1. “Saber” a vida – Entre tantos problemas que agitam a existência e se agitam em torno dela, haverá algum que prenda a atenção de forma tão imperiosa e urgente quanto o da própria vida? Como o título desta obra indica, esse é o problema sobre o qual se debruça, aqui, uma alma desejosa de saber o que ela é e o que deve ser. Ela quer saber
a vida: quer saber, não o que é a vida em geral, como numa especulação de curiosidade filosófica, nem tampouco o que é a vida social, por uma preocupação de interesse público; mas sim, com um olhar de sinceridade prática e pessoal, quer saber o que é a sua própria vida, aquela que lhe cabe viver e que só viverá uma vez. É por isso que, no segredo de suas meditações, ela fala sobretudo consigo mesma sob o olhar de Deus, a quem se compraz em interrogar. E isso explica a forma adotada e o objetivo visado por este livro.
Já que todos precisam viver sua vida, não é sensato aprender a vivê-la de forma integral e plena? Deve ser intolerável à alma não ser senão um destroço de si mesma, e viver como um farrapo daquilo que ela poderia ser. Afinal, em todos os seus interesses e objetivos, o homem sempre procura aquilo que lhe parece melhor e mais perfeito; não há nenhum tipo de mercado ou de mercadoria no qual cada um não se esforce por obter, tanto quanto possível, a melhor qualidade. Por que, então, quando se trata da própria vida, resignar-se a um insignificante “tanto faz”? Não, não! Se há alguma coisa que tenha valor, essa coisa é a vida, pois, afinal, tudo o mais só vale por causa dela.
2. Aquela que não morre – “De que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro, se vier a perder a sua alma? E que poderá ele dar em troca de sua alma?” (Mc 8,36s). “De que serve um cofre cheio, se a consciência está vazia?”
[1] A alma busca, portanto, “abastecer” sua consciência, convencida de que seu problema vital reside essencialmente nessa plenitude. Eis por que seu objeto de estudo não é a vida exterior, que se agita em tantas ilusões, mas a vida interior, sem a qual a existência humana não é completa. Quando as preocupações exteriores tiverem consumido, em mil circuitos de vaidade, as energias vitais, e descobrirmos ter esgotado nossas reservas inutilmente, que decepção! Somos então feitos para o vazio? Não o somos, ao contrário, para a plenitude? A vida anseia, por instinto, pela eternidade; nada nos repugna tanto quanto a decadência. Ora, a vida do corpo, se tem seus períodos de crescimento, também tem, fatalmente, suas horas de “descida” e seu momento de extinção. Esse terrível fato, contra o qual lutam em vão os desejos e os esforços, bem diz que não será por este lado que poderemos satisfazer nossas mais íntimas aspirações.
3. Através das provações – Temos demasiada necessidade de imortalidade, para que nosso destino esteja naquilo que fenece. E, uma vez que a vida exterior termina irrevogavelmente em um abismo, os anseios que, em nós, entoam seu refrão de eternidade, indicam que somos portadores de um germe de infinito. Como esse germe não encontra, nas condições exteriores, nada que seja estável e imperecível, isso nos conduz, pela própria força de nossos mais profundos instintos vitais, a buscar no interior a sua expansão. E, aqui, já não há perigo de nos enganarmos. Ouçam o apóstolo São Paulo: “O Deus que disse: ‘Do meio das trevas brilhe a luz!’, foi ele mesmo quem reluziu em nossos corações, para fazer brilhar o conhecimento da glória de Deus, que resplandece na face de Cristo. Trazemos, porém, este tesouro em vasos de barro, para que fique manifesto que este incomparável poder vem de Deus, e não de nós. Somos atribulados por todos os lados, mas não esmagados; postos em extrema dificuldade, mas não desesperados; perseguidos, mas não abandonados; abatidos, mas não aniquilados; trazemos sempre em nosso corpo a agonia de Jesus, a fim de que a vida de Jesus seja também manifestada em nosso corpo” (2Cor 4,6-10).
4. Que se renova a cada dia – “Assim a morte trabalha em nós, e a vida em vós. Animados pelo mesmo espírito de fé a respeito do qual está escrito: ‘Acreditei, por isto falei, cremos também nós, e por isto falamos’. Pois sabemos que aquele que ressuscitou o Senhor Jesus ressuscitará também a nós com Jesus e nos colocará ao lado dele, juntamente convosco. E tudo isso se realiza em vosso favor, para que a graça, multiplicando-se entre muitos, faça transbordar a ação de graças para a glória de Deus. É por isso que não nos deixamos abater. Pelo contrário, embora em nós o homem exterior vá caminhando para a sua ruína, o homem interior se renova dia-a-dia. Pois nossas tribulações do momento presente são leves em relação ao peso eterno de glória que elas nos preparam além de toda medida. Não olhamos para as coisas que se veem, mas para as que não se veem; pois o que se vê é transitório, mas o que não se vê é eterno” (2Cor 4,12-18).
