Introdução
“Deus invisível, na riqueza do seu amor fala aos homens como amigos e convive com eles, para os convidar e admitir à comunhão com Ele”
[1]. Deus não só nos criou, como se aproxima, toca a nossa humanidade, fala conosco, é solícito e disponível. Tão próximo, que está até entre as panelas
[2]. Tão atento a cada um, que percebe quando se descasca batatas por amor a Ele ou de má vontade
[3]. Tocou tanto a nossa humanidade que carregou com as nossas misérias, para vencer o pecado e a morte. Cabe a cada um dar ouvidos e aceitar essa aproximação, esse toque, entranhar esse diálogo, aceitar essa solicitude do Amor disponível.
Nenhum livro, nenhuma leitura tem a força de aproximar-nos tanto a Deus como aquela que está escrita sob a própria inspiração divina. Na Sagrada Escritura, Deus vem amorosamente ao nosso encontro para conversar conosco
[4]. Ali se encontra a história profunda da nossa vida, ou seja, nossas relações com Deus. Desvela o segredo sobre o que é e o que vale a nossa vida e o caminho que devemos seguir, pois a Palavra de Deus é viva e eficaz
[5]. Para isso, importa lembrar que podemos aprofundar as riquezas da nossa fé: em Deus se descobrem sempre novos mares, quanto mais se navega
[6].
Já que boa parte dos fiéis somente entra em contato com a Palavra de Deus nas missas dominicais, essas revestem-se de particular importância. Como afirmou o Papa Francisco: “A Palavra de Deus é proclamada na comunidade cristã para que o dia do Senhor se ilumine com a luz que provém do mistério Pascal (...). Deus segue falando hoje conosco como seus amigos, conosco se entretém, para nos oferecer sua companhia e nos mostrar o caminho da vida. Sua Palavra se faz intérprete de nossos pedidos e preocupações, e é também resposta fecunda para que possamos experimentar concretamente a sua proximidade”
[7]. E: “Por meio da Sagrada Escritura, que se mantém viva graças à fé da Igreja, o Senhor continua falando a sua Esposa e lhe indica os caminhos a seguir, para que o Evangelho da salvação chegue a todos”
[8].
O presente livro está inserido dentro desse processo de salvação. De fato, ensina São Paulo e, através dele, o próprio Senhor: “aprouve a Deus pela loucura da pregação salvar aqueles que creem”
[9]. É “Deus que deseja alcançar os outros através do pregador” e “mostra o seu poder através da palavra humana”
[10].
“A homilia pode ser, realmente, uma experiência intensa e feliz do Espírito, um consolador encontro com a Palavra, uma fonte constante de renovação e crescimento”
[11]. Assim será com todos os que desejam um coração aquecido pela escuta atenta de “toda palavra que procede da boca de Deus”
[12], têm fome em saciar-se com a sabedoria que vem do Alto. Para tanto, a essa palavra devemos acorrer elevando o coração como expressão de fé e busca sincera, o que não anula a nossa inteligência, antes a solicita e ilumina. Estudar e meditar a Sagrada Escritura com fé e a partir da fé faz adquirir sensibilidade, discernimento e gosto em distinguir o que é da vontade de Deus
[13].
A obra completa está pensada abarcando todos os domingos do Tempo Comum, do Ciclo do Natal, do Ciclo da Páscoa, festas e solenidades que podem cair em domingo.
A estrutura dos capítulos é bastante simples: textos bíblicos e comentários a esses textos. Assim, para cada capítulo: a primeira parte com as leituras bíblicas correspondentes ao domingo respectivo; a segunda parte com uma homilia ou comentário do tesouro do período da patrística; a terceira parte com uma homilia dentre as que preguei nesses quase trinta anos de sacerdócio. Os textos de minha autoria foram preparados em anos diversos, porém revisados e corrigidos para esta publicação. Muitos deles, inspirados ou parcialmente dependentes de alguma frase ou parágrafo de outro autor. Na bibliografia apresentada ao final, constam os principais textos dos quais sou devedor, pois o meu objetivo não era escrever um livro de homilias originais, mas cumprir meu dever sagrado de pregar o melhor que pudesse em conteúdo. E muito me servi do que já foi escrito.
Que esta obra sirva para a Sua glória e o bem de muitos irmãos na fé. A Palavra de Deus é tesouro que eleva, enriquece e salva. “A alegria do Evangelho enche o coração e a vida inteira daqueles que se encontram com Jesus. Quantos se deixam salvar por Ele são libertados do pecado, da tristeza, do vazio interior, do isolamento. Com Jesus Cristo, renasce sem cessar a alegria”
[14].
O autor
(...)
