Prefácio
Nunca me perguntei de propósito o que signifique preparar o “prefácio” de um livro, ainda que tenha acontecido de fazê-lo mais de uma vez; talvez eu tenha me convencido a fazê-lo simplesmente para agradar ao autor ou ao editor ou a ambos – ainda que alguém se alegraria em estimular, com o prefácio, a ler um livro que vale a pena. Mas quando eu disse sim ao antigo aluno e caro amigo Pe. Francesco Chiaramello, diretor da Editora Esperienze, que me pedia que apresentasse o livro do Pe. A. Trapè sobre Santo Agostinho – mesmo valendo aqui o motivo de agradar ao editor e, espero, um pouco ao autor –, foi principalmente para que eu me obrigasse a ler este volume; e para poder lê-lo o mais rapidamente possível, em primeira mão, isto é, nas provas de prelo, sobre as quais me lancei avidamente assim que chegaram a mim, aproveitando das agostinianas “gotas de tempo” de que pode dispor um bispo para as leituras que o aprazem.
Encontrei no livro o que eu esperava do Pe. Agostino Trapè. Desde que nos encontramos pela primeira vez, em 1954 – e a ocasião foi exatamente Santo Agostinho, quando participamos do Congresso realizado em Paris no XVI Centenário de seu nascimento –, segui com atenção sua férvida atividade de estudioso, centrada sempre em Santo Agostinho, um pouco reduzida nos anos em que foi Prior Geral de sua Ordem, mas logo retomada com novo vigor, na pesquisa, na docência e na atividade editorial e de promoção dos estudos agostinianos. No presente volume estão recolhidos os frutos maduros de uma fadiga perseguida por decênios, com agudeza e com perseverança alimentada pelo amor por Santo Agostinho e pelo desejo de que o pensamento e a alma do Hiponense continuem a alimentar a fé, a esperança e o amor dos irmãos que Deus lhe ordenou que servisse (Conf. 10,4,6), e que ele serve “com o coração e a voz e os escritos” (Conf. 9,13,37).
A quem queira conhecer de perto Santo Agostinho e dar-se conta de sua perene atualidade, eu não saberia aconselhar um instrumento mais idôneo do que este livro. Melhor ainda se este o estimular a um passo ulterior, que é sempre o melhor a se fazer para conhecer um escritor: a leitura direta das obras do santo, leitura frequentemente não fácil, para a qual o leitor encontrará aqui uma validíssima ajuda.
Muitas coisas poderiam ser ditas deste livro. Mas sublinharei só uma característica, que considero essencial: este livro é resultado de uma longa familiaridade com Agostinho. Uma familiaridade que permitiu ao autor colher dele os vários aspectos, com uma análise meticulosa, e chegar a uma visão global, que dá de Agostinho o retrato verdadeiro e autêntico – mesmo admitindo que aspectos específicos de seu pensamento e de sua personalidade sejam suscetíveis de ulterior iluminação.
Esta visão global objetivamente fundada é particularmente difícil para um homem que apresenta aspectos tão múltiplos e, às vezes, aparentemente contrastantes. Muitos estudiosos, mesmo ilustres, não escaparam do perigo de interpretações parciais que apresentaram um Agostinho – e sobretudo um “agostinismo” – conforme a moda ou sem originalidade. Pe. Trapè bem se deu conta disso. Tem presente a copiosíssima bibliografia agostiniana, com suas aquisições e suas lacunas. Mas ele prefere não colocá-la à vista. Raramente cita algum estudioso para criticá-lo em pontos que julga de alguma importância. Às vezes, ainda que ele não cite, o leitor familiarizado com as obras ou assuntos descobre facilmente o alvo de uma crítica expressa de modo positivo, com um esclarecimento que mira a retificar afirmações imprecisas ou incompletas. Até mesmo quem escreve este prefácio reconhece-se em algumas dessas especificações, e, se lhe acontecesse de voltar a coisas escritas há vinte anos, as consideraria com reconhecimento. Quanto a Agostinho, o autor o tem sempre sob os olhos, refere-lhe muitas passagens, não só por senso de honestidade de quem quer documentar o que assevera, mas pelo prazer que experimenta nisso, prazer que se transmitirá, espero, ao leitor atento e sensível.
Mas há algo que vai além do prazer: a lição que Agostinho dá também ao homem do vigésimo [primeiro] século, sedento como o próprio Agostinho, ainda que não queira ou não saiba confessá-lo, de verdade e de amor, da Verdade e do Amor.
