Num artigo relativamente recente, publicado na Folha de S. Paulo (10/05/17), João Pereira Coutinho levantava uma questão crucial: “Que lugar há para um cristão conservador numa América crescentemente anticristã e pós-cristã?”. E o articulista comentava um livro escrito por Rod Dreher
[1] que, olhando para os diferentes campos da vida social, concluía que em todos eles os cristãos fracassaram.
Para Dreher, continuava Coutinho, estava claro que “o secularismo moderno triunfou e que, portanto, qualquer participação no grande palco social e político é um desperdício de tempo e energia. Os cristãos falam uma linguagem que o ‘espírito do tempo’ não entende ou, pior, ridiculariza”. Por isso, concluía Dreher, que o melhor seria não fazer nada e retirar-se, na medida do possível, para poder viver cristãmente em pequenas comunidades, como antigamente fizera São Bento.
Um mês e meio mais tarde da publicação do seu artigo na Folha, o mesmo Coutinho lembrava de Tim Farron, o líder dos Liberais Democratas no Reino Unido, cristão evangélico, que teve de renunciar ao cargo porque tinha visões conservadoras sobre certos temas sociais, como o homossexualismo e o aborto.
Coutinho considerava que o liberalismo contemporâneo estava adotando posições intolerantes, defendendo verdades absolutas e exigindo que todos a aceitassem como verdades únicas. Para a maioria dos políticos e deputados do Reino Unido, tornava-se absolutamente necessário e prioritário que o líder dos liberais democratas britânicos “aplaudisse” as leis que liberavam esses comportamentos e, mais, renunciasse às suas ideias pessoais sobre esses temas.
Para Coutinho, o liberalismo moderno abandonou a sua posição original de separação dos âmbitos da política e da religião, e “se transformou numa forma de religião. E de inquisição: quem discorda da cartilha é um herege que merece a fogueira das vaidades progressistas”.
O problema, como conclui o articulista da Folha, não é apenas o grau de intolerância política que esse procedimento revela, mas é ainda mais vasto e profundo. Estamos assistindo à destruição “da consciência individual em nome ‘do bem coletivo’” e, dessa forma, “destruímos a última barreira contra o poder arbitrário”.
Por outro lado, uns 50 anos antes, Hannah Arendt, que teve a oportunidade de acompanhar ao vivo o julgamento do nazista Eichmann – responsável pelo envio de milhares de judeus para as câmaras de gás – questionava-se, perplexa, sobre como teria sido possível que a nossa sociedade ocidental, que estaria num nível de civilização nunca antes atingido na História, pudesse ter produzido pessoas como Adolf Eichmann, completamente normais e comuns e que, ao mesmo tempo, não tivesse nenhum remorso de consciência diante dos crimes atrozes que cometeu.
Parece-me que esses dois pensadores ilustram bem o processo histórico sobre o qual pretendo tratar neste livro. A minha hipótese de trabalho, partindo de uma ideia desenvolvida pelo historiador italiano Paolo Prodi
[2], consiste na afirmação de que o que entendemos até hoje por “cultura ocidental”, referindo-nos ao conjunto de instituições e práticas políticas, religiosas, sociais e econômicas construídas ao longo do processo histórico europeu e americano, está fortemente ancorado na tensão dialética entre o público e o privado, a consciência privada e a lei pública (eclesiástica ou civil), a ética e a política. Foi precisamente na manutenção desse equilíbrio tenso entre esses âmbitos, umas vezes de forma harmônica e outras de forma bastante conturbada, que foi construída a ideia e a realidade do que conhecemos como “civilização ocidental”. Qualquer tentativa – que houve, e muitas, tanto por parte da Igreja como do Estado - de supressão ou eliminação dessa tensão, bem como a submissão de um âmbito ao outro, sempre colocou em risco a própria civilização europeia e americana, primeiro, provocando a alienação da consciência individual para, depois, impor intolerantemente uma única forma de pensar e de agir na vida em sociedade, denominando-a pretensiosamente de “forma republicana” ou “civilizada” e, muitas outras vezes “progressista”.
