Primeira parte — dignidade do sacerdote
I — A vocação sacerdotal
“Ninguém se apropria desta honra,
senão somente aquele que é chamado por Deus,
como Aarão.” (Hb 5,4).
O Sacerdócio católico é divino em sua origem: foi Deus feito homem quem o instituiu; em suas funções: é o poder de Deus em ação; em seus frutos: ele santifica, salva o mundo. Quem ousaria então pretender a essa sublime dignidade? Quem se poderia julgar digno? Ninguém, mesmo se possuísse a pureza de um anjo, o amor de um serafim. Entretanto, é necessário que haja sacerdotes, e sacerdotes escolhidos entre os homens. Foi a Igreja que recebeu a missão de discernir e formar os chamados ao sacerdócio de Jesus Cristo.
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Entrar no sacerdócio sem vocação divina é uma temeridade sacrílega, é expor a própria salvação, é correr à condenação. São de Santo Efrém essas palavras: “Se alguém tiver a ousadia de usurpar a dignidade do sacerdote, trará sobre si as trevas exteriores e o juízo sem misericórdia”.
a) Há temeridade em querer impor-se a Deus. De fato, não se impõe a Deus ser o seu representante, seu ministro, o dispensador de seus dons. Não dizia Nosso Senhor a seus Apóstolos: Não fostes vós que me escolhestes (Jo 15,16), e não diz São Paulo do próprio Jesus Cristo: Assim também Cristo não se atribuiu a si mesmo a glória de ser pontífice (Hb 5,5)? Acaso se impuseram os Santos que, trêmulos, fugiam até para o deserto, a fim de subtrair-se a tais responsabilidades? Que pensar, portanto, do candidato que procurasse forçar um chamamento fazendo entrar em jogo a influência das proteções? Nesse caso, não pode haver proteção; há somente a vocação divina a examinar.
Os talentos não são um direito; o nascimento menos ainda; as qualidades naturais são apenas um elemento favorável. Recorde-se o castigo dos partidários de Coré, tragados por terem desejado substituir-se ao sacerdócio de Moisés e de Aarão (Nm 26,10). Recorde-se a punição de Saul, rejeitado por ter oferecido, sem autorização, um sacrifício a Jeová (1Rs 15,22-26).
b) É também expor-se à perdição eterna. Por quê? Porque, no testemunho dos Santos, a salvação depende da fidelidade à vocação. Efetivamente, a vocação é o meio ordinário utilizado por Deus para dar-nos as graças que nos preparou, realizando assim os deveres conformes à Sua vontade sobre nós. Mas tem direito a essas graças quem entra no sacerdócio sem vocação divina? Não. E se não as possui, como poderá cumprir os seus deveres, sustentar-se nas provações e perigos do sacerdócio? Como poderá ser um fiel dispensador na casa de Deus? Que será ele? Um ladrão. Quem não entra pela porta — pela verdadeira vocação divina — mas sobe por outra parte, é ladrão e salteador (Jo 10,1). É roubar, comenta São Cirilo de Alexandria, atribuir-se um cargo que não lhe é destinado pelo Altíssimo. Que se tornará ele? Um servidor infiel e pusilânime, um profanador, um traidor de Jesus Cristo, um carrasco das almas. E depois, que consolação terá em suas penas e sacrifícios? Poderá ele dizer: Deus os quer? Como poderá, em seus trabalhos, persuadir-se de que são agradáveis a Deus, verificar que Deus os aceita? Ah! mais vale ser o último no mundo com uma boa vocação, do que, sem vocação, ser sacerdote. Mais vale mendigar o pão, que levar sacrilegamente a coroa do sacerdócio. Mas, ao contrário, quando se tem a garantia de ser verdadeiramente chamado, pode-se e deve-se entrar com uma santa humildade, acompanhada de confiança magnânima e piedosa alegria. É a mais bela de todas as vocações; a que oferece mais meios de salvação, principalmente a que dá mais glória a Deus.
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Quais os caracteres que permitem reconhecer uma verdadeira vocação sacerdotal? Podem indicar-se três: o atrativo, o hábito de uma vida cristã, a pureza de intenção.
1.º O atrativo interior que nos leva ao serviço das almas.