5. A tenda provisória e a morada definitiva – “Sabemos, com efeito, que, se a tenda provisória de nossa morada terrestre for destruída, teremos no céu uma morada eterna, solidamente edificada por Deus, não feita por mãos humanas. Tanto assim, que gememos pelo desejo ardente de revestir, por cima da nossa morada terrestre, a nossa habitação celeste – o que será possível se formos encontrados vestidos, e não nus. Pois nós, que estamos nesta tenda, gememos acabrunhados, porque não queremos ser despojados de nossa veste, mas revestir a outra por cima desta, a fim de que o que é mortal seja absorvido pela vida. E quem nos dispôs a isto foi Deus, que nos deu o penhor do Espírito. Por conseguinte, estamos sempre confiantes, sabendo que, enquanto habitamos neste corpo, estamos fora de nosso verdadeiro lar e longe do Senhor, pois caminhamos pela fé e não pela visão... Sim, estamos cheios de confiança, e preferimos deixar a mansão deste corpo para ir morar junto do Senhor. Por isto também esforçamo-nos por agradar-lhe, quer permaneçamos em nossa mansão, quer a deixemos. Porque todos nós teremos de comparecer manifestamente perante o tribunal de Cristo, a fim de que cada um receba a retribuição do que tiver feito durante a sua vida no corpo, seja para o bem, seja para o mal.” (2Cor 5,1-10).
Simplificada e reconduzida ao seu fundamento
6. A unidade – Eis portanto a verdadeira vida, plena de imortalidade (cf. Sb 3,4), capaz de desenvolver-se em meio a tudo e apesar de tudo, e de desabrochar em destinos imperecíveis. É a vida do espírito na carne; é chamada espiritual porque se serve de todas as coisas, mesmo as corporais, para a exaltação da alma em Deus; é chamada interior porque todas as suas ações, mesmo as exteriores, visam o proveito interior. É ela, portanto, a vida superior, uma vez que se eleva acima de tudo, mesmo dos desastres da natureza; que determina a elevação do que há de mais nobre em nós, e nos consome no Ser supremo. Disso se conclui também que essa vida deve ser tanto mais una quanto mais for superior. É por isso que a alma busca a unidade de vida, persuadida de não poder atingir a universalidade na diversidade dos detalhes. Ela simplifica assim sua visão, tanto quanto o permite a razão enferma, e não considera senão as grandes linhas, que são fatores de unidade. Por isso dizemos que a vida interior é
simplificada[2].
7. O fundamento – Mas não se pode construir a unidade senão sobre um fundamento ou alicerce. Sem alicerce, podemos reunir os diversos elementos da construção, mas não uni-los, não elevá-los em altura. E como a vida interior quer ser totalmente una para poder galgar as alturas, e, pela unidade, quer elevar-se até o céu e até Deus, ela precisa de um fundamento. Para buscar seu cume, precisa primeiro buscar sua base; somente partindo desta, poderá chegar até aquele. Por isso dizemos também que a vida interior precisa “recuperar seu fundamento”: porque, desta forma, a vista se estenderá sobre a vida inteira, desde suas profundezas iniciais, até suas alturas finais. Ela se estenderá, mas sem se dividir, vigiando para que a unidade seja mantida de um extremo ao outro. Cuidará também de não se perder nos detalhes, concentrando-se no direcionamento geral da vida, no ritmo e nos instrumentos da caminhada. Nesse esforço de síntese precisa haver muita clareza, para que fique evidente o sentido pleno e único da vida! Plenitude na unidade, unidade na plenitude: não é isso o que a vida deseja ser? E não é isso que precisamos ter em conta, se a queremos compreender?
