Introdução
“Deus invisível, na riqueza do seu amor fala aos homens como amigos e convive com eles, para os convidar e admitir à comunhão com Ele”. Deus não só nos criou, como se aproxima, toca a nossa humanidade, fala conosco, está solícito e disponível. Tão próximo que está entre as panelas. Tão atento a cada um que percebe quando se descasca batatas por amor a Ele ou de má vontade. Tocou tanto a nossa humanidade que carregou com as nossas misérias, para vencer o pecado e a morte. Cabe a cada um dar ouvidos e aceitar essa aproximação, esse toque, entranhar esse diálogo, aceitar essa solicitude do Amor disponível.
Nenhum livro, nenhuma leitura tem a força de aproximar-nos tanto a Deus como aquela que está escrita sob a própria inspiração divina. Na Sagrada Escritura, Deus vem amorosamente ao nosso encontro para conversar conosco. Ali se encontra a história profunda da nossa vida, ou seja, nossas relações com Deus. Desvela o segredo sobre o que é e o que vale a nossa vida e o caminho que devemos seguir, pois a Palavra de Deus é viva e eficaz. Para isso, importa lembrar que podemos aprofundar as riquezas da nossa fé: em Deus se descobrem sempre novos mares, quanto mais se navega.
Como boa parte dos fiéis somente entra em contato com a Palavra de Deus nas missas dominicais, essas revestem-se de particular importância. Como afirmou o Papa Francisco: “A Palavra de Deus é proclamada na comunidade cristã para que o dia do Senhor se ilumine com a luz que provém do mistério Pascal (...). Deus segue falando hoje conosco como seus amigos, conosco se entretém, para nos oferecer sua companhia e nos mostrar o caminho da vida. Sua Palavra se faz intérprete de nossos pedidos e preocupações, e é também resposta fecunda para que possamos experimentar concretamente a sua proximidade”. E: “Por meio da Sagrada Escritura, que se mantém viva graças à fé da Igreja, o Senhor continua falando a sua Esposa e lhe indica os caminhos a seguir, para que o Evangelho da salvação chegue a todos”.
O presente livro está inserido dentro desse processo de salvação. De fato, ensina São Paulo e, através dele, o próprio Senhor: “aprouve a Deus pela loucura da pregação salvar aqueles que creem”. É “Deus que deseja alcançar os outros através do pregador e de que Ele mostra o seu poder através da palavra humana”.
“A homilia pode ser, realmente, uma experiência intensa e feliz do Espírito, um consolador encontro com a Palavra, uma fonte constante de renovação e crescimento”. Assim será com todos os que desejam um coração aquecido pela escuta atenta de “toda palavra que procede da boca de Deus”, têm fome em saciar-se com a sabedoria que vem do Alto. Para tanto, a essa palavra devemos acorrer elevando o coração como expressão de fé e busca sincera, o que não anula a nossa inteligência, antes a solicita e ilumina. Estudar e meditar a Sagrada Escritura com fé e a partir da fé faz adquirir sensibilidade, discernimento e gosto em distinguir o que é da vontade de Deus.
A obra completa está pensada abarcando todos os domingos do Tempo Comum, do Ciclo do Natal, do Ciclo da Páscoa, festas e solenidades que podem cair em domingo.
A estrutura dos capítulos é bastante simples: textos bíblicos e comentários a esses textos. Assim, para cada capítulo: a primeira parte com as leituras bíblicas correspondentes ao domingo respectivo; a segunda parte com uma homilia ou comentário do tesouro do período da patrística; a terceira parte com uma homilia dentre as que preguei nesses quase trinta anos de sacerdócio. Os textos de minha autoria foram preparados em anos diversos, porém revisados e corrigidos para esta publicação. Muitos deles, inspirados ou parcialmente dependentes de alguma frase ou parágrafo de outro autor. Na bibliografia apresentada ao final constam os principais textos dos quais sou devedor, pois o meu objetivo não era escrever um livro de homilias originais, mas cumprir meu dever sagrado de pregar o melhor que pudesse em conteúdo. E muito me servi do que já fora escrito.