Nesse sentido, procurarei mapear as trajetórias que foram sendo realizadas por pensadores e intelectuais, dentro dos seus respectivos contextos históricos, para poder entender melhor o processo de secularização no Ocidente, a partir da tensão dialética entre o público e o privado e principalmente como se chegou ao entendimento atual do termo (a supressão do discurso e da participação de pessoas religiosas na vida pública), quais foram as ideias e os princípios enfrentados e como foi sendo configurada essa específica forma de entender a laicidade ou a secularidade do Estado.
O termo “secularização” tem recebido ao longo desse processo histórico diversos sentidos. Na origem, utilizava-se para significar a volta de um religioso à vida civil e secular
[3]. Sendo a característica principal da vida religiosa o “afastamento do mundo” (
contemptus mundi), quando a pessoa desistia da “vida religiosa” e pretendia voltar à vida civil, era preciso, de acordo com as normas da Igreja, um “processo de secularização”.
Embora tivesse começado a discussão já na Idade Média, com as lutas e enfrentamentos entre o “poder temporal”, do Imperador do Sacro Império Romano Germânico, e o “poder espiritual” do Papa, é a partir da Idade Moderna, e, principalmente, com a descoberta da América e as suas implicações jurídicas e morais, que o termo passou a significar a separação das esferas ou dos poderes temporais e espirituais.
Foi sendo entendido que cada uma das esferas representavam um campo e um espaço autônomos de poder, e de exercício do mesmo; contudo, não eram vistos como opostos ou contrários, mas, sim, como complementares. Esse foi, talvez, o principal legado deixado por Francisco de Vitória, teólogo dominicano e professor da Escola de Salamanca, no século XVI.
Com Hobbes e Locke, a partir do século XVII e com os seus Tratados sobre Política, diante da instabilidade religiosa e política da Inglaterra, passou-se a uma separação drástica entre a esfera interna e a esfera externa, de tal maneira que se poderia, a partir de então, pensar de uma forma e agir de outra completamente diferente.
A partir do final do século XVIII e, principalmente, a partir do triunfo da Revolução francesa, o termo passou a significar a separação entre a Igreja e o Estado e, como consequência dos processos revolucionários, das críticas e dos enfrentamentos entre o mundo eclesiástico e o mundo civil, foi sendo entendido que essa separação colocava um abismo, quando não um enfrentamento, entre os valores defendidos pela Igreja e pelo Estado.
É também a partir desse momento, aproximadamente, que o conceito de “secularismo” passou a ter um significado mais amplo, englobando também aquela separação defendida pelos filósofos ingleses, referindo-se não apenas à separação entre a Igreja e o Estado, mas também à separação entre a esfera privada e a esfera pública. Ou seja, passou a ser entendido que tudo o que fosse “religioso” (condutas, práticas, ideias, princípios ou valores) deveria ser restrito ao âmbito da consciência individual e da vida privada, enquanto que tudo o que fosse “público” e “político” não teria de ter nenhuma vinculação com a esfera privada nem religiosa.
Mais recentemente, a partir da segunda metade do século XX, o termo “secularismo” passou a ter um significado mais amplo e difuso ainda, querendo significar não apenas a separação entre as duas Instituições, nem a separação de condutas e ideias, mas principalmente a exclusão da arena pública já não de pessoas, mas de argumentos e de ideias que, ou bem pelo seu conteúdo, ou bem por serem de determinadas pessoas, eram considerados como “restritos à esfera privada e religiosa” e, portanto, inaptos para serem discutidos na vida política, econômica ou social.
É inegável que o Iluminismo trouxe uma série de ganhos sociais, políticos e econômicos novos e extremamente necessários, contudo, e como em tudo o que é histórico e humano, teve uma série de efeitos colaterais, que também são inegáveis e que, desde meados ou finais do século XX, estão sendo percebidos mais claramente. É por isso que se fala em “pós-modernidade”, “crise da razão” e “fim das ideologias”, contudo, um desses efeitos colaterais perversos foi precisamente servir de base e fundamento para o triunfo das ideologias no século XIX.
