Apresentação
Neste livro, apresentamos uma Antologia de escritos cartusianos recolhidos ao longo dos nove séculos de história da Ordem da Cartuxa, nascida em 1084. A produção literária dos cartuxos, cujo fim é ocupar-se apenas com Deus na solidão e no silêncio, sempre foi bastante escassa em comparação com outras Ordens monásticas. A razão que de contínuo os deteve de se empenharem mais no apostolado escrito foi o receio de negligenciar o seu dever essencial de estado, que é o de ocupar-se de Deus do modo mais exclusivo possível. Perigo do qual também seus Estatutos os acautela.
Dadas, portanto, essas possibilidades limitadas de nossa busca, restringimos a escolha às obras de autores cartusianos já publicadas, cujas edições fossem ainda possíveis de se encontrar e acessíveis com certa facilidade. Além disso, a coleção apresentará mais de uma novidade ao leitor, tornando acessíveis, pela primeira vez em nossa língua, textos nunca traduzidos para as línguas vernáculas, fazendo conhecidos autores praticamente ignorados fora do estreito perímetro da Ordem e dos estudiosos de espiritualidade.
Compilando esta Antologia, propusemos não apenas publicar uma coleção de textos, mas também fornecer um autêntico, embora modestíssimo, instrumento de oração. Portanto, na seleção dos fragmentos, seguimos como critério predominante, ainda que não exclusivo, o de escolher aquelas páginas que parecem ter maior valor espiritual, porque, “nasce do amor, e o amor inflama” (Estatutos da Ordem Cartusiana 5,3), e que, com maior rapidez e sem trabalhosas especulações, conduzam o olhar do leitor para o mistério de Deus. Parecemos, assim, ser fiéis a uma característica da autêntica espiritualidade monástica, que respeita a liberdade do espírito. Em vista desse fim espiritual, pensamos que seria útil reagrupar os vários textos, segundo os argumentos, e dispô-los ao longo de um “itinerário” que tivesse como ponto de chegada a contemplação, a união com Deus.
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O tema da escada espiritual ou do “itinerário” para se chegar a Deus é tradicional na literatura monástica e espiritual em geral, desde as obras de São João Clímaco e São Boaventura até as de São João da Cruz e Santa Teresa de Ávila. Também vários cartuxos, ao longo dos nove séculos de História de sua Ordem, compuseram escritos do gênero, começando com a “escada” de São Bruno (ver capítulo VI) e a de Guigo II, que abre esta Antologia. Sob este aspecto, portanto, a presente coleção está inserida na tradição literária monástica e cartusiana.
Todavia, este nosso “itinerário” apresenta algumas características próprias. Em primeiro lugar, é composto de vários autores pertencentes a períodos e nacionalidades distintas, e que, portanto, viveram sua vocação contemplativa com matizes diferentes, quer por seu carisma e temperamento pessoais, quer pelo momento histórico em que existiram. Isso confere à coleção uma variedade notável e uma pluralidade de distintos ângulos e pontos de vista ao tratar do mesmo tema, acredito que tal nota constitui uma riqueza para o leitor. Mas todos esses monges viveram a mesma vocação, todos foram atraídos pelo mesmo ideal de buscar a Deus na solidão, pela qual, ainda que diferentes, se respira o mesmo clima espiritual ao longo de todo o “itinerário”. Assim, ele permanece unitário também na diversidade.
Outra característica, que certamente não é novidade, é a de ter colocado o acento, escolhendo as “etapas” do “itinerário”, não somente nas virtudes que tradicionalmente se consideram como necessárias para a união com Deus, mas também nos meios objetivos (Maria, Jesus Cristo, sua Paixão, seu Coração, a Eucaristia) que Deus, em seu desígnio de salvação, colocou à nossa disposição para alcançá-lo. Isso não significa que a contemplação seja uma coisa fácil, quase “automática”, e que as virtudes não sejam importantes, mas, sim, que essa escolha quer enfatizar o seguinte: muito além do nosso esforço, a união com Deus é puro dom da sua misericórdia.
Obviamente, esta visão da jornada contemplativa não pretende, de forma alguma, ser exclusiva, porque cada alma tem o seu próprio caminho para chegar a Deus; nem tampouco entende, de modo algum, ser a expressão da espiritualidade da Cartuxa, cuja característica é a de não ter uma espiritualidade própria. Pelo contrário, se for embaraçosa, pode ser, perfeitamente, deixada de lado sem que os referidos textos nada sofram com isso. Ela quer ser apenas um indicativo, uma das muitas possibilidades para se chegar à finalidade de cada vida cristã: contemplar a Deus “face a face” (1Cor 13,12).
