1. A reflexão filosófica sobre a pessoa humana; 2. O método da antropologia filosófica; 3. A antropologia filosófica em relação com os outros âmbitos da filosofia e da teologia.
1. A reflexão filosófica sobre a pessoa humana
Muitos âmbitos do saber se referem à pessoa humana e podem ter como objetivo próprio elaborar uma
antropologia, isto é, em sentido etimológico, um discurso ou um tratado sobre o homem. Todavia, em cada âmbito, utiliza-se uma abordagem setorial, no sentido em que se põe em exame um dos aspectos da existência humana. Deste modo, acrescenta-se ao substantivo “antropologia” um adjetivo que delimita o alcance do estudo.
Embora a terminologia empregada nem sempre seja unívoca, há uma
antropologia cultural, que estuda os usos e costumes das sociedades humanas, estruturados no tempo como expressões de determinadas relações com os outros e com o ambiente. Já a
antropologia psicológica, pelo contrário, examina a conduta humana a partir do ponto de vista dos seus dinamismos psíquicos, para entender principalmente como se constitui a identidade psicológica e como surgem os desequilíbrios e os distúrbios da personalidade. Para citar outro exemplo, a
antropologia social analisa as dinâmicas relacionais do indivíduo, para esclarecer os elementos comuns às várias formas de sociedade. E há ainda uma
antropologia etnológica, que estuda os grupos humanos, descrevendo e comparando seus traços comuns, em conexão com suas circunstâncias geográficas, históricas ou climáticas
[1].
Como é possível notar, cada um desses saberes científicos trata de um aspecto, sempre importante, da pessoa humana, mas cada um em si mesmo não consegue compreender o homem em toda sua riqueza e complexidade. Trata-se, de fato, de análises de tipo científico-experimental (baseadas sobre a observação, sobre a verificação empírica) que não chegam a investigar a pessoa em si mesma, considerada globalmente e não apenas segundo determinado ângulo de visão.
A
antropologia filosófica, ao contrário, reflete sobre o homem para chegar a compreendê-lo na sua integralidade, colhendo os princípios fundamentais da sua existência no mundo e da sua conduta. Desta maneira, pode-se dizer que, enquanto a ciência indaga sobre o
como se manifesta o indivíduo humano em relação com o ambiente e com seus semelhantes, a filosofia se interroga sobre o
porquê do ser humano, sobre os princípios últimos do seu ser e do seu agir
[2]. A diferença entre a abordagem científica e a filosófica sobre a pessoa humana pode ser expressa também dizendo que a filosofia busca responder à pergunta “quem é a pessoa humana?”, enquanto os já mencionados saberes científicos se questionam sobre o “como age?”, “como evolui?” ou “como interage com os outros?”. Isso não quer dizer que se trata de dois setores incomunicáveis, de forma alguma: o filósofo deve levar em conta os resultados da ciência, que muitas vezes estimularão outros aprofundamentos ou reformulação de algumas teses; o cientista, em sua autonomia metodológica, buscará não perder o relacionamento com essa área do saber que constitui a
fonte de sentido.
A expressão
antropologia filosófica é relativamente recente em filosofia. Ainda que encontre suas origens remotas em I. Kant, ela se firma no século XX graças, particularmente, às obras de M. Scheler, H. Plessner e A. Gehlen. Embora esses autores deem a tal disciplina uma conotação bem precisa (de uma reflexão sobre o homem elaborada mormente sobre a base dos dados da biologia e a partir da comparação com os animais), no presente livro deseja-se apresentar uma antropologia filosófica além dessa delimitação temática, oferecendo assim uma reflexão filosófica sobre a pessoa humana, no sentido geral indicado acima
[3].
2. O método da antropologia filosófica
É preciso considerar agora qual é o método a ser seguido na reflexão filosófica sobre a pessoa humana. O
método analítico somente, com o qual se examina cada um dos fenômenos ou cada aspecto da pessoa, não é adequado; com efeito, se, por um lado, haveria a vantagem de obter definições e resultados precisos, por outro lado, o efeito alcançado seria desmontar o indivíduo em um aglomerado que dificilmente se recomporia de modo unitário. Entretanto, parece igualmente inadequado apenas o
método sintético, que estuda o indivíduo como uma totalidade já pressuposta; de fato, por um lado, conseguir-se-ia captar, de alguma maneira, o conjunto, mas, por outro lado, passar-se-ia por cima da peculiaridade das várias dimensões humanas e se negligenciaria a dinamicidade do indivíduo, que faz dele uma realidade aberta e não fechada.
Há a necessidade de adotar, pelo contrário, uma postura que se define como
sistêmica, com a qual aborda-se a pessoa humana como um “sistema” cujos elementos são intimamente coordenados: os elementos são compreendidos em correspondência com o todo e o todo requer a interação de cada um dos elementos. Desse modo, por exemplo, a linguagem humana não pode ser compreendida cabalmente se for considerada somente como uma faculdade em si mesma, mas se pode entendê-la fazendo-se referência à existência de um indivíduo racional, relacional e cultural; por outro lado, para o desenvolvimento do indivíduo inteiro é fundamental a comunicação linguística (que pode não ser verbal).
Por respeito à
postura sistêmica, no estudo filosófico da pessoa humana, entrelaçam-se dois momentos: um momento
analítico-indutivo, que busca partir dos fenômenos observáveis aos princípios, e um momento
sintético-dedutivo, que tenta aplicar os princípios aos fenômenos e coleta os novos dados que daí surgem. Como será visto, nos capítulos que se seguem, haverá a tentativa de manter presentes ambos os momentos, porém, sem esquecer uma importante peculiaridade de tal disciplina filosófica, como se tratará adiante.