E, uma vez que a sociedade acabou se instalando na ideologia, de qualquer sinal, de direita ou de esquerda, política ou religiosa, o resultado foi precisamente a anulação da responsabilidade pessoal e a alienação da consciência. E, como um efeito colateral, a imposição, de forma intolerante, de um único modo de pensar, normalmente o daquele que estiver no Poder, tanto político quanto religioso. Nega-se não propriamente o pensamento religioso, mas o cidadão que pretenda pautar a sua vida dentro de alguma denominação religiosa. Nega-se, na esfera pública, a capacidade de racionalidade de qualquer pessoa crente ou religiosa. Em termos práticos, essas pessoas são vistas e tratadas como cidadãos de segunda categoria.
Atualmente, quando alguém se refere ao “secularismo”, à “secularidade” ou “laicidade” do Estado não está querendo dizer que as duas instituições devam estar separadas (coisa que já aconteceu historicamente e sobre o qual há um consenso, até porque o começo desse processo foi iniciado dentro da Igreja e por teólogos católicos), nem está se referindo a que cada uma das Instituições detém um poder autônomo e tem um campo próprio de competências, mas normalmente está querendo significar esta última acepção do termo a que nos referimos: a ideia de que para atuar, opinar, votar, decidir ou deliberar na vida pública está excluído todo aquele que tiver algum tipo de crença religiosa, pelo simples fato de que se torna suspeito de parcialidade.
Entende-se, de maneira unilateral e quase sempre sem possibilidade de discutir ou dialogar sobre isso, que qualquer pessoa que seja crente, pelo simples fato de sê-lo, é incapaz de argumentar racionalmente, porque se supõe que, quando pensa, discute ou delibera sobre questões públicas, sempre o fará de forma “religiosa” e, portanto, não conseguirá separar o público da política do privado da religião.
Charles Taylor, na introdução do seu livro
[4], tentando explicar os diferentes sentidos que tem o termo “secular” ou “secularismo”, identifica pelo menos três. O primeiro diria respeito às instituições e às práticas comuns, no sentido de que a sociedade teria passado de uma certa fé ou adesão a Deus ou a alguma noção de realidade última para uma completa desconexão realizada pelo Estado moderno. Como ele mesmo diz, “nas nossas sociedades “seculares” é possível participar plenamente em política sem encontrar-se nunca com Deus”
[5]. Num segundo sentido,
Taylor considera que uma sociedade é hoje em dia secular porque, ao separar a Igreja do Estado, as referências a Deus fecham-se no entorno privado e, nesse sentido, o espaço público tornou-se secular
[6]. E, por último, há ainda um terceiro sentido relacionado com os outros dois e que diz respeito “à passagem de uma sociedade em que a fé em Deus era inquestionável e, inclusive, estava longe de ser problemática, para uma sociedade na qual se considera que essa fé é uma opção entre muitas outras e, com frequência, não a mais fácil de adotar”
[7]. É nesse último sentido que Charles Taylor vai desenvolver, principalmente, o seu excelente trabalho sobre a “era secular”.
Como disse, o objetivo deste livro, partindo do mesmo processo de secularização, é outro. Procurarei focar-me precisamente na tensão dialética entre os âmbitos externos e internos, bem como nas tentativas de eliminação dessa tensão. E, especificamente, procurarei mostrar como essas tentativas estão relacionadas com a alienação da consciência e o aumento da intolerância por parte de grupos, políticos, religiosos ou, em geral, defensores de interesses específicos, bem como, por vezes, por parte das próprias instituições envolvidas neste processo histórico, o Estado moderno e as Igrejas cristãs. Esse será o pano de fundo que acompanha cada um dos capítulos. A questão central, embora não seja feita em cada capítulo, será: como é que chegamos a este ponto? Como é que tendo conseguido resultados positivos tão grandes, tenhamos também chegado a uns efeitos colaterais tão perversos? Espero poder dar conta dessas questões ao longo de todo o livro.