É uma simpatia íntima por tudo quanto diz respeito ao sacro ministério. Tal é o proceder de Deus. Ele inspira esse gosto, muitas vezes desde a infância. Que bondade preparar-nos assim, dando-nos inclinações em harmonia com os decretos de sua divina Providência! Ele, que teria o direito de no-las impor por autoridade! Mas não, trata-nos com uma condescendência que tem algo de respeito, diz a Escritura: nos governais com grande indulgência (Sb 12,18). Enquanto Ele trabalha para a nossa felicidade, preparando-nos as Suas graças e traçando-nos o caminho para a nossa eternidade gloriosa, conduz-nos, com suavidade e força, à vocação que nos destinou: “atingindo de uma a outra extremidade e tudo dispondo com força e suavidade”.
Tem três qualidades esse atrativo religioso.
a) É suave e tranquilo como todas as inspirações divinas. É ele que anima a nossa piedade, torna-se o motivo de seus sacrifícios e lança os fundamentos das virtudes que a vocação exige; começa a dar a sensação de ser necessário procurar a glória de Deus.
b) É forte. Resiste contra as irresoluções e dúvidas, contra as inquietações e temores. Opõe-se às solicitações da carne e do mundo. Desmascara as ilusões do anjo das trevas. Torna-se dominante — direi mais — triunfador de tudo.
c) É constante. Não é um fogo de juventude, um impulso de temperamento, que se vê nascer, exaltar-se e morrer no mesmo dia.
Não lhe são fonte o despeito, o desgosto. Ele nasce com o sentimento, desenvolve-se com a razão, fortifica-se, aperfeiçoa-se pela fé e alimenta-se pela piedade. Cresce cada vez mais em respeito, em amor, em zelo por tudo quanto se refere ao santo ministério. O mundo não se engana a tal respeito. À vista de semelhante atrativo, é costume dizer-se: eis um jovem que será padre.
2.º O hábito de uma vida cristã. O atrativo é pouco, sem a pureza de vida.
Para honrar a sublime dignidade do sacerdócio, para a santidade das funções a exercer, para favorecer a fé e a confiança dos fiéis, o futuro sacerdote já se deve revestir de virtude. É preciso que seja puro aquele que serve no altar, que pode levar os vasos sagrados, e, sendo necessário, tocar, dar até, o Santo dos Santos. Deve estar revestido da veste nupcial da caridade aquele que é o comensal cotidiano do Deus da Eucaristia. Por isso, recomendava Santo Isidoro de Sevilha ao candidato eclesiástico: “Quem aspira ao sacerdócio, antes deve ser avaliado se sua vida se ajusta a tal honra”. Se São Paulo pedia a todos os cristãos se mostrassem: santos, imaculados, irrepreensíveis aos olhos do Pai (Cl 1,22), quanto mais se devem conformar a esse programa os jovens levitas!
Pode-se aplicar a eles a palavra do Apóstolo: Que cada um se examine a si mesmo... (1Cor 11,28). Esta prova deve ter lugar durante o noviciado clerical. A Igreja, zelosa da glória de seu Esposo celeste, exige, daqueles a quem chama para tomar parte em sua sagrada milícia, a inocência, ou sempre conservada, ou ao menos reparada por uma exata e verdadeira penitência. Na idade avançada, uma vida imaculada: é uma vida pura que se tem em conta de velhice (Sb 4,9).
Ah! possam todos os candidatos ao sacerdócio dizer com o autor dos salmos: me conservareis incólume... (Sl 40,13). Amo a habitação de vossa casa... Eu, porém, procedo com retidão (Sl 25,8; 11). Com que solicitude não escrevia São Jerônimo ao jovem Rusticus: “Não macules a tua adolescência com nenhuma imundície, a fim de te aproximares virgem do altar de Cristo”.
Mas, ai! quando se teve a infelicidade de abandonar, ao menos por certo tempo, as práticas da vida cristã, tanto a prudência quanto as conveniências exigem não aspirar ao sacerdócio. Há, no entanto, exceções que se justificam por indicações especiais da Providência.
A um grande senhor, convidado para as Sagradas Ordens, mas que fazia a confissão de sua vida passada, aliás, com o sincero desejo de reformá-la, respondia São Bernardo: “O confessor estremece de medo, de medo, ao pensar na situação à qual está sendo chamado, sobretudo se ainda não passou por um período de penitência, pelo qual se de algum modo pudesse se preparar. Com efeito, exige-se que se forme primeiro a própria consciência, para depois curar as outras”.
Que teria dito de um jovem ainda convalescente de uma vida toda mundana, gemendo talvez sob o peso de suas recentes fraquezas? Poderia este achar injustiça em refrear-se a impetuosidade do seu desejo de chegar às ordens sagradas? Infeliz! Não reflete: ousar, no triste estado de sua alma, colocar-se como mediador entre os homens e Deus! Como são severas as advertências dos Padres e dos Doutores da Igreja! “Ai dos ministros infiéis que, ainda não reconciliados, tomam sobre si os cuidados da reconciliação alheia. Ai dos filhos da ira que se constituem a si próprios em ministros da graça. Ai daqueles que, caminhando na carne, não podem agradar a Deus, e ainda assim ousam querer aplacá-lO”.