A antropologia filosófica faz uma reflexão sobre a pessoa humana, mas o ser humano não é um objeto de estudo na mesma medida de um besouro ou de uma rosa ou um de fragmento de bauxita. Antes de tudo, como ocorre em parte também para esses objetos agora mencionados, há uma
pré-compreensão, ou seja, um conhecimento prévio do que eles são e do que o homem é: não se trata de uma realidade totalmente desconhecida e não é possível prescindir completamente do que já se sabe; ao máximo, pode-se retificar a própria opinião, se se perceber que está errada. Mas a diferença está principalmente no fato de que a reflexão sobre o indivíduo humano está unida à
autocompreensão, isto é, ao conhecimento que se tem de si mesmo como indivíduo humano, e à comparação com seus semelhantes. Tal experiência originária e basilar não somente não pode ser eliminada, mas servirá como uma ocasião a mais para um seguro ponto de partida rumo à análise filosófica
[4].
3. A antropologia filosófica em relação com os outros âmbitos da filosofia e com a teologia
Já foram mencionadas as relações entre a antropologia filosófica e os outros saberes sobre o homem. Todavia, é preciso afirmar algo também sobre a relação entre ela e os outros setores da filosofia. As duas matérias que possuem uma conexão mais evidente são a ética e a metafísica. A respeito da primeira, a antropologia assume o papel de fundamento, ao passo que, a respeito da segunda, é a antropologia que se fundamenta sobre ela.
Toda ética pressupõe uma antropologia filosófica, uma concepção bem precisa do ser humano. Em primeiro lugar, porque falar de ética significa considerar que o homem é livre, do contrário não teria sentido interrogar-se sobre o dever, as normas, a responsabilidade e assim por diante. Em segundo lugar, porque cada vertente da ética filosófica dá destaque a um determinado aspecto da pessoa humana: por exemplo, a ética das virtudes considera que o indivíduo seja orientado a uma vida feliz no sentido de uma vida plenamente conforme ao bem do homem, enquanto que uma ética hedonista considera que a moralidade consiste na busca do prazer e, consequentemente, privilegia a esfera afetiva e sensível da existência humana.
A relação da antropologia filosófica com a metafísica já está implícita no que foi explicado precedentemente. Quando se reflete com profundidade sobre o homem, busca-se compreender o seu ser na qualidade de base radical das manifestações humanas. Uma vez que a metafísica é a parte da filosofia que trata dos princípios últimos da realidade, disso deriva que uma antropologia filosófica não pode deixar de ser uma antropologia metafísica, pelo menos implicitamente porque terá de recorrer a conceitos metafísicos, como potência, ato, matéria, natureza, pessoa. Por exemplo, a fim de não se limitar a uma descrição do agir livre, o filósofo terá de se interrogar sobre o fundamento da liberdade, sobre sua relação com a verdade e os valores, sobre o problema da relação entre liberdade e natureza humana e assim por diante. Mesmo que, nos próximos capítulos, os acenos de tipo historiográfico serão bem limitados, pode-se dizer que, em muitos filósofos modernos e contemporâneos que se questionam seriamente sobre a pessoa humana, o vínculo entre antropologia e metafísica está presente de maneira implícita, apesar de haver neles certos destaques críticos a respeito de um determinado modo de conceber o papel da metafísica
[5].
Além da ética e da metafísica, é óbvio que há um vínculo muito evidente com a antropologia filosófica nas outras disciplinas da filosofia referentes ao agir do homem, à sua organização em sociedade, à sua abertura à transcendência, como acontece para a filosofia política e a sociologia filosófica, a filosofia da cultura e da arte, a filosofia da religião. Também em tais casos, a postura dada em cada matéria será guiada por uma determinada visão do ser humano.
Enfim, valeria ainda acenar à relação com a teologia e, em particular, com a reflexão sobre os conteúdos da Revelação cristã. O estudo da pessoa humana leva a se perguntar, dentre tantas possibilidades, se o indivíduo pode ser, em tudo, reduzido ao universo material ou nele há algo de incorpóreo, se o seu anseio de felicidade é destinado a ficar sempre insatisfeito ou se dirige a uma dimensão transcendente, se a sua morte marca o fim irrevogável de si mesmo ou o eu sobrevive à morte. São questões que a filosofia do homem não pode evitar
a priori, porque não só restringiria o campo da sua análise, mas também correria o risco de interpretar parcialmente algumas questões fundamentais. Questionando-se sobre esses e outros assuntos semelhantes, a razão pode encontrar algumas respostas rigorosas, mas enfrentará problemas cuja solução, em parte, excede o seu alcance, como os questionamentos que dizem respeito ao destino último do homem após a morte ou o drama do mal que sempre contém um núcleo insondável. Sobre tais temas, a Revelação cristã lança uma luz à qual a razão pode estender o seu campo de investigação mesmo além dos próprios limites
[6].
Por outro lado, igualmente sobre as questões especificamente filosóficas, a Revelação oferece uma ajuda válida à especulação: pode-se pensar a quanto a noção bíblica do homem como imagem e semelhança de Deus tenha tido um relevante papel para a elaboração da noção filosófica de pessoa e a compreensão da sua universal dignidade. Não se pode esquecer que cultura ocidental está de tal forma impregnada pela contribuição do cristianismo que pretender excluí-lo no âmbito da reflexão sobre o ser humano seria uma operação praticamente impossível de se realizar. Portanto, pode-se concluir que, por uma parte, a antropologia filosófica oferece uma contribuição necessária ao trabalho teológico de compreensão da verdade revelada e, por outra parte, a filosofia do homem é interpelada pelos dados da Revelação, que estimulam e potencializam a tarefa da razão.