Prólogo
Antes de apresentar ao público esta obra inestimável do insigne Doutor da Igreja S. Afonso Maria de Ligório, seguem algumas palavras que sirvam de introdução.
Que adianta ao homem ganhar o mundo universo se vier a perder sua alma? Esta pergunta de Cristo, a Sabedoria incriada, inculca a importância da alma humana e dá a razão e fim de nossa existência.
A questão que mais preocupa o homem é, foi e será sempre esta: mas por que eu vivo? Qual o fim de minha existência neste mundo? De onde vim? Para onde vou? Tudo desaparece, tudo morre! E afinal tudo é dirigido, ordenado, admiravelmente disposto por uma inteligência superior! Tudo serve a um fim, concorre para um ponto determinado, está submetido a uma vontade superior!... E eu também estou sujeito a essa organização admirável do mundo e desaparecerei como tudo o mais. Mas, então?
A esta questão capital responde a razão, a filosofia: Non omnis moriar; não, eu não desaparecerei de todo. Sinto em mim um ser eterno, uma coisa que não morre; percebo que deve existir uma vida além do túmulo, um futuro desconhecido que devo perscrutar, uma sorte que me espera e que devo agora assegurar. Eis o fim da existência.
As fortes paixões do homem, as seduções dos bens do mundo, as tentações de seu inimigo nato, o demônio, obscurecem, porém, sua razão, e ele julga encontrar já aqui, neste mundo, sua pátria e sua felicidade completa.
Daí a escola dos que dizem na teoria e ainda mais na prática: Coroemo-nos de rosas, busquemos os prazeres, as riquezas e honras deste mundo... Fujamos da pobreza, da mortificação, da humildade... Qual sorte futura, céu, inferno, recompensa, castigo!... A vida é aqui!... Gerações e gerações assim pensaram e já quase inteligência alguma desvendava a verdade e tinha sabedoria.
Veio então a este mundo o Verbo Eterno, para iluminar todas as inteligências. Toda a sua vida e missão pode se resumir na palavra por Ele mesmo pronunciada: Eu vim para dar testemunho da verdade. — Eu vim para que os homens tenham a vida.
Os mistérios todos de além-túmulo foram-nos revelados e o nosso destino e missão na terra claramente expostos: Nossa felicidade verdadeira está noutra vida, que só alcançaremos morrendo a esta. Com outras palavras, devemos renunciar ao velho homem, ao homem do pecado, e revestir-nos do novo homem, do homem da graça, para alcançarmos o céu, a felicidade completa e eterna.
Como, porém, se faz isto? Como deve operar-se essa transformação? Como se morre ao pecado? Como se reveste o novo homem?
A resposta a estas questões é o assunto da ascética.
Que é ascética? O atleta emprega ascese para alcançar a força muscular; o budista, para chegar ao nirvana; o hindu, para atingir o brahma; o estóico, para conseguir a sabedoria; o platônico, para chegar ao ideal; o neoplatônico, para se aprofundar na contemplação do nous; o homem moderno, para tornar-se humanitário ou filantropo; o cristão, para obter a santidade. Ascese é, pois, um exercício, um esforço, sujeição à disciplina; é um combate, uma guerra contra a própria natureza corrompida, contra tudo o que impede a perfeição e santificação. É também uma exercitação ou emprego de todos os meios naturais e sobrenaturais para se alcançar a perfeição cristã.
Esses meios são sempre os mesmos. Há, porém, uma grande divergência entre os autores ascéticos na disposição e ordem em que se devem colocar esses meios para se atingir o fim, a santificação.
Como na exposição dos dogmas se nos depara uma escola agostiniana, dominicana, tomista, franciscana, jesuítica; como na explanação dos princípios da moral encontramos com uma escola rigorista, outra laxista, como o probabilismo, equiprobabilismo, probabiliorismo etc., assim também na ascese se nos oferecem várias escolas: a de S. Inácio, a dos Sulpicianos, a de S. Francisco de Sales, a de S. Vicente de Paulo, para só citar algumas delas.
