Introdução
Propusemo-nos, nesta obra, a fazer a síntese de duas outras: Perfeição cristã e contemplação, e O amor de Deus e a Cruz de Jesus, nas quais estudamos, à luz dos princípios de São Tomás, os principais problemas da vida espiritual. Em particular, aquele que se fez sentir de uma forma mais explícita nestes últimos anos: a contemplação infusa dos mistérios da fé e a união com Deus que dela resulta seria uma graça em si extraordinária, ou faz parte, ao contrário, da via normal da santidade?
Nesta obra, gostaríamos de retomar essas questões de uma forma ao mesmo tempo mais simples e mais elevada, com a perspectiva necessária para perceber melhor como todas as coisas da vida interior estão subordinadas à união com Deus.
Para isso, consideraremos em primeiro lugar os fundamentos da vida interior; em seguida, como afastar os obstáculos; o progresso da alma purificada e iluminada pela luz do Espírito Santo; a docilidade que esta deve manter para com Ele; e, finalmente, a união com Deus à qual conduzem essa docilidade, o espírito de oração e a cruz carregada com paciência, gratidão e amor.
Como introdução, recordemos brevemente qual é a única coisa necessária a todo cristão, e como essa questão se coloca de forma premente no momento atual.
I – A única coisa necessária
A vida interior, como todos podem facilmente perceber, é uma forma elevada da conversa íntima que cada um tem consigo mesmo quando está sozinho, mesmo que seja no tumulto das ruas de uma grande cidade. Quando deixa de conversar com seus semelhantes, o homem conversa interiormente consigo mesmo sobre aquilo que mais o preocupa. Essa conversa varia muito segundo as diversas fases da vida: a do idoso é diferente da do jovem; e varia muito, também, conforme se trata de um homem bom ou mau.
Para quem busca seriamente a verdade e o bem, essa conversa íntima consigo mesmo tende a tornar-se uma conversa com Deus; e, pouco a pouco, ao invés de buscar-se a si mesmo em tudo, ao invés de considerar-se, de forma mais ou menos consciente, como o centro de tudo, o homem tende a buscar Deus em tudo, e a substituir o egoísmo pelo amor a Deus e às almas em Deus. Isso é a vida interior, como nenhum homem sincero terá dificuldade em reconhecer. A “única coisa necessária” de que Jesus falava a Marta e Maria
[1] consiste em escutar a palavra de Deus e em vivê-la.
A vida interior assim entendida é, em nós, algo de mais profundo e de mais necessário que a vida intelectual ou cultural das ciências, que a vida artística e literária, que a vida social ou política. Existem, infelizmente, grandes sábios, matemáticos, físicos, astrônomos, que não têm, por assim dizer, nenhuma vida interior, e dedicam-se ao estudo de suas ciências como se Deus não existisse; eles não têm, em seus momentos de solidão, nenhuma conversa íntima com Ele. Sua vida parece ser, sob certos aspectos, uma busca da verdade e do bem dentro de um domínio mais ou menos restrito, mas está tão contaminada de amor-próprio e de orgulho intelectual, que podemos perguntar-nos se tal vida poderá produzir frutos para a eternidade. Muitos artistas, escritores e políticos não ultrapassam esse nível de uma atividade intelectual puramente humana e exterior. Poderia sua alma, no fundo, viver de um bem superior a eles mesmos, viver de Deus? Tudo indica que não.
Isso mostra que a vida interior, ou vida da alma com Deus, bem merece ser considerada a única coisa necessária, já que é por meio dela que nos encaminhamos para o nosso fim último e que temos assegurada a nossa salvação, a qual não deve ser separada da santificação progressiva, já que é o próprio caminho que conduz à salvação.
Muitos parecem pensar: afinal de contas, basta-me ser salvo; não é necessário ser um santo. Evidentemente, não é necessário ser um santo que faça milagres e cuja santidade seja oficialmente reconhecida pela Igreja; mas, para ser salvo, é preciso percorrer o caminho da salvação, e este é ao mesmo tempo o caminho da santidade: no céu não haverá senão santos, quer tenham eles aí entrado imediatamente após a morte, quer tenham precisado passar pela purificação do purgatório. Ninguém entra no céu se não tiver essa santidade que consiste em estar puro de todo pecado; mesmo as faltas veniais deverão ser apagadas, e a pena devida pelo pecado deve ser paga ou remida, para que uma alma possa gozar para sempre da visão de Deus, vê-lo como Ele mesmo se vê e amá-lo como Ele mesmo se ama. Se alguma alma entrasse no céu antes da remissão total de suas faltas, não poderia ali permanecer, e ela mesma se precipitaria no purgatório para ser purificada.