8. Construir sobre Cristo – Mas, se o cume só pode ser atingido na unidade e pela unidade, e se a unidade só pode ser edificada sobre um fundamento, segue-se que, na prática, este constitui o primeiro ponto de que nos devemos ocupar. – Qual é o nosso fundamento? – É ainda São Paulo que nos responde, mostrando-nos ao mesmo tempo a necessidade de tudo edificar sobre ele: “Segundo a graça que Deus me deu, como bom arquiteto, lancei o fundamento; outro constrói por cima. Mas cada um veja como constrói. Quanto ao fundamento, ninguém pode colocar outro diverso do que foi posto: Jesus Cristo. Se alguém sobre esse fundamento constrói com ouro, prata, pedras preciosas, madeira, feno ou palha, a obra de cada um será revelada. O Dia do Senhor a tornará conhecida, pois ele se manifestará pelo fogo, e o fogo provará o que vale a obra de cada um. Aquele cuja obra subsistir, receberá uma recompensa. Aquele, porém, cuja obra for queimada, perderá a recompensa. Ele mesmo, entretanto, será salvo, mas como que através do fogo. Não sabeis que sois o templo de Deus, e que o Espírito de Deus habita em vós? Se alguém destrói o templo de Deus, Deus o destruirá. Pois o templo de Deus é santo e esse templo sois vós.” (1Cor 3,10-17)
9. Os elementos da palavra de Deus – Já conhecemos, pois, o fundamento; conhecemos a necessidade de tudo edificar sobre ele; foi-nos mostrada a variedade de materiais que podem ser utilizados; foi-nos anunciada a prova decisiva do valor do que cada um tiver vivido, e assinalada a importância de agregar ao edifício de nossa vida apenas aquilo que é eterno, capaz de resistir ao fogo. O fundamento é Cristo Jesus; nossa vida deve estar alicerçada nele, e ser construída com autênticos materiais de eternidade. “Estais edificados sobre o fundamento dos apóstolos e dos profetas, do qual é Cristo Jesus a pedra angular. Nele bem articulado, todo o edifício se ergue em santuário sagrado, no Senhor, e vós, também, nele sois co-edificados para serdes uma habitação de Deus, no Espírito.” (Ef 2,20-22) É preciso conhecer, com a ajuda dele, aquilo que queremos construir sobre ele: ou seja, conhecer cada um a si mesmo, sua vida pessoal, a maneira de organizá-la e os elementos de que necessita. Mas, diz ainda o grande Apóstolo
[3]: “a este respeito, muitas coisas haveria a dizer, e a sua explicação é difícil, porque nos tornamos lentos à compreensão. Nós, que por este tempo deveríamos ter-nos tornado mestres, necessitamos novamente que se nos ensinem os elementos da palavra de Deus, e precisamos de leite, não de alimento sólido. Quem ainda está sendo amamentado não pode saborear a doutrina da perfeição, pois é uma criancinha! O alimento sólido é para os adultos, cujos sentidos já estão exercitados, pelo hábito, a discernir entre o bem e o mal.” (Hb 5,11-14)
10. Noções racionais – Somos crianças; mergulhados nos sentidos e na sensibilidade, reduzimos nossa visão e nossos sentimentos religiosos ao sentimentalismo e à rotina de um culto infantilizado. Eis-nos, portanto, obrigados a voltar às noções elementares da palavra de Deus. Não podemos elevar-nos de imediato às sublimidades da Encarnação, que é o grande mistério de Cristo e de nós em Cristo. Não o podendo, recomecemos pois, humildemente, nossos primeiros passos no conhecimento de Deus. Nessa intenção, busquemos, nos dados essenciais da criação e em suas noções racionais, os primeiros pontos de contato para nossa relação com Deus e com seu Cristo, conosco mesmos, com nossos semelhantes, com todas as coisas. E, como queremos seguir apenas as linhas primordiais, deixemos de lado a imaginação e a sensibilidade, que são apenas enchimento, facilmente colocado em seu lugar quando se tem pronto o esqueleto do edifício. Reservemos, por outro lado, as altas visões de fé, para as quais estaremos preparando sólidas estruturas de sustentação.
Objetivo e divisão do livro
11. Objetivo do livro – Assim se define o alvo deste ensaio; acima da pequenez do sentimentalismo e abaixo da contemplação mística, ele se ocupa sobretudo dos fundamentos racionais iluminados pelas luzes elementares da fé. Em consequência, só perceberemos, da pessoa adorável do Salvador, um primeiro vislumbre; o que será suficiente – assim o esperamos – para despertar o desejo de um conhecimento mais aprofundado. De nós mesmos e de nossa vida, apenas reconheceremos os pontos fundamentais; o bastante para acender a chama das santas ambições, que em seguida desejarão avidamente alcançar as sublimidades da vida cristã. Da Igreja, traçaremos apenas um esboço preliminar, capaz de nos descortinar o sentido de sua inefável grandeza. Das coisas, finalmente, não faremos senão rabiscar as linhas essenciais do seu papel em nossa vida, lançando uma primeira fresta de luz sobre a magnificência do Plano Criador, com o qual desejaremos, em seguida, entrar em mais íntima comunhão.