Entre esses vários sistemas, o mais perfeito e acabado, e ao mesmo tempo o mais simples e prático, nos parece ser o de S. Afonso. Não é que S. Afonso tenha uma ascese diversa dos outros santos, mas certas particularidades, disposição e sistematização que lhe são próprias. Todos têm, diz um autor muito entendido na matéria, essas mesmas coisas, não, porém, com a clareza, precisão e acentuação desse grande Doutor da Igreja.
Eis em que consiste o seu sistema:
Quase todos os escritores e escolas ascéticas assentam o edifício da perfeição cristã sobre as virtudes morais e colocam como pedra de fecho e coroa a caridade. S. Afonso procede diversamente. Ele começa com a caridade e faz seu discípulo praticar a humildade, a castidade, a paciência, a obediência, a abnegação por amor, sob a influência da caridade e não para alcançar essa mesma caridade.
Mas este amor de Afonso é um amor filial e não de escravo, acompanha-o por toda parte o temor filial, o medo de ofender a Deus e perder a caridade separando-se d’Ele. Ele diz: “Eu sei que, enquanto eu amar Jesus Cristo, serei humilde, obediente, penitente etc. Mas perseverarei nesse sentimento de amor?” Daí esse cuidado meticuloso em todos os seus escritos de pedir instantemente a perseverança.
Como, porém, alcançar essa perseverança? Essa é uma graça que se não merece. A S. Afonso cabe o grande mérito de popularizar o sistema do grande luzeiro da Igreja, neste ponto, S. Agostinho. A perseverança alcança-se pela oração. Esse ensino de capital importância para a salvação foi por S. Afonso tornado prático e acessível ao povo e a toda a alma. Compenetrado do papel capital da oração na economia da salvação, Afonso não escreve um livro, um tratado, uma carta, um sermão sem acentuar a necessidade e importância da oração, chegando a culminar seus ensinos nestas memoráveis palavras: Quem reza, se salva; quem não reza, se perde. Daí a grande esperança e confiança que suas obras fazem nascer até nos corações mais desalentados e endurecidos.
Esta confiança de salvação cresce de ponto pela introdução no seu sistema de devoção a Maria Santíssima, como a Mãe de misericórdia e o refúgio dos pecadores. Jesus é meu amor, Maria é minha esperança, é o refrão do Santo, o grito do filho à sua mãe. Sob as vistas de Maria, ele caminha intrépido até ao cimo da perfeição.
Este é o caminho seguido e traçado por S. Afonso para se chegar à perfeição e que o leitor achará explanado nas seguintes páginas. Começa com uma explicação do que é perfeição, fazendo-a consistir toda no amor de Deus. Mostra em seguida que esse amor é incompatível com o pecado, principalmente com o amor ao pecado, que se patenteia na tibieza e recaída nas mesmas faltas. Delineia em seguida o homem novo, enquadrando toda a perfeição em 12 virtudes principais. Remodelados assim, o homem aspira a subir mais alto e por amor a Deus pratica não só o que é de preceito, mas também o que é de simples conselho. Por isso vem um tratado próprio sobre os conselhos evangélicos. Finalmente trata o Santo dos meios auxiliares para se atingir a perfeição e santidade: a oração, a recepção dos SS. Sacramentos, as diversas devoções, a leitura espiritual, os exercícios espirituais.
É, pois, este livro um manual completo, o mais completo mesmo que conhecemos, sobre a vida espiritual, escrito em linguagem simples e clara, que satisfaz às grandes inteligências como aos simples fiéis.
O Santíssimo Redentor e a Santíssima Virgem que abençoem esta tradução e se encarreguem de sua difusão entre o povo brasileiro. Será uma mina de bênçãos e graças para todos que a lerem. Para se ver quão apreciadas são as obras deste Santo Doutor, basta dizer que sua Prática de Amar a Jesus Cristo, só em francês, tem para mais de 154 edições; as Visitas ao Santíssimo Sacramento, para mais de 494; as Máximas Eternas, em italiano, para mais de 720 edições; as Mais Belas Orações, em francês, para mais de 80, e assim por diante. Essa obra traz no original o título Pratique de la perfection mise à la portée des fidèles de toute condition, e teve imensa aceitação.
Julgamos ter prestado um grande benefício à nossa querida Pátria, popularizando os escritos de S. Afonso, de quem nos confessamos indigno filho e discípulo.
Pe José Lopes, C. SS. R.