Ele se referia a
Judas, que iria vendê-lo, e era um dos doze (Jo 6,71). E o Salvador sofreu com esse demônio por muito tempo, com muita mansidão, paciência, respeito e em segredo, até que, com efeito, Judas entregou-o aos seus inimigos.
3. Durante esses dias derradeiros houve outro acontecimento que deixou Judas ainda mais irritado e o fez cair profundamente na perdição: seis dias antes da Páscoa,
o Salvador foi para Betânia, onde tinha ressuscitado Lázaro há pouco tempo (Jo 12,1), e, como todos se recordavam daquela grande maravilha, desejavam presenteá-lo e homenageá-lo, e manifestar algum sinal de gratidão. Por isso,
convidaram-no para uma ceia, e Lázaro, o ressuscitado, era um dos convidados que estavam à mesa (Jo 12,2), testemunhando o milagre e glorificando o Senhor pelo que tinha feito, e isso causou tanta admiração e espanto
que muita gente veio de Jerusalém somente para vê-lo (Jo 12,9).
As duas irmãs de Lázaro, Marta e Maria, que tinham suplicado ao Senhor que ressuscitasse o irmão, estavam presentes, e, cheias de fervorosa caridade e gratidão, demonstravam o máximo que podiam os seus afetos para com o Salvador. Marta, sendo a mulher mais importante e estando
na casa de Simão, o leproso (Mt 26,6), não quis que ninguém assumisse a função que ela desempenhava em sua própria casa; e por isso ela mesma
servia a mesa (Jo 12,2), trazia a comida, repartia-a e fazia o prato, e com muita devoção e alegria presenteava o Salvador.
Maria Madalena, que abandonara todos os seus antigos prazeres para servir e presentear o mesmo Senhor, ainda tinha um vaso de unguento perfumado, líquido,
de muito valor, pois era feito da espiga do nardo (Mc 14,3), e em grande quantidade, pois era
uma libra inteira (Jo 12,3), tanto que Judas achou um grande desperdício e exagero derramá-lo. Mas para Santa Madalena, que estimava e amava o Senhor, tudo parecia pouco para servi-lo; e assim, entrando na sala e prostrando-se aos
seus pés,
ungiu-os com parte daquele óleo e
limpou-os com os seus cabelos (Jo 12,3); e é possível que os tenha beijado muitas vezes com amor e reverência. Depois se levantou, e, para demonstrar ainda mais a grandeza de seu amor e quão pouco lhe custava derramar um licor tão precioso para servir e honrar o Senhor, para que não ficasse nem uma gota,
quebrou o vaso, que era de alabastro, e deixou cair o restante do unguento sobre a cabeça de Jesus (Mt 26,7), e
toda a casa ficou perfumada (Jo 12,3). E esse exemplo de devoção e caridade até hoje perfuma a Igreja
[1].
4. O Salvador aceitou benignamente a atitude de Madalena, não por causa do presente que o seu corpo recebeu com aquela unção; pois quem oferece os pés e as mãos às chagas e a cabeça aos espinhos não busca e nem pretende ser presenteado com a suavidade dos unguentos perfumados. Mas agradou-lhe muito a disposição e a devoção de quem o fez, e o momento oportuno em que o fez. Ela estava cheia de amor: se da primeira vez em que entrou na casa do fariseu, chorando e pedindo perdão pelos seus pecados, ia movida pelo amor, como o próprio Senhor testemunhou; o quanto não teria crescido esse amor depois de ter visto com tanta admiração os seus milagres, ouvido com tanto gosto e recolhimento os seus sermões, e recebido amplamente os seus benefícios?
[2] O dia em que derramou o unguento foi tão próximo da morte do Salvador que quase serviria para sepultá-lo, conforme o costume daquele povo. E o Senhor, para explicar que aceitava ser presenteado enquanto estava vivo com a unção que receberia depois de morto, como se já o tivesse sido, referiu-se cortesmente àquela mulher, dizendo aos seus apóstolos:
Por que molestais esta mulher com vossas
calúnias e murmurações? Que boa ação ela fez para mim: ungiu antecipadamente o meu corpo para o sepultamento! Em verdade vos digo que, onde quer que anunciem esse evangelho pelo mundo, juntamente com o que eu fiz e sofri pelos homens,
será também anunciado o que essa mulher fez por mim, para que seja honrada e louvada por isso (Mt 26,10-13).
Judas presenciou tudo isso, e, mesmo tendo tantos motivos para louvar a devoção dessa mulher e para alegrar-se com a homenagem feita ao seu Mestre, ele criticou-a por ter derramado o unguento, justificando que tinha muito valor
[3], e que com o seu preço se poderiam remediar as necessidades dos pobres (Jo 12,5). Na verdade,
ele auxiliava muito pouco os pobres, pois era ladrão e tinha um fundo à parte,
e furtava das coisas que davam ao Salvador. (Jo 12,6). Por isso Judas queria muito transformar essa esmola em dinheiro. E, com o seu mau exemplo, os demais apóstolos também murmuraram, movidos pela razão que Judas dera em favor dos pobres, embora não com a mesma malícia que ele, mas sim por ignorância, e isso aconteceu muitas vezes.
5. Judas, com essa disposição, presente somente de corpo entre os apóstolos e com o espírito entre os fariseus, inimigos de Cristo, e muito aborrecido com o que aconteceu na ceia em Betânia, sabia da tempestade que se levantava contra o Senhor e que seus inimigos queriam matá-lo. Temendo ter parte nisso por ser considerado um discípulo do Senhor, quis proteger-se e ganhar de uma só vez amigos e dinheiro. Ele sabia que os príncipes dos sacerdotes tinham reunido um conselho e buscavam um meio de prender o Salvador com engodo, e então o homem falso e fingido, dominado pelo demônio,
foi até eles, e reforçou, ao que parece, as suas intenções, testemunhando que o Salvador era merecedor da morte, como quem tinha vivido e conversado com Ele, e ofereceu-lhes ajuda e prometeu-lhes entregá-lo em suas mãos se pagassem por isso (Mt 26,14).
Eles
alegraram-se muito (Mc 14,11) por terem em seu favor o testemunho de Judas, e sugeriram pagar trinta moedas de prata (Mt 26,15) por sua traição? colaboração?
[4]. Judas, vil e medíocre, considerou esse um bom preço para vender o Senhor da Majestade. E ele, que havia traído Deus, a justiça e a verdade, quis ser fiel aos inimigos de Deus, da justiça e da verdade, e
andava desde aquele momento procurando com muito cuidado
uma ocasião para cumprir a sua promessa (Mt 26,16).