Turim, 26 de janeiro de 1976.
Michele Card. Pellegrino, arcebispo
Introdução
Tendo escrito um livro, sinto a obrigação de explicar sua intenção e seu método. O benévolo leitor será logo satisfeito.
Quis dar uma ideia sintética de Agostinho, homem, pastor e místico. Esses são, de fato, três aspectos principais que constituem sua rica personalidade: um homem nobre e sincero, que contesta altivamente a fé católica e a reencontra depois de um longo tormento interior, e, tendo-a reencontrado, quer estar, a custo de não fáceis renúncias, entre aqueles que, por amor da sabedoria, que é Cristo, abandonam toda esperança terrena; um pastor que teme o ministério pastoral e o aceita contra sua própria vontade, mas que o exerce, depois, com dedicação absoluta; um místico que aos exercícios ascéticos acrescenta a ascese da contemplação, e às vibrações do amor as intuições luminosas da verdade.
Mas outros aspectos da personalidade agostiniana, infelizmente, em parte ou absolutamente não foram tocados. De Agostinho pensador e escritor foi dito pouco, apenas o que era, ou pareceu, necessário para explicar sua ação pastoral e sua vida interior. Não há, exceto por algum aceno cá e lá, um confronto entre sua doutrina e a da patrística precedente, ou entre sua doutrina e as das correntes posteriores. Em todo caso, creio que a apresentação, mesmo assim reduzida por evidentes razões de espaço, não seja inútil. Servirá, pelo menos, para testemunhar como se possa ou se deva entender, depois de tantos progressos nos estudos, a complexa e admirada figura do Bispo de Hipona.
Tendo ele exercido uma influência profunda e contínua no mundo ocidental, esteve sujeito a interpretações diversas, sugeridas, de século a século, por problemas e por interpretações do momento: escolástica, reforma, jansenismo, iluminismo, modernismo.
Ainda hoje se fazem dele interpretações diversas, e nem sempre favoráveis. Entre essas, propus oportunamente aquela que muitos anos de estudo das obras de Agostinho e das obras sobre Agostinho – mais daquelas que dessas, na verdade – me convenceram que seja a única verdadeira, ou a mais provável. Eu o fiz para a evolução interior, buscando esclarecer seus momentos essenciais, obscurecidos muitas vezes por uma crítica nem sempre serena; para as muitas e longas controvérsias, indicando seu argumento em discussão e as soluções aportadas – diferentes estas últimas, não raramente, de como são frequentemente prospectadas –; e para as ascensões místicas, que são um dos aspectos mais importantes e menos considerados de Agostinho, escritor e pastor.
Lamento somente não ter podido discutir as opiniões de outros, nem demonstrar mais longamente as minhas. Tive de limitar-me à citação de alguns textos característicos, reenviando, para tudo mais, o leitor às fontes; às quais me ative e que citei com certa abundância. Essas são muitas, e me empenhei em não esquecer nenhuma delas. Considero que o erro mais grave que se possa cometer ao estudar um autor tão complexo e que fez tantos progressos na ciência da fé, como Agostinho, seja o de parar em alguns textos, preterindo outros; ou o de renunciar à tarefa de colocar de acordo, o quanto for possível – e o é quase sempre –, aqueles aparentemente contrários.
Quem escreve está convencido de que o verdadeiro Agostinho – frequentemente tão diferente de certos agostinismos de moda – possa ajudar-nos ainda, e muito, a conhecer a nós mesmos e a Deus, a compreender nossos problemas, não diferentes dos dele, a iluminá-los, a resolvê-los. Para quem tem a fé cristã, ele oferece, do alto de sua síntese grandiosa, a alegria de contemplar sua profundidade, sua continuidade, sua eficácia; para quem não a tem, sabe dizer palavras humanas capazes de revelar o homem ao homem, mostrando sua natural dignidade, suas aspirações, suas esperanças. Desde que seja apresentado como é na realidade, com suas luzes e suas sombras, sem supraestruturas deformantes, sem interpretações parciais ou gratuitas, sem confusões indevidas.
Para esse escopo, na intenção do autor, gostariam de servir, em certa medida, as páginas seguintes.
Roma, 24 de abril de 1975.
Festa da conversão de Santo Agostinho.
Agostino Trapè, osa