A vida interior do justo que tende para Deus, e que já agora vive d’Ele, é realmente a única coisa necessária; para ser santo não é indispensável, evidentemente, possuir grande cultura intelectual ou exercer grande atividade exterior; basta viver profundamente de Deus. É o que vemos nos santos da Igreja primitiva, dentre os quais muitos eram gente simples e mesmo escravos; é o que vemos em um São Francisco, em um São Benedito-José Labré, em um Cura d’Ars e tantos outros. Todos compreenderam profundamente esta palavra do Salvador: “De que vale conquistar o mundo inteiro se viermos a perder a nossa alma?” (Mt 16,26). Se sacrificamos tantas coisas para salvar a vida do corpo, que um dia irá morrer, o que não deveríamos sacrificar para salvar a vida da alma, que permanece eternamente? O homem não deveria amar mais a sua alma do que o seu corpo? “O que dará o homem em troca de sua alma?”, acrescenta o Salvador.
Unum est necessarium, diz ainda Jesus (Lc 10,42). Uma só coisa é necessária, escutar a palavra de Deus e viver dela para salvar sua alma. Esta é a melhor parte, que não será tirada à alma fiel, ainda que ela perca todo o resto.
II – A questão da única coisa necessária em nossa época
O que acabamos de dizer é verdadeiro em todos os tempos, mas a questão da vida interior se coloca hoje de uma forma mais grave que em outras épocas menos conturbadas que a nossa.
Isso decorre do fato de que muitos homens se separaram de Deus e tentaram organizar a vida intelectual e a vida social sem Ele. Com isso, os grandes problemas que sempre preocuparam a humanidade adquiriram um aspecto novo, e por vezes trágico. Querer prescindir de Deus, causa primeira e fim último, conduz aos abismos; não somente conduz ao vazio, mas à miséria física e moral, que é pior que o vazio. E assim os grandes problemas se agravam até a exasperação, e por fim as pessoas acabarão por perceber que será necessário reconsiderar a questão religiosa, e reconsiderá-la a fundo. Será preciso posicionar-se concretamente por Deus ou contra Deus; e aqui temos o problema da vida interior em seu aspecto mais essencial: “Quem não está comigo, está contra mim”, diz o Salvador (Mt 12,30).
É assim que as grandes tendências modernas, científicas ou sociais, em meio aos conflitos que surgem entre elas, e apesar da oposição entre os desígnios dos seus representantes, convergem, queira-se ou não, para a questão fundamental das relações íntimas do homem com Deus.
Chega-se a isso depois de muitos desvios. Quando o homem não quer mais cumprir seus grandes deveres religiosos para com Aquele que o criou e que é seu fim último, como não consegue absolutamente viver sem religião, ele fabrica uma religião para si: por exemplo, faz da ciência a sua religião, ou presta culto à justiça social, ou a qualquer ideal humano que ele acaba por considerar de uma forma religiosa e até mesmo mística, para substituir o ideal superior que abandonou. Ele se desvia assim da Realidade suprema, e cria para si uma infinidade de problemas que, querendo ou não, somente poderão ser solucionados pelo retorno à questão fundamental das relações íntimas da alma com Deus.
Como já se observou muitas vezes, em nossos dias a ciência pretende ser uma religião; ao mesmo tempo, o socialismo e o comunismo pretendem ser uma moral científica, e se apresentam como um culto fanático à justiça. Dessa forma, esforçam-se por cativar as mentes e os corações.
É um fato, no momento atual, que o sábio moderno parece prestar um culto escrupuloso ao método científico, a tal ponto que, com frequência, parece preferir o método de pesquisa à verdade; e, se ele cuidasse com a mesma seriedade de sua vida interior, chegaria rapidamente à santidade. Mas essa religião da ciência está geralmente mais ordenada à apoteose do homem do que ao amor de Deus. O mesmo se deve dizer da atividade social, particularmente sob a forma de que ela se reveste no socialismo e no comunismo; ela se inspira em uma mística que pretende tender a uma transfiguração do homem, negando às vezes da forma mais absoluta os direitos de Deus.
