Antes que se manifestasse, entre os católicos, o problema das interpretações “suspeitas” da Bíblia, o que nos incomodava eram principalmente os ataques dos protestantes, acusando-nos de desconhecer e desconsiderar a Palavra de Deus. Talvez essas “pressões” tenham sido em parte responsáveis pelo grande interesse que, nas últimas décadas, foi despertando entre os católicos, uma espécie de “redescoberta” da Bíblia, cuja leitura individual não era muito valorizada no passado. Mas esse é também um processo natural, uma consequência da realidade cultural de nossos tempos, em que a fé se tornou mais racional e menos intuitiva.
Não há nenhum problema nisso. A Igreja está capacitada para atender às necessidades espirituais de seus filhos em qualquer tempo, e tem todo o interesse em vê-los bem formados e instruídos em sua fé, familiarizados com a Palavra de Deus. Não faltam aos católicos métodos, cursos e roteiros diversos para estudo bíblico, desde o nível mais elementar e superficial, até o mais profundo e complexo, encontrados principalmente sob a forma de livros ou folhetos, mas também apresentados à comunidade em forma de cursos práticos.
A atitude preconceituosa de nossos irmãos separados é que acaba, muitas vezes, gerando nos católicos desprevenidos a falsa impressão de que nossa Igreja não dá valor à Bíblia, nem incentiva sua leitura – ou, pelo menos, não o fazia até bem pouco tempo atrás.
Isso não é verdade. O que acontece é que nossa atitude em relação à Bíblia é um pouco diferente da deles, por diversas razões.
Primeiro: o valor absoluto que os protestantes dão à Bíblia decorre do fato de ser ela a única base, o único fundamento de sua fé. Eles não têm nada mais em que se apoiar, além dela. O que não é bíblico não tem valor para eles, daí essa quase “idolatria” da Bíblia.
Nossa situação é diferente. Nós temos a Igreja, fundada e enviada por Cristo para ser no mundo sacramento de salvação, a quem foram confiadas as chaves do Céu e os dons do Espírito Santo. Aos apóstolos e seus sucessores Deus confiou a sabedoria do seu Espírito, enviando-os a pregar (não a escrever!). Parte dessa pregação foi registrada por escrito para a posteridade, e a própria Igreja, guiada pelo Espírito, definiu quais desses escritos deviam ser considerados como autêntica Palavra de Deus. A Bíblia tornou-se um precioso auxílio à pregação, mas nunca a substituiu. O Espírito de Jesus não foi confiado às Escrituras, mas aos apóstolos, com a garantia de que, “no momento certo, lhes seria indicado o que dizer e fazer” (Mt 10, 19-20). Todo o Novo Testamento é um fruto permanente da pregação e do testemunho dos apóstolos, mas não é o único. A Igreja nasceu e permaneceu dinâmica, contendo em si o poder transformador da semente que cai na terra. A Bíblia sempre foi entendida como uma ferramenta, um meio de evangelização entre outros, mas não como um fim em si mesma. Ela contém a Palavra de Deus, mas não a esgota.
Nas comunidades primitivas, a Palavra era encarnada, vivida, celebrada, e por isso não precisava ser memorizada. Era acolhida nos corações, mais do que nas mentes, e essa foi a atitude que, ao desenvolver-se, a Igreja continuou a cultivar, em relação à Bíblia. Toda a sua rica liturgia, seus sacramentos e sua doutrina nada mais são do que a Palavra de Deus colocada em prática, transformada em vida. O discernimento do Espírito sempre foi entendido como herança de Jesus confiada aos apóstolos e seus sucessores, a quem cabia a autoridade para interpretar e explicar a Escritura.
Era, portanto, por meio da pregação e da celebração litúrgica que o cristão entrava em contato com a Palavra, sempre dentro do contexto maior de ação de graças e de exultação pascal, de comunhão eucarística e fraterna. Esse caráter celebrativo e catequético sempre foi característica essencial da Igreja, e continua sendo. Desvinculada desse contexto, a Escritura corre o risco de se tornar vazia de sentido.
Há que lembrar, também, que antigamente não existia a imprensa, sendo portanto impossível a divulgação de material escrito em larga escala, como é feito hoje. Além disso, eram muito poucas as pessoas que sabiam ler. Não somente era natural, como também necessário que a transmissão de conhecimentos e a formação na fé fossem feitas principalmente pela palavra oral (pregação), naturalmente acompanhada da explicação e interpretação autorizada da Igreja, sem a qual a maioria dos fiéis não teria condições de entender os textos bíblicos.
