O fim da piedade, sua razão de ser e seu coroamento, é a
intimidade com Deus.
Ora, poucas são as almas, relativamente, que a possuem, e muitas a têm por impossível.
Donde vem isso?
A razão principal é termos o hábito de tratar com Deus como um
ausente.
Como se pode ser íntimo de uma pessoa, que nunca nos está presente?
A intimidade supõe presença.
Está bem! Mas não será um sonho ou um devaneio da imaginação querer tratar com Deus como com alguém que temos presente?
Entre as diferentes maneiras por que Deus está presente no mundo, uma principalmente nos dá razão de ser da intimidade. É a que nestas páginas quereríamos explicar e pôr, sendo possível, em relevo:
A presença de Deus em nós pelo estado da graça.
Deus, diz-nos o catecismo, está presente em toda parte. Essa presença universal, essa onipresença, impressiona muito certas almas, porém relativamente poucas. Para a maior parte, estar em toda parte equivale a não estar em parte alguma; e, se excetuarmos alguns santos, a generalidade dos homens não compreende bem uma presença impessoal, difícil de conhecer, a mesma para o pecador e para o justo, resultante unicamente do fato da criação, pode ser causa de intimidade.
Deus, além disso, está presente de um modo especial no Céu... Mas o céu está tão longe! É preciso uma potência enorme de abstração para se produzir uma intimidade, que não seja destruída por essa distância incomensurável e perpetuamente existente. Concedamo-la a São Tomás, que seus contemporâneos nos descrevem caminhando com os olhos continuamente levantados, absorto na contemplação divina. Concedamo-la a S. Inácio, que Laynez compara a Moisés, porque parecia falar com Deus face a face
[1] e que, como nos diz o Pe. Nouet, gostava de orar nos lugares mais elevados da casa que habitava, por se encontrar assim mais perto do Céu.
Deus está presente na
Eucaristia, e esta presença, ainda que também muito misteriosa, é muito mais palpável. Alguma coisa se vê, e se sente, que é penhor de presença, para nós, pobres naturezas sensíveis. O que se vê, o que se goza é simplesmente aparência, a realidade escapa à percepção, mas esse pouco basta para sustentar nossa fé, que adora, sob as aparências, a divina realidade. Mas, enfim, a presença eucarística, pela comunhão, dura pouco e não posso converter a minha vida numa perpétua visita ao Santíssimo Sacramento.
Além dessas três maneiras que Deus tem de estar presente, existe uma outra, a mais fecunda de todas, com relação ao assunto que nos ocupa.
— Onde está Deus? — perguntaram a um menino.
— Em meu coração — respondeu.
— Quem o pôs lá?
— A graça.
— Quem o pode expulsar dele?
— O pecado.
Estas respostas infantis, que revelam tanta inteligência da vida cristã, resumem a doutrina, em que nos parece estar fundada, no mais elevado grau, a intimidade.
De todas as nossas aptidões, a mais singular é saber passar ao lado de maravilhas sem darmos por elas. A beleza moral da heroica dedicação de uma religiosa nos hospitais, o esplendor da Igreja, a grandeza do Sacerdócio, quem a vê? Mas nós, os cristãos, somos mestres nesta arte de não darmos fé das esplêndidas realidades que nos cercam.
Pedi a um batizado que vos defina o estado de graça. Ele responderá: “o estado de graça consiste em não ter pecado mortal na consciência”. Se insistis:
— Mas pensas que é só isso?
— E por que não? Não será o bastante?
— Se o fosse, de tal explicação se deduziria que possuir o estado de graça é não ter alguma coisa. Ora, não consistirá também em ter?
— Ter o quê?
— Simplesmente isto, repara bem:
Deus presente e vivo em nós.
E é, nem mais nem menos, o dogma da Igreja, a definição do catecismo.
Segundo veremos, essa presença de Deus em nós pela graça tem por si grandes autoridades; pois:
- Nosso Senhor a afirma;
- S. Pedro a explica;
- S. Paulo a escolhe por tema habitual de suas Epístolas;
- Os doutores dela tratam à porfia;
- A literatura a comenta de mil maneiras;
- Os Santos a sentem e vivem dela.
Donde virá, pois, que, para a maior parte dos cristãos, e até para muitas almas religiosas, este dogma fundamental é letra morta, e esta doutrina, realmente tão consoladora, é quase desconhecida ou sem força?
Podem dar-se deste estranho acontecimento muitas razões. Uma, que desde já queremos assinalar, é que relativamente bem poucos falam dela.
