Prefácio
Este século é um combate, um fragor, um estridor, um tumulto.
Sofrei que eu vos apresente neste momento alguns homens pacíficos. Porque os houve; a olhar o mundo, as pessoas quase se admiram. Houve Pacíficos. Entre eles, vários receberam uma denominação singular, oficial, e chamam-se Santos.
Santos! Sofrei que eu vos detenha a considerar este termo por um instante. Santos! Esquecei os homens no sentido em que o cumpre, para vos lembrardes do homem. Lembrai-vos de vós mesmos. Olhai o vosso abismo. Para que um homem se torne um Santo, pensai no que é mister que se passe. Entretanto, esse fato tem-se verificado. Se tivesse ocorrido uma vez só, a atenção seria talvez mais facilmente fixada nele. Mas tem sucedido repetidas vezes. Repetidas vezes! Que palavra para tal coisa! E pôde-se dizer dos Santos como dos astros: Assiduitate viluerunt. Um dos grandes erros do mundo consiste em imaginar os Santos como seres completamente estranhos à humanidade, como figuras de cera, vasadas todas no mesmo molde. Foi contra este erro que eu quis particularmente lutar.
O mundo sobrenatural, como o mundo natural, contém a unidade na variedade, e tal é o sentido da palavra: Universo.
Os Eleitos diferem em inteligência, em aptidões, em vocação. Têm dons diferentes, graças diferentes; e, no entanto, semelhança invencível reside no fundo dessas diferenças enormes. Trazem todos uma certa marca, a marca do mesmo Deus. As suas vidas, prodígiosamente diferentes entre si, contêm, em diversas línguas, o mesmo ensinamento. Essas vidas, tão diversas, nunca são contraditórias. Estão ligadas à História: entremeiam-se às inúmeras complicações dela; e, contudo, a pureza do ensinamento que aduzem permanece absolutamente intacta.
Reuni, neste volume, as figuras mais díspares, das mais célebres às mais esquecidas: situam-se em todos os graus da escala. Trabalhos, provações, ocupações, vocações, vida interior, vida exterior, lutas internas, luta externas, classe social, século, situação: mil coisas diferem nelas e em torno delas; e quanto mais se diversificam, tanto mais vereis resplender nelas o princípio de unidade que lhes dá vida. Têm a mesma fé; cantam todas, e é o mesmo Credo que cantam. Através do tempo e do espaço, no trono, no claustro ou no deserto, cantam o mesmo Credo. Homens deste século, será que esta unanimidade não vos admira? Tentei reproduzir essas coisas fielmente.
Tentei reproduzir as semelhanças e as diferenças dessas fisionomias. Não são vidas que narro, são fisionomias que esboço.
Tentei mostrar que vários Santos são vários homens, e que há somente um único Evangelho.
Tomei, para dizer estas coisas imortais e tranquilas, a hora em que o mundo passa, em meio ao seu tumulto.
Uma das características da Igreja Católica é a sua invencível calma. Esta calma não é frieza. Ela ama os homens, mas não se deixa seduzir pelas suas fraquezas. No meio dos trovões e dos canhões, celebra a invencível glória dos Pacíficos, e celebra-a cantando. Podem as montanhas do mundo ruir umas sobre as outras; se for esse dia a festa duma pastorinha – de Santa Germana, por exemplo – ela celebrará.
A pastorinha com a calma imutável que lhe vem da eternidade. Por mais barulho que lhe façam em torno os povos e os reis, ela não esquecerá um só dos seus pobres, um só dos seus mendigos, um só dos seus mártires. Os séculos nada influem, como tampouco influem os trovões. Enquanto os trovões roncam, ela remontará o curso dos séculos para celebrar a glória imortal de alguma donzela desconhecida durante a vida e morta há mais de mil anos.
É em vão que o mundo desaba. A Igreja conta os seus dias pelas suas festas. Ela não esquecerá um só dos seus velhos, um só dos seus meninos, uma só das suas virgens, um só dos seus solitários. Vós a maldizeis; ela canta. Nada lhe adormecerá e nada lhe assombrará a invencível memória.
Ernest Hello
I. Os Reis Magos
“Surge, iluminare, Jerusalem; quia venit lumen tuum”. “Levanta-te, ilumina-te, Jerusalém; porque o teu astro nasceu”.
Os séculos haviam passado sobre as chamas de Isaias sem apagá-las. O eco dos seus gritos repercutia ainda, ao menos no coração da Virgem. A expectativa vaga e surda do gênero humano condensou-se, localizou-se em três soberanos do Oriente. Os Magos eram os principais personagens do Oriente. Convém não se deixar enganar pelos seus nomes e tomá-los por mágicos. Eram sábios, e eram reis; porque no Oriente os sábios eram reis. A alta ciência da alta antiguidade, tal qual a concebia o Oriente, usava cetro e coroa.
Eles foram avisados por uma estrela; porque eram astrônomos. Já tratei dessa lei em virtude da qual os eleitos são eleitos segundo a sua natureza e chamados segundo o seu caráter próprio. Cada visão, cada aparição, cada palavra divina interior ou exterior toma, em certa medida, a semelhança daquele que a deve ver ou ouvir. Proporciona-se e determina-se em conformidade com o nome de que é portador no mundo invisível o contemplador por ela escolhido. É por isso que os reis do Oriente, os reis sábios, os depositários das antigas tradições relativas a Balaão, os reis astrônomos, os reis ocupados das coisa do céu, o reis que tinham ouvido o eco misterioso da antiga tradição murmurar-lhes ao ouvido: “Orietur stela”, “Nascerá, uma estrela”, os reis eleitos e sagrados que representaram, os três, a vocação dos povos, foram chamados por uma voz digna da sua grandeza: foram chamados por uma estrela.
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