Deus mediante, esta obra sirva para a Sua glória e o bem de muitos irmãos na fé. A Palavra de Deus é tesouro que eleva, enriquece e salva. “A alegria do Evangelho enche o coração e a vida inteira daqueles que se encontram com Jesus. Quantos se deixam salvar por Ele são libertados do pecado, da tristeza, do vazio interior, do isolamento. Com Jesus Cristo, renasce sem cessar a alegria”.
O autor.
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São Fausto de Riez (séc. V)
Sermão na Epifania 5,2
(PLS 3, 560-562)
“É melhor e mais forte o vinho do Evangelho”
Três dias depois celebravam-se bodas. Que outras bodas podem ser estas, senão as promessas e alegrias da salvação humana? As mesmas que se celebram, evidentemente, ou por causa da confissão da Trindade, ou pela fé na ressurreição, como se indica no mistério do número três. Assim como também em outra das leituras evangélicas se recebe com cantos, música e pompas nupciais o retorno do filho mais jovem, ou seja, a conversão do povo gentio. Por isso, como o esposo que sai de seu aposento, desceu o Senhor até a terra para unir-se, mediante a encarnação, com a Igreja, que tinha de congregar-se entre os gentios, para a qual deu seu penhor e seu dote: o penhor, quando Deus se uniu com o homem; o dote, quando se imolou por sua salvação. Por penhor entendemos a redenção atual, e por dote, a vida eterna. Todas estas coisas eram, para aqueles que as viam, outros milagres; para aqueles que as entendiam, outros mistérios. Porque, se observarmos bem, de alguma maneira na própria água se dá certa analogia do batismo e da regeneracão. Porque, enquanto uma coisa se transforma em outra, enquanto a criatura inferior se transforma em algo superior mediante uma secreta conversão, conclui-se o mistério do segundo nascimento. Rapidamente se modificam as águas que irão transformar os homens. Assim, pelo poder de Cristo, na Galileia a água se transforma em vinho – isto é, conclui a lei e lhe sucede a graça; afasta-se o que não era mais do que sombra, e se faz presente a verdade; o carnal se coloca junto ao espiritual; a antiga observância se converte em Novo Testamento; como diz o apóstolo: o antigo passou, o novo começou; e como aquela água que era contida nas tinas, sem deixar de ser de jeito algum o que era, começou a ser o que não era, da mesma forma a lei, manifestada pelo advento de Cristo, não perece, mas se aperfeiçoa. Se falta vinho, se traz outro: o vinho do Antigo Testamento é bom, mas o Novo é melhor; o Antigo Testamento, que observam os judeus, dilui-se na letra, enquanto que o novo, que é o que nos corresponde, converte em graça o sabor da vida. Trata-se de “vinho bom” sempre que ouças falar de um bom preceito da lei: Amarás ao teu próximo e odiarás ao teu inimigo. Porém, é melhor e mais forte o vinho do Evangelho, como quando ouves dizer: Eu, porém vos digo: Amai os vossos inimigos e rezai pelos que vos perseguem.
Homilia
Realizava-se uma festa de casamento em Caná da Galiléia, uma cidade distante seis quilômetros de Nazaré. Maria estava presente, assim como Jesus com os primeiros discípulos. Ela percebe que começou a faltar vinho. E se dá um diálogo repleto de simplicidade: a mãe de Jesus disse: eles não têm vinho. Pede sem pedir, apenas expõe uma necessidade. Em uma primeira impressão, pareceria que Jesus tivesse negado. Porém, Maria comporta-se como se tivesse sido atendida e diz aos serventes: fazei tudo o Ele vos disser. E o milagre acontece. Em abundância e com um vinho melhor. Ora, há três focos nesse relato: Jesus, que faz o milagre; Maria, que, com sua intercessão junto a seu divino Filho, consegue o milagre; e os serventes, que, fazendo a sua parte, colaboram eficazmente para o milagre.
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