Isso equivale a dizer que no fundo de todo grande problema se encontra o problema religioso das relações do homem com Deus. É preciso tomar posição a favor ou contra, não é mais possível manter-se indiferente. Nossa época mostra isso de forma impressionante. A crise econômica mundial atual revela o que os homens podem fazer por si mesmos quando querem prescindir de Deus.
Quando eles querem prescindir de Deus, o lado sério da vida muda de lugar. Se a religião já não é algo sério e importante, mas sim algo que nos faz rir, então é preciso buscar a seriedade em outro lugar. Ela é colocada, ou se pretende colocá-la na ciência, ou na atividade social; quer-se trabalhar religiosamente na busca da verdade científica, ou para estabelecer a justiça entre as classes e os povos. E depois de algum tempo se é obrigado a perceber que isso só levou a uma imensa confusão, e que as relações entre os indivíduos e os povos se tornam cada vez mais difíceis, senão impossíveis.
É evidente, como disseram Santo Agostinho e São Tomás
[2], que os mesmos bens materiais, ao contrário dos espirituais, não podem pertencer integralmente a várias pessoas ao mesmo tempo. A mesma casa, a mesma terra, não podem simultaneamente pertencer, em sua totalidade, a muitos homens, nem o mesmo território a muitos povos. Daí o terrível conflito de interesses que acontece quando esses bens inferiores são ardentemente considerados como fins últimos.
Ao contrário, como Santo Agostinho gosta de insistir, os mesmos bens espirituais podem pertencer simultaneamente e integralmente a todos e a cada um. Sem que um prejudique o outro, podemos possuir plenamente a mesma verdade, a mesma virtude, o mesmo Deus. Por isso Nosso Senhor nos diz:
Buscai o reino de Deus, e tudo o mais vos será dado em acréscimo (Mt 6,33). Não escutar essa lição é provocar a própria ruína.
Assim se realiza, mais uma vez, a palavra do Salmo 127,1:
Se o Senhor não edifica a casa, em vão trabalham os seus construtores; se o Senhor não guarda a cidade, em vão vigiam as sentinelas às suas portas. Se, pois, o lado sério da vida se desloca, se já não é colocado em nossos deveres para com Deus, mas sobre a atividade científica ou social do homem; se o homem busca constantemente a si mesmo ao invés de buscar a Deus, que é seu fim último, logo os fatos lhe mostram que enveredou por um caminho impossível, que conduz não somente ao vazio, mas a uma insuportável desordem e à miséria. É preciso voltar a esta palavra do Salvador:
Quem não está comigo, está contra mim, e quem não recolhe comigo, dispersa (Mt 12,20). Os fatos o confirmam.
***
Segue-se daí que a religião somente pode dar uma resposta eficaz, verdadeiramente realista, aos grandes problemas atuais, se for uma religião vivida em profundidade; não somente uma religião superficial e barata, que consistiria em algumas orações vocais e em algumas cerimônias onde a arte religiosa seria mais importante que a verdadeira piedade. Ora, não há religião profundamente vivida sem vida interior, sem essa conversa íntima e frequente de cada um de nós, não somente consigo mesmo, mas com Deus. É o que nos dizem as últimas encíclicas de Sua Santidade o Papa Pio XI. Para responder às aspirações gerais dos povos naquilo que elas têm de bom, aspirações à justiça e à caridade entre os indivíduos, as classes e os povos, o Pastor supremo escreveu as encíclicas sobre Cristo-Rei, sobre sua influência santificadora em todo o seu corpo místico, sobre a família, sobre a santidade do matrimônio cristão, sobre as questões sociais, sobre a necessidade da reparação, sobre as missões. Em todas essas encíclicas se trata do reinado de Cristo sobre toda a humanidade. De tudo isso se segue claramente que, para conservar a preeminência que ela deve ter sobre a atividade científica e sobre a atividade social, a religião, a vida interior, deve ser profunda, deve ser uma verdadeira vida de união com Deus. É uma necessidade manifesta.
Continua...
[1] Cf. SÃO TOMÁS, Ia IIae, q. 28, a.4, ad 2; III, q. 23, a. 1, ad 3.