Apresentação
Neste envolvente livro, fruto de anotações pessoais de Gabriele Bossis, a autora faz o leitor participar dessa experiência única que é a de dialogar com o Senhor em meio às situações mais corriqueiras do dia-a-dia, através daquilo que os autores espirituais costumam chamar “palavras interiores” ou “locuções divinas”. São palavras percebidas na alma como vindas de Deus e que são escritas imediatamente. Nada de aparições nem de audições externas, palavras que se produzem para além dos sentidos.
“Ele e eu pertence a uma categoria de livros que a Igreja nunca aprova de forma direta e explícita como de origem divina: simplesmente os vigia e os deixa soltos, ao amparo de uma autorização episcopal, que garante a ortodoxia do conteúdo, e não vai mais além. Se você quiser tomar essas palavras como procedentes diretamente da boca de Cristo, pode fazê-lo sem imprudência; se preferir tomá-las somente pelo que contêm em si, tens para isso toda a tua liberdade. Mas não duvido de que você sentirá, em mais de uma página, como por transparência, uma ação de Deus que te encaminha poderosamente a amá-Lo mais, como aconteceu com tantos. Não importa que deixemos em suspense a questão especulativa de se essas palavras em concreto as pronunciou real e fisicamente Jesus para tal pessoa, em tal data, e sob tais ou quais circunstâncias. No fim das contas, o que é bom e faz bem sempre vem de Deus.” (Pe. Alphonse de Parvillez, S.J.)
Prefácio de Daniel Rops
É uma história linda e surpreendente — história de uma alma também ela — a que nos contam os dois pequenos livros chamados Ele e eu. E agora que o fato de sua morte dispensa a autora do segredo que sua discrição lhe impunha quando estava viva, temos direito a dizer quem era o escritor anônimo (não dizemos que “o autor”, logo veremos o porquê) que havia escrito essas páginas fulgurantes de amor sublime, esses pensamentos a miúdo tão cheios de uma verdade sobrenatural.
Chamava-se Gabrielle Bossis. No final de sua existência sobre a Terra era uma senhorita de província, de idade avançada (nasceu em 1874), mas que, segundo o testemunho de tantos que a conheceram, tinha sabido conservar extraordinária juventude de espírito e comportamento.
Comumente residia em Nantes ou em algum outro pequeno povoado às margens do Loire. Comumente, dizemos, porque a sua vida havia sido um pouco nômade pela mais inesperada das razões. Educada em um meio burguês (pois seu pai havia tido, como nos bons tempos, a profissão de “proprietário”), Gabrielle Bossis, a menor em uma família de quatro filhos, havia sido durante muito tempo uma jovenzinha tímida, silenciosa e retraída, que preferia estar meditativa num lugar solitário, em vez de brincar com os seus colegas de mesma idade. Por acaso começava ela, já desde então, a ter uma experiência extraordinária que devia consumar a sua vida? Em todo caso, foi necessário que tivesse uma muito boa razão para recusar todas as propostas de matrimônio; e nada nos proíbe de pensar que esta razão haja sido de uma origem muito íntima. Diz-se também que possuía dons especiais para essas artes ornamentais a que se dedicavam nossas avós: o bordado, a pintura, a iluminação, a música; e inclusive (o qual era mais difícil) a escultura. Nada disto excede a capacidade de muitas jovens de boa sociedade dos princípios deste século, nos meios tradicionais de nossas províncias francesas.
Por acaso Gabrielle descobriu que possuía outra capacidade pouco frequente: a de autor teatral. Escreveu para um patronato de Anjou uma dessas peças que reúnem o bom gosto com a perfeita moralidade e que com frequência provocam sorrisos, mas que são muito mais difíceis de compor do que de criticar. Como a experiência teve sucesso, Gabrielle compôs outras obras, muitas outras, e todas elas mereceram a calorosa acolhida e amizade de públicos crescentes. E tanto assim, que a sua fama excedeu os limites da província. Saindo de Nantes e seus arredores, Gabrielle foi montar pessoalmente as suas obras em várias cidades da França, e mais tarde, do exterior, na Bélgica, Itália, Marrocos, ainda Canadá, e até na Palestina! A gentil autora de obras para patronatos se converteu em uma grande viajante.
E foi nestas condições como ela seguiu até o fim a sua experiência interior. Vem à mente uma célebre frase de Bergson quando disse que “os grandes místicos foram geralmente homens e mulheres de ação, dotados de um bom sentido superior”. Este dizer se aplica perfeitamente a Gabrielle Bossis porque, ao mesmo tempo em que representava sainetes desde Kairouan até as Montanhas roca, ela vivia uma vida espiritual extraordinariamente intensa. Como os maiores místicos, teria ela podido repetir a palavra de São Paulo: “Já não sou eu Quem vive, mas é Cristo O que vive em Mim.”