Finalmente, entendemos ser útil unir à verdadeira e própria Antologia uma série de ricos esboços biográficos dos autores, que ajude o leitor a conhecer o ambiente espiritual e histórico do qual provêm os textos citados e servir quase como uma breve síntese histórica da longa vida da Ordem Cartusiana.
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Serve como introdução a “Scala claustrarum” ou “Scala Paradisi”, de Guigo II, um escrito que teve a honra de ser atribuído a São Bernardo ou até mesmo a Santo Agostinho. Essa obra apresenta, de forma clara e sintética, os quatro degraus espirituais que “elevam a alma contemplativa da terra ao céu”.
Começa, então, o verdadeiro e próprio “itinerário”. O princípio da contemplação é o próprio Deus, porque provimos d’Ele, à sua caridade devemos tudo (capítulo I) e a Ele devemos retornar, convertendo-nos ao seu amor com o dom do nosso coração (II). Entretanto, a esse movimento de doação se opõe o pecado que feriu profundamente a nossa alma e por essa razão buscamos a alegria na posse das criaturas: esse é o principal obstáculo à contemplação (III).
Para superá-lo, precisamos nos colocar em condições de liberdade interior de nós mesmos e das coisas; quer dizer, é necessária uma purificação do coração (IV) que introduza a alma numa solidão e silêncio profundos (V) cujo fruto é a humildade e o abandono à ação de Deus (VI).
Chegados a este ponto, estamos em condições de usar os meios que o próprio Deus nos dá para podermos “voltar” a Ele. Antes de tudo, da oração que brota da humildade (VII) e faz o Espírito agir em nós, “porque ele intercede pelos fiéis segundo os desígnios de Deus” (Rm 8,27). Com sua ação, o Espírito nos conforma à imagem do Filho. Instrumento privilegiado para essa transformação é Maria (VIII), a Serva do Espírito, porque a sua vocação fundamental é gerar, por obra do Espírito Santo, os membros do Verbo encarnado, que é o único caminho pelo qual se vai ao Pai (IX). Contudo, nossa união com Jesus não deve se limitar apenas à imitação, mas precisa tornar-se uma comunhão de vida, e isso se realiza nos sacramentos, de modo especialíssimo na Eucaristia (X).
Na Eucaristia, memorial da Páscoa de Cristo, somos assumidos pelo Amor, e nos tornamos capazes de amar, atingindo, assim, o fim, ou seja, a união na caridade com os irmãos (XI) e com Deus (XII) porque “Deus é amor; quem permanece no amor permanece em Deus e Deus nele” (1Jo 4,16).
Naturalmente, esse “itinerário” se desenvolve com a fragmentação típica de uma Antologia: nem sempre o discurso continua rigorosamente de um autor para outro. Organizar os fragmentos em uma sequência tal que favorecesse a continuidade do desenvolvimento do assunto teria sido uma construção fictícia que violaria os textos escolhidos. Desse modo, preferimos distribuir os autores em ordem cronológica pelo conteúdo dos diferentes parágrafos e capítulos, arriscando-nos a uma certa desorganização. Mas isso parece mais uma vantagem do que um obstáculo, porque estimula o leitor a um trabalho pessoal de confrontação e reflexão e lhe oferece, em curto espaço de tempo, uma rápida afinidade histórica do tema tratado.
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Este livro se dirige a todas as categorias de leitores: sacerdotes, religiosos e leigos, porque o caminho da contemplação está aberto a todos e “geralmente recebem também este dom aqueles cristãos que, embora mostrem tendência a ele em desejo, estão ligados, por seu estado de vida, à atividade terrena” (São Gregório Magno). Este não é um “jardim fechado”, reservado a poucos iniciados, mas, sim, o destino de cada homem que deve e pode tender à união com Deus, usando dos meios que Ele mesmo dispôs para nós em Jesus Cristo.
Apesar de seus limites, lacunas e imperfeições, esperamos que esta Antologia, dando a conhecer autores demasiadamente pouco conhecidos, sirva de estímulo a muitos para alcançar, com maior amplitude a abundante fonte de seus escritos. Acima de tudo, pensamos que não será completamente inútil a nossa fadiga se estas páginas puderem ajudar alguma alma, ainda que apenas uma, a crescer na caridade que consiste na verdadeira contemplação de Deus, pois “vê a Trindade quem vê a caridade” (Santo Agostinho).
Introdução
Guigo II[1] († 1192/93)
Carta sobre a vida contemplativa[2]
Dedicatória
I. Guigo ao Irmão Gervásio
Ao seu dileto irmão Gervásio, o Ir. Guigo: o Senhor seja o seu deleite.