O advento do protestantismo (1521) coincidiu com uma época de florescimento cultural, em que, com a recente invenção da imprensa, o conhecimento e as letras se tornavam mais acessíveis à população em geral, facilitando as edições e a divulgação popular da Bíblia. Também a Igreja Católica se beneficiou desse progresso, é verdade, mas sua situação era diferente, pois ela não era uma instituição nova, precisando encontrar caminhos novos. Nossa Igreja já possuía toda uma secular tradição litúrgica, sacramental e devocional que “encarnava” a Palavra de Deus na vida concreta, tornando desnecessária uma supervalorização repentina da Escritura como fonte individual e particular da Verdade e do Espírito. É verdade que havia sim, na Igreja, muitas falhas precisando ser corrigidas. Mas não nesse campo...
Já para os protestantes, a supervalorização da Escritura era um caminho lógico, uma vez que, desligando-se da sucessão apostólica, eles perderam o ministério ordenado, e com ele os sacramentos como canais eficazes da Graça. Só lhes restou a Palavra escrita... com a desvantagem de vir desprovida de um magistério autorizado que garanta a unidade de interpretação.
Com o tempo, e acompanhando as mudanças culturais, também a Igreja Católica começou, aos poucos, a incentivar mais a leitura particular da Bíblia e o seu estudo, incrementado pelas recentes descobertas arqueológicas e as modernas técnicas de pesquisa histórica e literária que facilitam a interpretação, datação, etc. Hoje, o estudo da Bíblia é reconhecidamente uma das prioridades da Igreja, e como tal vem sendo tratado. Mas não existe aqui um caráter de urgência ou de competição, como se houvesse algum atraso a recuperar, ou alguma falha a suprir. Nem se trata de uma realidade nova, antes ignorada (ou proibida) e subitamente descoberta, mas sim, apenas, de uma resposta atual a questionamentos atuais, antes inexistentes. Nossa Igreja fala da Bíblia com a tranquilidade e a segurança de quem sempre dominou o assunto, de quem distribui do próprio tesouro que sempre lhe pertenceu, embora a linguagem utilizada vá sendo adaptada às exigências e aos recursos de cada tempo.
O contato particular com a Bíblia, tornado mais seguro pelos amplos recursos de interpretação e de divulgação de informações de que hoje dispomos, é um caminho a mais para o conhecimento da Palavra de Deus, mas continua não sendo o único... A palavra celebrada e vivida continua sendo mais importante do que uma mera assimilação intelectual, e é mesmo condição para que esta possa acontecer de forma correta – e a Palavra possa dar frutos, encarnar-se, gerar vida, como é sua missão (cf. Isaías 55, 11).
No dia do Juízo, Deus não nos perguntará quantos versículos da Bíblia sabemos de cor, mas nos questionará sobre nossa capacidade de amar e perdoar, que é a vivência concreta da Palavra. E, para chegar a isso, não é indispensável conhecer a Bíblia de cabo a rabo. O mais importante é ter fé e abrir o coração, para que Jesus nos cure e nos converta, por meio do Espírito Santo que ele mesmo confiou à Igreja.
Um leitor enviou-me, certa vez, a seguinte pergunta: “Por que a história nos ‘conta’ que em certa época, na Igreja Católica Romana, houve a queima e proibição da leitura da Bíblia, e por que era proibida sua divulgação?” O fato de ter escrito “Igreja Católica Romana” indica que esse leitor era muito provavelmente um protestante querendo colocar-me em apuros, como aconteceu muitas vezes. A minha resposta foi:
A história tem sido, muitas vezes, mal contada, segundo os interesses de quem a conta. Quem quer prejudicar a Igreja, certamente apresentará uma visão parcial ou distorcida da história, dando ênfase apenas ao que interessa aos seus propósitos.