Terei de confessá-lo? O fato é que me comove profundamente o admirável equilíbrio entre uma faceta que olha sorri dente o público, consagrada a distraí-lo honestamente, e outra faceta intimamente consagrada à contemplação. Certamente admiramos, como convém, ao místico que se encerra em sua cela e metido em seu hábito, persevera em uma experiência árdua como nenhuma outra; enfim, os religiosos e as religiosas, para seguir a Deus, afastam de seu caminho todos os obstáculos, por desgraça inumeráveis, que o Mundo nos oferece. Mas um homem ou uma mulher ao mesmo tempo humanamente perto de nós e em condições semelhantes às nossas, que chegue a elevar-se até o cume inacessível em que Deus se revela aos seus escolhidos, á algo ainda muito mais admirável.
Gabrielle Bossis foi, sem dúvida alguma, uma verdadeira mística; e os dois volumes de Ele e eu nos relatam, quase como uma cópia estenográfica, o que ela recebeu no desenrolar de um relacionamento cara a cara com Jesus Cristo. Tais diários íntimos não são raros. Em nossa época têm aparecido vários deles, entre os quais há extraordinários, como o de Lucia Cristina, o de Sor Josefa Menéndez, ou de Isabel Leseur, tão patético em sua simplicidade; essas páginas que foram reunidas sob o título de “Cum Clamore Valido”; e a famosa autobiografia da amável Teresinha do Menino Jesus de Lisieux, coroa como um diadema todo este conjunto.
Nenhuma destas obras pode deixar indiferente a um cristão. Porque o diálogo de uma alma com Deus é, ao mesmo tempo, único e exemplar; para cada um dos favorecidos com esses dons, é algo exclusivo, que se dirige ao mais íntimo do ser; mas todos os que leem os seus escritos podem ouvir em sua própria alma o eco das divinas palavras.
Os textos de Gabrielle se nos apresentam como palavras de Jesus mesmo, escutadas pela mística e postas em seguida por escrito. Em que medida podemos admitir que Cristo mesmo tenha falado a esta pessoa de nosso tempo e que as suas palavras contenham a verdade? Com frequência acontece aos beneficiários deste tipo de favores, ver-se acometidos pela dúvida, e eles se perguntam uma e outra vez se não têm sido brinquedos do orgulho ou da própria imaginação. A esta pergunta que se fazia Gabrielle, a Voz interior respondia com grande sabedoria: “Duvidas de que seja Eu? Pois faz como se o fosse.” (25 de agosto de 1937). E em outra ocasião: “E ainda que estas palavras saíssem de tua própria Natureza, não Sou Eu Quem criou esta Natureza? Não tens tu que referi-lo tudo a Mim? (26 de agosto de 1940). Esta era, sem dúvida, a melhor de todas as respostas.
E é isto o que causa uma excelente impressão ao leitor destes textos que se pergunta sobre o valor dessa experiência. De Gabrielle nunca se disse que haja tido visões, êxtases, manifestações surpreendentes; não foi nem vidente nem estigmatizada. Em aparência, nada a distinguia de qualquer outra mulher comum; era uma amável senhorita de idade avançada, que amava a juventude, dançava e representava no teatro, e que sorria a todos; e, no entanto, ouvia em seu interior palavras, que soam com o som da mais alta verdade sobrenatural. Um autêntico eco de Cristo.
Porque essa é a impressão que se tem quando se lê Ele e eu. Como diziam os primeiros cristãos: nessa órbita se respira ‘o bom odor de Cristo’. Nada forçado nem excessivo; nada que violenta a natureza humana nem que a queira levar além de suas forças. É certo que aí há um chamamento repetido e fervoroso à disciplina interior, à ascese, ao esforço por dominar o próprio eu; mas permanece profundamente humano. A alma mística, franqueados já os primeiros obstáculos para aproximar-se de Deus, dá um som de plenitude simples e alegre, e de serenidade no amor, que em várias passagens o familiariza com as obras mestras da literatura espiritual. O abade Bremond o teria desfrutado enormemente. O que Cristo em pessoa tenha falado a esta alma, nenhum simples leitor o pode assegurar por sua própria autoridade; uma coisa é, no entanto, segura: que esta alma viveu em Deus e que reflete sobre nós um pouco de sua luz.
Outubro de 1950