Amar-te, irmão, é para mim uma dívida, pois foste tu que, primeiro, começaste a me amar. E sou obrigado a te responder, porque, antes, tua carta me convida a escrever-te.
Proponho-me, assim, a te transmitir certas coisas que pensei sobre o exercício espiritual dos monges, a fim de que possas julgar e corrigir meus pensamentos a propósito de um assunto que tu melhor conheces por experiência, do que eu pela reflexão.
É justo que eu te ofereça, em primeira mão, as primícias do meu trabalho. Pois convém que colhas os primeiros frutos da recente plantação que, em louvável furto, subtraíste à servidão do Faraó e à mole servidão, e colocaste no exército em ordem de batalha, enxertando sabiamente na oliveira o ramo habilmente cortado da oliveira selvagem (cf. Sl 144,2; Ex 13,14; Ct 6,3.9; Rm 11,17.24).
A escada espiritual e a descrição de seus degraus
II. Os quatro degraus
Um dia, ocupado no trabalho manual, comecei a pensar no exercício espiritual do homem. E eis que, de repente, enquanto refletia, se apresentaram a meu espírito quatro degraus espirituais: a leitura, a meditação, a oração e a contemplação.
Esta é a escada dos monges, que os eleva da terra ao céu. Embora dividida em poucos degraus, ela é de imenso e incrível comprimento, com a ponta inferior apoiada na terra, enquanto a superior penetra as nuvens e perscruta os segredos do céu (cf. Gn 28,12).
Estes degraus, assim como são diversos em nome e em número, também se distinguem pela ordem e o valor.
Se alguém examina diligentemente suas propriedades e funções, o que produz cada um deles para nós, e como diferem e se hierarquizam entre si, achará pequeno e fácil, por sua utilidade e doçura, todo o trabalho e esforço que lhes dedicar.
A leitura é o estudo assíduo das Escrituras, feito com aplicação do espírito.
A meditação é uma ação deliberada da mente, a investigar com a ajuda da própria razão o conhecimento de uma verdade oculta.
A oração é uma religiosa aplicação do coração a Deus, para afastar os males ou obter o bem. A contemplação é uma certa elevação da alma em Deus, suspensa acima dela mesma, e degustando as alegrias da eterna doçura.
Notada, assim, a descrição dos quatro degraus, resta-nos ver a função de cada um em relação a nós.
III. Qual a função de cada um dos citados degraus
A leitura procura a doçura da vida bem-aventurada, a meditação a encontra, a oração a pede, a contemplação a experimenta. Por isso o Senhor mesmo diz: “Buscai e encontrareis, chamai e se vos abrirá” (Mt 7,7). Buscai lendo e encontrareis meditando, chamai orando e abrir-se-vos-á contemplando.
[3]
A leitura, de certo modo, leva à boca o alimento sólido, a meditação o mastiga e tritura, a oração obtém o sabor, a contemplação é a própria doçura que regala e refaz.
A leitura está na casca, a meditação na substância, a oração na petição do desejo, a contemplação no gozo da doçura obtida. Para que se possa ver isto de modo mais expressivo, suponhamos um exemplo entre muitos.
IV. A função da leitura
À leitura, eu escuto: “Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus” (Mt 5,8).
Eis uma palavra curta, mas cheia de suaves sentidos para o repasto da alma. Ela oferece como que um cacho de uva. A alma, depois de o examinar com cuidado, diz em si mesma: “Pode haver aqui algum bem, voltarei ao meu coração e tentarei, se possível, entender e encontrar esta pureza. Pois é preciosa e desejável tal coisa, cujos possuidores são ditos bem-aventurados, e à qual se promete a visão de Deus, que é a vida eterna, e que é louvada por tantos testemunhos da Sagrada Escritura”.
(...)
[1] Para esclarecimento, é bom notar que Guigo II foi o nono sucessor de São Bruno como prior do deserto de
Chartreuse, de 1174 a 1180. Faleceu em 1192/93 — N.T.
[2] Valemo-nos, com a devida autorização, de uma tradução elaborada por Dom Timóteo Amoroso Anastácio, OSB — N.T.
[3] São João da Cruz, nos seus
Ditos de amor e luz (n. 157), cita estas palavras dizendo: “Buscad leyendo y hallaréis meditando; llamad orando y abriros han contemplando”. Atualmente, o
Catecismo da Igreja Católica (n. 2654) diz: “Os Padres espirituais, parafraseando Mt 7,7, resumem assim as disposições do coração, alimentado pela Palavra de Deus na oração: ‘Procurai na leitura e achareis na meditação; batei à porta na oração e ela abrir-se-vos-á na contemplação’ (Guigo, O Cartuxo.
Scala claustralium, 2,2: PL 184,476)” — N.T.