A Igreja nunca proibiu a leitura da Bíblia; ao contrário, sempre a incentivou, embora os métodos utilizados para lidar com a Palavra de Deus fossem, naturalmente, diferentes nos tempos antigos, como não poderiam deixar de ser, já que a realidade cultural, vivencial e religiosa era outra. Se a Igreja fosse inimiga da Bíblia, teria tido tempo de sobra para acabar com ela e eliminar totalmente os seus vestígios, nesses quinze séculos em que foi a sua única guardiã. Em vez disso, porém, o que vemos é que o tesouro das Escrituras foi sempre cuidadosamente preservado, traduzido e reproduzido com esmero, fidelidade e paciência pelos monges nos mosteiros, em cópias manuscritas, feitas com materiais de difícil manuseio e conservação, ao contrário das facilidades de que hoje dispomos. Se os protestantes puderam ter acesso à Palavra de Deus, foi unicamente graças aos cuidados e ao zelo que nossa Igreja sempre lhe dispensou.
Muitos pensam, também, que a Igreja proibia as traduções em vernáculo, permitindo apenas a versão em latim, para evitar, dessa forma, que o povo tivesse acesso a ela...
Não é verdade. Antes de Lutero, a Bíblia já tinha sido traduzida em todas as línguas então faladas. Primeiro, com a expansão da Igreja no Ocidente, foi feita a tradução do original grego para o latim, depois corrigida por São Jerônimo e conhecida como “Vulgata”. No oriente surgiu a tradução siríaca, e, no Egito, a copta. Logo apareceu também uma tradução em árabe. Com a conversão dos bárbaros godos, surgiu a tradução em gótico.
No ocidente, o latim ficou sendo durante muito tempo a língua oficial, e não só na Igreja. Era a língua em que se redigiam os documentos e se ministrava o ensino nas universidades. Era a língua culta, conhecida por todos aqueles que sabiam ler, embora o latim popular fosse, aos poucos, modificando-se em nível local, dando origem às modernas línguas dele derivadas, entre as quais se inclui a língua portuguesa. Tão logo estas se encontraram suficientemente estruturadas, foram feitas traduções da Bíblia nessas línguas. Sabe-se de quatro versões em francês e cinco em italiano, uma das quais (a de Veneza), já tinha tido trinta e três edições, antes de 1500. Saíram também traduções em alemão, flamengo, boêmio e inglês, todas antes de Lutero
[1].
As iniciativas no sentido de uma maior precaução em relação à Bíblia só surgiram depois que, na Idade Média, algumas correntes heréticas (como os Valdenses e os Cátaros) começaram a divulgar traduções distorcidas, manipulando o texto bíblico de forma a defender suas ideias, que eram contrárias à reta fé. A Reforma Protestante, com sua teoria e prática do “livre exame”, deu continuidade a esse processo, multiplicando traduções vernáculas que não continham as notas explicativas que a Igreja Católica julgava necessárias para a compreensão de algumas passagens. Por essa razão, foi proibida aos fiéis católicos a leitura de qualquer tradução da Bíblia
que não fosse devidamente autorizada pela Igreja, e é bem possível que se tenha mandado queimar – para o bem da fé – alguns desses exemplares não autorizados, para evitar que chegassem às mãos dos católicos.
O que se proibia, portanto, não era a Bíblia, mas apenas as traduções duvidosas, que, por conterem erros, poderiam causar prejuízo à fé dos católicos. Foi nessa época que surgiu o costume do “imprimatur”, ou seja, a obrigatoriedade da autorização do Bispo para legitimar, tanto as traduções da Bíblia, quanto qualquer outra obra religiosa. Assim agindo, a Igreja nada mais fazia do que cumprir fielmente a sua obrigação de zelar pela integridade do depósito de fé a ela confiado, como faziam os apóstolos em relação àqueles que, já em seu tempo, tentavam deturpar a mensagem de Cristo (Gl 1,6-9; 1Tm 4,1-11;6,3-5.14.20-21).
Tais medidas, longe de significar falta de amor pela Palavra de Deus, eram, ao contrário, um sinal desse amor. Uma atitude que fazia sentido naqueles tempos em que ainda não se concebia a “liberdade de pensamento” que vivemos hoje.
Como defesa contra uma tal “epidemia” de erros, era natural que se desenvolvesse, na Igreja, um certo “tabu” em relação à leitura particular das escrituras, dando-se preferência ao contato com a Palavra de Deus por meio de fontes mais seguras: a liturgia da missa, a catequese, os comentários escritos por autores fidedignos. A intenção nunca foi afastar os fiéis da Escritura, mas sim, zelar para que esta fosse corretamente compreendida. Era um esquema que se adaptava perfeitamente às exigências da época, e jamais causou o menor prejuízo à fé de qualquer católico.