Num retiro ao seu clero, alguns meses antes da guerra, o intrépido Cardeal Mercier, de Malines, expressava-se dessa forma:
“A verdade é que Deus vive em nós... Muitas almas batizadas ignoram este mistério interior e passam toda a vida estranhas a ele. Padres, isto é, aqueles mesmos que receberam a divina missão de pregar ao mundo tal mistério, vivem dele afastados e esquecidos, e quando o recordam, admiram-se... Persuadi-vos, pois, que Deus não vos abandona, enquanto pelo pecado mortal não o forçais a sair do vosso interior. Fazei atos de fé voluntários, explícitos, frequentes nesta presença real, permanente de Deus dentro de vós mesmos. Não procureis a Deus fora, mas lá dentro de vós, onde habita, para onde vos chama, onde vos espera, e onde sofre as vossas dissipações e esquecimentos”.
Já um sábio comentador, Cornélio a Lápide, lamentava semelhante omissão: “Poucos homens, escreve, apreciam o dom da graça no seu justo valor. Era preciso que cada um o admirasse respeitosamente em si mesmo; os pregadores e mestres da ciência deveriam explicá-lo e inculcar profundamente ao povo o seu conhecimento. Assim os fiéis aprenderiam que são os templos vivos do Espírito Santo, e que trazem o mesmo Deus em seus corações; que devem, por conseguinte, andar dignamente em sua presença e viver uma vida digna de tal hóspede, que os acompanha por toda parte e em toda parte os vê”.
Mons. de Ségur formula a mesma queixa:
“Todos os cristãos sabem, de um modo geral e teórico, que Deus está em seus corações, que são os templos de Jesus Cristo, que o Espírito Santo habita neles. Como acontece, então, que tão poucos pensam neste mistério, vivem dele, e nele creem praticamente? Até entre os sacerdotes, entre os bons padres, poucos são, não receio dizê-lo, os que dão diretamente às almas este alimento, o único entretanto de que têm verdadeira necessidade, capaz de lhes satisfazer e apagar a sede que têm de Deus, que é sua vida, tesouro do seu coração, companheiro de sua existência, origem íntima da sua força, da sua piedade, da sua santificação”.
Na
Mensagem do Coração de Jesus ao coração do sacerdote, Nosso Senhor manifestou o desejo de ver propagar-se “a devoção ao estado de graça”. Eis o resumo desta “mensagem”, encontrada nos papéis de um religioso Marista, falecido em Roma, e que uma santa alma lhe tinha, sem dúvida, comunicado:
“Certamente a devoção ao meu Coração Sagrado está muito espalhada; ela me consola e me dá uma grande quantidade de almas, a mim que sou de todas o Salvador. Mas não obstante,
quanto se está longe de compreender os tesouros infinitos do meu Coração! Ah! se eles adivinhassem o intenso desejo que tenho de me unir intimamente a cada um deles! Muito raros são os que chegam a essa união, como lha preparou meu Coração sobre a terra! E que é preciso para isso?
“Recolher, juntar de algum modo todas as suas afeições e concentrá-las em mim, que estou lá no mais íntimo de suas almas. Ah! brada tu a todos, quanto eu os amo! Pede-lhes que ouçam o apelo tão insistente do meu Coração, meu terno convite para descer ao fundo de suas almas, a que se unam lá àquele que nunca as abandona; a que de algum modo se identifiquem comigo... e então que bênçãos lhes prometo!...
“Esta união misteriosa e divina será o princípio de uma vida inteiramente mais santa e fecunda que a passada.
“Muitos sacerdotes conhecem muito bem a teoria da união da alma comigo, muitos aspirariam a ela, mas quão poucos a conhecem na prática! quão poucos, entre os sacerdotes piedosos, zelosos, meus amigos dedicados, sabem que eu estou lá, no íntimo de sua alma, todo abrasado por fazer dela uma só coisa comigo!
“Por quê? Porque vivem como à superfície de sua alma. Ah! se se quisessem subtrair às coisas sensíveis, às impressões humanas para só descerem
ao mais íntimo da sua alma, onde estou, bem depressa me encontrariam; e que vida de união, de luz e de amor não seria a deles!...”
Mon. de Ségur não hesitava em atribuir a si próprio a culpa de que os fiéis se afeiçoassem tão pouco a esta doutrina admirável, que é, certamente, como a explica S. Paulo aos Colossenses (1,26): “o grande mistério oculto às gerações passadas, manifestado pelo Evangelho aos Santos de Deus, aos quais se dignou comunicar as riquezas da sua glória”.
Com sua característica ingenuidade o santo prelado dizia: “Nós, os ministros de Deus, não temos bastante espírito de fé; temos a fé
in partibus, como aqueles bons bispos, que não têm dioceses. Ah! eu sou um desses arcebispos!”