Eis por que São Paulo recomenda a Timóteo não escolher como bispo um recém-convertido. Não pode ser um recém-convertido, para não acontecer que, ofuscado pela vaidade, venha a cair na mesma condenação que o demônio. (1Tm 3,6). E não se oponha o caso de um Mateus, de um Saulo, de um Ambrósio, de um Agostinho. Pois é certo que, uma vez escolhidos como apóstolos, ou sagrados Bispos, essas extraordinárias criaturas foram confirmadas no bem, ou se fixaram de maneira irrevogável nas mais altas virtudes.
Tanto mais que a prova virá sobretudo do exterior. E é inevitável. Se os jovens sacerdotes não tivessem de deixar o seminário para exercer as funções de seu ministério, certamente se mostraria menos exigente a Igreja, pois estaria tranquila a seu respeito. Ali, tudo conduz à virtude, as próprias paredes a inspiram, os exercícios de piedade a sustentam e o bom exemplo arrasta, sem falar nas graças recebidas pessoalmente. Se não estiverem bem exercitados nos combates do Senhor e munidos das armas espirituais; se sua caridade não estiver forte e solidamente estabelecida, enraizada em Jesus Cristo, não é para temer que sejam vencidos no primeiro ataque e se tornem escravos na primeira derrota?
Devem, portanto, experimentar a sua fraqueza, trabalhar na obra de sua santificação desde o seminário, pois só serão bons padres, fervorosos pastores de almas, na razão de sua santidade. Por vezes, pode uma terrível tentação solicitar os candidatos ao sacerdócio: a de disfarçar, ocultar ao diretor o estado da alma, no receio de serem retardados, postos à prova.
O quê! Quereriam, pois, tomar sobre si uma semelhante responsabilidade? E se estiverem enganados? Reconhecem-se indignos, e temem ser atrasados, recusados talvez; querem avançar de toda forma. Que inconsequência, e que perigo para a sua eterna salvação! Não, o diretor não quer puni-los, quer apenas dispô-los bem. Mudem de proceder, tornem-se homens de virtude, e o diretor lhes dirá: “Ide, em nome do Senhor”.
3.º A pureza de intenção.
Consiste em só tomar as Sagradas Ordens para expandir o reino de Deus, assegurar a própria salvação e salvar as almas. Tal foi o pensamento de Jesus Cristo ao instituir o sacerdócio. Ele próprio, ao exercer tais funções, não deseja senão a glória de seu Pai e a volta das ovelhas desgarradas da casa de Israel. Se estabelece Apóstolos, é para espalharem por toda parte a semente evangélica regando-a com seus suores, fecundando-a com seus trabalhos, para lhe recolherem os frutos e produzais fruto, e o vosso fruto permaneça (Jo 15,16).
Tal o motivo que animava os Santos quando consentiam, após muitas lutas, em se deixarem ordenar sacerdotes.
Trazer outras intenções é uma criminosa disposição que exclui para sempre: “Se alguém pedir para obter o ofício de cura de almas, por essa mesma presunção tornou-se indigno”. Desejar o sacerdócio, antes de tudo como posição social, como um honroso estado de vida, é entrar como mercenário. Entrar no sacerdócio para satisfazer a pais ambiciosos é entrar como ladrão.
Ambicionar o sacerdócio para elevar-se, enriquecer, ter uma vida suave, é entrar como lobo devorador. Só o que entra com grande pureza de intenção corresponde à expectativa do Salvador. O quê! Jesus Cristo teria vindo à terra e subido ao Calvário, apenas para estabelecer um sacerdócio tíbio, interesseiro, sem ideal, sem virtude?
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São Paulo sentia pesar em separar-se de seu discípulo Timóteo porque, escreve ele, junto de si, ninguém toma sinceramente a peito o bem das almas: com efeito, todos têm em vista os próprios interesses e não os de Jesus Cristo; mas aquele é de uma virtude comprovada e devotado comigo, como um filho com o pai, ao serviço do Evangelho (Fl 2,20-22). Não é este o ideal para todo seminarista, em relação a seus Superiores, a seu Bispo? Preparar-se-á, desta forma, para realizar a palavra de ordem de São Paulo: Ora, o que se exige dos administradores é que sejam fiéis (1Cor 4,2).