Prefácio
Ao longo dos milênios, o homem se pergunta quem ele é, interroga-se sobre sua origem e seu destino. Nessa busca, aqui e ali, se vê desviado da rota da inquirição essencial para se perder nos desvãos da fenomenalidade das coisas, dos eventos, de tudo o que traduz o divertissement de que nos fala Pascal.
A rigor, não sabemos mais meditar, refletir, volver o olhar sobre nós mesmos, sobre a fugidia realidade que nos circunda, sobre um Ser que se alcandora nos altiplanos da eternidade. Nossos pensamentos, sentimentos, volições percorrem o caminho da dispersão em que se comprazem as almas tíbias, carentes do nada. É a vertigem do não-ser que lhes conduz os passos nesta corrida desenfreada para lugar algum, nesta implacável perseguição do tempo que se esgota a cada instante e cujo desperdício assinala o sinete inconcusso dos dias que correm.
Queiramos ou não, a existência humana se vê subitamente a braços com situações-limite, a dor, o sofrimento, a perda de entes queridos, a angústia existencial. São ensejos que se nos oferecem para aprofundar o mistério existencial.
Machado de Assis nos fala de vidas que se assemelham a livros vazios, com prefácio igualmente in albis. São existências meramente vegetativas, que se deixam levar pelas flutuações à sua volta, que não detêm o timão do próprio percurso. Felizmente, outras há que timbram em nos ofertar munificentemente a orientação do roteiro a trilhar, fixando o olhar perquiridor no alvo luminoso que as atrai. Vidas densas e consistentes que deixam em sua passagem um rastro de claridade apto a lhes permitir direcionar outros destinos. Descabe em tais casos segregar a vocação do destino. Este é o arremate daquela. O destino é a realização da vocação, é o seu fim colimado nas oficinas de uma subjetividade plena de anseios de mais-ser.
O livro do brilhante escritor, Dom Rafael Cifuentes, que ora apresentamos ao público, nos aponta na direção de uma vida prenhe de possibilidades, aberta ao Ser. A insignificância, a atração pelo nada com que nos acenam os meios de comunicação, parecendo comprazer-se em nos subtrair ao império da plenitude espiritual, apenas atestam à saciedade o caráter efêmero da existência. Retiram-lhe o conteúdo ontológico, indicando-nos o roteiro da frustração, da vida sem sentido.
O Autor nos brinda com uma análise fenomenológica da crise de valores com que nos defrontamos. Mas nela não remanesce. Atira a barra mais longe e nos norteia os passos em direção a um mundo em que os anseios deste serão colimados. Nem se fecha no pessimismo, nem cede aos rogos do agnosticismo invertebrado. Palmilha, antes, a trilha da esperança no porvir, por saber que a consciência está presente no homem para que ele se dê conta de sua destinação superior. Não para vegetar no imobilismo dos perfis anódinos.
O livro é um brado de alerta para as almas tíbias e, ao mesmo tempo, um reforço das que já estão no caminho da construção existencial. Seu Autor, sempre atento às flutuações de um mundo em mutação constante, desmonta a sistematização do não-ser e, assim, preludia o encontro radioso com a Transcendência.
Tarcísio Meirelles Padilha
Presidente da Academia Brasileira de Letras,
Presidente da Sociedade Brasileira de Filósofos Católicos,
do Centro Dom Vital.
Uma palavra inicial
Nestas reflexões sobre o sentido da nossa vida, as ideias se sucederão umas às outras simplesmente, de uma forma natural, sem uma concatenação sistemática, como muitas vezes acontece em nossos devaneios pessoais: os pensamentos vão se empurrando uns aos outros, chamando os seus colaterais, chocando-se com os seus opostos, aliando- se com os seus semelhantes, sem guardar uma ordem rigorosamente exata, mas ganhando frequentemente, por isso mesmo, em vitalidade e riqueza de conteúdo.
De igual maneira, como acontece habitualmente quando sozinhos tecemos considerações, as nossas reflexões não seguirão uma sequência discursiva, retilínea, mas circular, ou melhor em forma de espiral, à semelhança do curso de um caminho que do vale vai subindo até o cimo da montanha, circundando sempre a mesma paisagem, girando em torno de um único eixo e divisando-o a partir de diferentes ângulos, cada vez mais elevados. Assim, ao longo destas páginas – com uma reiteração intencional –, os mesmos pensamentos aparecerão, em ascensão gradual, vistos de prismas diversos para obter da realidade observada todo o seu significado e apurar dela toda a sua claridade e riqueza.
Não se julgue que esta maneira de refletir por escrito tem algo de arbitrário. Pelo contrário, relaciona-se com uma lei do espírito humano: há sentimentos e ideias que não se podem comunicar devidamente numa única tentativa, por dizê-lo assim, de um só golpe, numa primeira “passada”. É necessário voltar uma e outra vez a “acariciá-las”, expressando-as de várias formas, reimplantando-as em situações múltiplas, deixando-as falar em plural através de muitas personagens, diferentes por sua nacionalidade, época, profissão, idade e circunstâncias geográficas e culturais. A mesma verdade apresenta ressonâncias diversas quando é manifestada por um jovem ou um velho, por um poeta ou por um matemático, por um russo ou por um francês, por um homem medieval ou por um cientista moderno, ou de forma eminente, pelo mesmo Deus que não está submetido à erosão do tempo. Igualmente, idênticas afirmações cobram características peculiares ao serem proferidas em público ou privado, rindo ou chorando, perante um desconhecido ou numa confidência de amigo. Por isso, submeteremos as mesmas ideias a um movimento de circunvalação, repetindo-as numa pluralidade de circunstâncias, para tentar dizer algo de substancial sobre o único problema verdadeiramente central da vida humana. Por que, perguntamos, existe algo mais difícil de exprimir do que aquilo que, estando no mais profundo de nós mesmos, marca a linha diretriz de nossa existência e indica o definitivo e último sentido da nossa vida?
Pela sua própria índole, estas reflexões marcharão ao ritmo da sua própria lógica, sem desviar-se atraídas por qualquer espécie de ideias pré-concebidas, nem resvalar pelos fáceis declives do lugar comum, da via convencional. Não é nosso desejo convencer, nem impor verdades – muito menos polemizar – utilizando argumentações, dados científicos ou aparato documental. Desejamos algo muito mais simples: que as nossas vivências pessoais, dos nossos semelhantes – não apenas as minhas – se revelem em voz alta, despertando lembranças, e abrindo perspectivas... Se estas por si mesmas chegam a convencer-nos, fá-lo-ão pelo valor e pela certeza intrínseca que possuem e não pela força de uma outra finalidade externa, alheia ao mesmo processo de reflexão.
Deixaremos falar, enfim, ao nosso lado vozes muito diferentes pela sua nacionalidade, época e circunstâncias geográficas e culturais. E nos alegraremos ao compreender que as suas opiniões, perplexidades e afãs, alegrias e penas, são também as nossas. Assim nos parecerá que o sentido da nossa vida torna-se solidário com o destino dos que são filhos da mesma raça e do mesmo Deus.
O Autor