São Cirilo de Alexandria, doutor da Igreja (séc. V)
Comentário sobre o Evangelho de São João 2
(PG 73, 191-194)
“Aquele Cordeiro, aquela vítima imaculada, foi levado ao matadouro por todos nós”
Temos de explicar quem é esse que já está presente, e quais foram as motivações que induziram ao que veio do céu a descer até nós. Diz, com efeito: Este é o cordeiro de Deus, cordeiro que o Profeta Isaías nos havia predito, dizendo: Como um cordeiro foi levado ao matadouro, como ovelha muda diante do seu tosquiador; cordeiro este já prefigurado pela lei de Moisés. Só que naquele tempo a salvação era parcial, e não derramava sobre todos a sua misericórdia: tratava-se de um tipo e de uma sombra. Agora, em vez disso, aquele cordeiro — enigmaticamente prefigurado em outra época —, aquela vítima imaculada, por todos é levada ao matadouro, a fim de que tire os pecados do mundo, para derrubar ao exterminador da terra e abolir a morte morrendo por nós, para cancelar a maldição que pesava sobre a humanidade, para anular, finalmente, a antiga condenação: És pó e ao pó retornarás, para que ele seja o segundo Adão, não pertencente à terra, mas ao céu, e se torne a origem de todo o bem da natureza humana, em solução da morte que foi introduzida no mundo, em mediador da vida eterna, em causa de retorno a Deus, em princípio da piedade e da justiça, e, finalmente, em caminho para o Reino dos Céus.
E, em verdade, um só cordeiro morreu por todos, preservando desta forma toda a grei dos homens para Deus Pai: um por todos, para a todos submeter a Deus; um por todos, para assim ganhar a todos; enfim, para que todos já não vivam para si, mas para aquele que morreu e ressuscitou por eles.
Estando verdadeiramente implicados em uma multidão de pecados, e sendo, em consequência, escravos da morte e da corrupção, o Pai entregou ao seu Filho em resgate por nós, um por todos, porque nele todos subsistem e ele é melhor do que todos. Um morreu por todos, para que todos vivamos nele.
A morte que absorveu ao cordeiro degolado por nós, também nele e com ele necessitou devolver todos nós à vida. Todos nós estávamos em Cristo, que por nós e para nós morreu e ressuscitou. De fato, abolido o pecado, quem podia impedir que fosse também abolida a morte por ele, consequência do pecado? Morta a raiz, como pode salvar-se o caule? Morto o pecado, que justificação resta para a morte? Portanto, exultantes de legítima alegria pela morte do cordeiro de Deus, lancemos a provocação: Ó morte, onde está a tua vitória? Onde está, inferno, teu aguilhão?
Como em certo lugar cantou o salmista: é tapada a sua boca dos que proferem maldades, e doravante não poderá seguir acusando aos que pecam por fragilidade, porque Deus é o que justifica. Cristo nos resgatou da maldição da lei, tornando-se um maldito por nós, para que nós nos encontremos libertos da maldição do pecado.
Homilia
“Eis o Cordeiro de Deus”: ouve-se pouco antes da sagrada comunhão. Jesus é apresentado com as mesmas palavras as quais São João Batista o indicou aos primeiros discípulos.
Como seria bom se ele indicasse para nós também, se estivesse na Missa ao nosso lado apontando e dizendo: ouve bem as leituras, é Cristo falando contigo. Ou então, na hora da consagração: presta atenção, é Cristo tornando presente o seu sacrifício por ti.
Como seria forte a repercussão em nossa alma se São João Batista repetisse aos nossos ouvidos quando vamos à comunhão: “Eis o Cordeiro de Deus”. No entanto, somos avisados sempre antes da sagrada comunhão. E quem é? Jesus. Para quem veio? Para nós. Para que veio? Para nossa salvação. A Santa Missa é presença divina, é sacrifício divino, é alimento divino.
(...)
[1] CONCÍLIO VATICANO II, Constituição Dogmática
Dei Verbum 2
[2] Cf. TERESA DE ÁVILA,
Fundações, 5, 8, In: Obras Completas, Porto: Carmelo do Coração Imaculado de Maria, 1970, p. 998: “Entendei que até mesmo na cozinha, entre as caçarolas, anda o Senhor a ajudar-vos interior e exteriormente”
[3] Cf. Josemaria ESCRIVÁ,
Sulco. São Paulo: Quadrante, 1987, n. 498: “Escreves-me na cozinha, junto ao fogão. Está começando a tarde. Faz frio. A teu lado, a tua irmãzinha — a última que descobriu a loucura divina de viver a fundo a sua vocação cristã — descasca batatas. Aparentemente — pensas — o seu trabalho é igual ao de antes. Contudo, há tanta diferença! — É verdade: antes ‘só’ descascava batatas; agora, santifica-se descascando batatas”
[4] Cf. CONCÍLIO VATICANO II, Constituição Dogmática
Dei Verbum 21
[6] Cf. Margherita MORREALE,
Homenaje a Fray Luis de León. Salamanca: Universidad de Salamanca, 2007, p. 559
[7] FRANCISCO,
Misericordia et misera, 6
[10] FRANCISCO,
Evangelii gaudium, 136
[13] Cf. TOMÁS DE AQUINO,
Catena Aurea, I, 51
[14] FRANCISCO,
Evangelii gaudium, 1