Não se pode, contudo, negar que todas as realidades da fé, a de que mais se deve compenetrar quem deseja, sob qualquer título, ser apóstolo, é esta realidade sublime, que trazemos em nós. Se não a temos há mais tempo explorado por uma meditação prolongada e um estudo paciente, não devemos estranhar que os fiéis passem a vida na ignorância incomparável do mais belo tesouro que há, pois nós mesmos não o julgamos digno de uma séria investigação.
Dir-se-á, talvez, que os padres, tendo todos percorrido o tratado
De gratia, estudaram perfeitamente o mistério da habitação de Deus em nós, mas que é impossível pregar ou dar às almas, como alimento ordinário, esta doutrina.
Somos, pois, forçados a admitir este fato: a parte fundamental do dogma, sobre que repousa toda a verdadeira vida cristã, será ignorada praticamente por grande número de fiéis. Não cremos que isso seja possível.
[2]
A quem é que, por outra parte, S. Paulo pregava “o grande mistério”, a presença de Deus em nós, pela graça?
Aos surradores de Éfeso e aos estivadores de Corinto, todos gente não menos “mergulhada na matéria” do que grande número dos cristãos de hoje, e a quem seus hábitos e ideias pagãs deviam tornar muito mais inacessíveis à inteligência de “Deus em nós” do que aos católicos de raça, filhos e netos de batizados.
Admitimos que nem todos os fiéis se possam aproveitar — ao menos no mesmo grau — destas ideias sobre a divina presença em nós; mas, quem duvida que muitas almas ávidas e desejosas de se unir com Deus, encontrariam, se houvesse quem lhes chamasse a atenção para este ponto capital, uma enorme vantagem?
Assim o pensamos, e não é outro o motivo destas páginas.
Há muitas almas que, apesar de seus grandes esforços, nunca chegam a atingir uma elevada perfeição, por que, em lugar de procurarem a razão da sua intimidade, onde ela se encontra verdadeiramente, isto é, no dogma mais belo, mais fundamental da religião, vão procurá-la no sentimento ou em práticas acessórias.
[3]
Para fazer compreender a estas almas o engano, S. Bernardo serviu-se do que sucedeu a Madalena junto do sepulcro. Procura-se a Deus, onde Ele não está, ou melhor, não se procura onde Ele principalmente está; daqui nascem todas as confusões, todas as demoras, todos os atrasos, e o marcar passo no mesmo terreno.
“Mulher, por que choras? A quem procuras? Não sabes que possuis Aquele mesmo que andas procurando? Tens a quem procuras, e choras por Ele? Procurá-lo fora, estando Ele dentro? De pé, fora do sepulcro a chorar? Por quê?... Onde estou eu? — Estou em ti —
Mens tua monumentum meum est. A tua alma é o meu sepulcro. Em ti repouso, não morto, mas eternamente vivo. Tu mesma és o meu ‘jardim’. Eu, segundo Adão, guardo também um paraíso. Todo o meu empenho é fazer germinar neste jardim, que é a tua alma, searas de bons desejos. Como? Tu me tens, tu me possuis dentro de ti, e não sabes? —
Habes me intra te, et nescis? Por isso é que procuras fora. Ora, pois, aqui me tens. Eu te aparecia fora, para te trazer para dentro de ti —
ut te intus reducam. É lá no íntimo que me encontrarás... Ah! eu não estou ausente e longe, como tu pensas. Estou muito perto. Dize-me: Que tem o homem mais perto de si, que seu próprio coração? Os que me encontram, é lá, em seu coração, que me encontram. É lá minha residência.
Illic intus invenior, a quibuscumque invenior”.
[4]
Deixando de parte quanto possa dar brecha a controvérsias, procuraremos expor o mais claramente possível, pelo bem das almas desejosas de levar uma vida verdadeiramente cristã, tudo o que diz respeito à Presença de Deus em nós.
Para o desenvolvimento teológico e patrístico, ou para a inteligência de certos pontos essenciais, remetemo-nos para algumas obras de um interesse capital na matéria. Além de Cornélio a Lápide (
Comentário de S. Paulo) e Petávio (
De Trinitate) inacessíveis talvez a muitos assinalamos:
- Bellamy,
La vie Surnaturelle;
- O.P. Nouet,
Le chrétien dans ses rapports avec la Très Sainte Trinité;
- Terrien,
La Grâce et la Gloire;
- Ramière,
La Divinisation du chrétien;
- P. de Smet,
Notre vie surnaturelle;
- Froget, O. P.,
Da habitação do Espírito Santo na alma dos justos;
- M. de Ségur,
Jesus vivo em nós (com as correções que apontaremos);
- Foch,
Catecismo da vida interior;
- Sauvé,
Elevações dogmáticas.