12. Dupla noção na Encarnação – Sendo Cristo o fundamento, a Encarnação é o verdadeiro centro das obras de Deus. Para ela foi feita a criação, que a Redenção apenas restaurou em nós. Podemos distinguir na Encarnação, porém, duas noções essenciais: uma da razão, e a outra da fé; uma absolutamente postulada pela própria natureza do fato criador, e a outra inteiramente gratuita. A Encarnação, com efeito, indica uma relação do homem com Deus. Ora, entre um e outro, o próprio fato da existência estabelece uma relação de subordinação do criado ao Incriado. Este é, pela essência de sua natureza, anterior e superior àquele. O homem, criado por Deus, deve viver na dependência de Deus. Isso é irrefutavelmente reconhecido pela razão. Mas o que a razão não pode, nem conhecer por si mesma, nem deduzir de nenhum outro conhecimento próprio, nem suspeitar por qualquer intuição, é que a vida da criatura seja unida à vida pessoal de Deus; é que se possa estabelecer uma ligação de amor inefável, pela qual o homem se torna participante da vida divina (2Pd 1,4); é, enfim, que o homem possa ser e nomear-se filho de Deus. Isso vem da caridade gratuita do Pai, que quis dar-nos a honra de sua vida e os bens de sua herança (1 Jo 3,1).
13. Domínio do divino sobre o humano – Essa união é a grandeza própria do cristão, de sua vida presente e de suas esperanças imortais. Nela se encerram os mistérios que São Paulo declara demasiadamente elevados para serem explicados àqueles que, por ora, apenas podem suportar o leite. Não tentaremos, portanto, subir a tal altura. Ficaremos no plano racional, mais acessível à nossa inteligência, mais apto a exercitar nossos sentidos e a formar neles o hábito do discernimento entre o bem e o mal. O necessário domínio do divino sobre o humano será nosso centro de síntese; dele serão deduzidas, lógicas e rigorosas, as conclusões práticas de nossa conduta. Essas conclusões serão, continuamente, associadas aos princípios de fé, e prepararão as bases da união. À semelhança do Antigo Testamento, que foi um longo e lento encaminhamento da humanidade em direção a Cristo, nosso estudo será como um aprendizado, uma educação de nossas faculdades intelectuais, dispondo-as, pela iniciação racional, à elevação em direção aos grandes mistérios da fé.
14. Divisão do livro – Três grandes ideias formarão o esquema do texto: o fim, o caminho, os meios. Qual é o fim para o qual tende toda vida sobrenatural? Que caminho deve ela percorrer, e que meios deve empregar? É preciso buscar o fim único e supremo, o caminho que conduz a esse fim, e os meios de percorrer esse caminho: tal é o triplo objetivo deste trabalho, que se divide, pois, em três partes.
Essa divisão é fundamental. As preocupações se concentram com demasiada facilidade sobre questões relativas aos meios. Quantos livros e quantas vidas transmitem também essa impressão de que a religião é, sobretudo, uma questão de práticas exteriores! Muitos não a praticam e a desprezam, porque, julgando-a de fora, nela veem apenas um ritualismo vazio. E, entre os fiéis, é grande o número daqueles que creem cumprir o essencial, permanecendo ligados a certas tradições coletivas ou apegados a certos exercícios pessoais. Devoções e confrarias, cerimônias e sacramentos são, certamente, coisas santas e muito santas; mas é preciso mantê-los em sua ordem e em sua função. Na verdade, são apenas meios; e os meios só servem para auxiliar a caminhada, e esta só serve para atingir o fim. As questões de meios situam-se no terceiro plano, na verdadeira vivência da religião. As questões relativas ao caminho as precedem e explicam; e as questões relativas ao fim precedem e explicam tudo, o caminho e os meios. Sem o fim, nada se compreende do caminho; e, sem o caminho, não se compreendem os meios. Os meios passarão, o caminho passará, somente o fim permanecerá.
Convém colocar as coisas em seus devidos lugares, e organizar as ideias com substância e com ordem. Eis por que a primeira parte – a mais importante – é aqui consagrada ao fim, a segunda se ocupa do caminho, e a terceira é dedicada aos meios. É a ordem lógica das coisas.
Conselhos ao leitor
15. O esqueleto – Essas questões serão abordadas apenas em suas grandes linhas básicas: não nos ocuparemos senão dos princípios, sem descer aos detalhes e à aplicação, o que seria interminável e não responderia à finalidade a que nos propomos. Só encontraremos aqui aquilo que se poderia chamar a armação, o esqueleto, a estrutura de suporte da piedade. O que seria uma tapeçaria sem a tela, um corpo sem esqueleto, um edifício sem vigamento? Ora, assim tem sido a piedade em nossos dias; é preciso, portanto, retornar a essas estruturas de suporte. É por isso que apontaremos apenas as linhas mestras e as suas conexões.
Assim, na primeira parte, não veremos em particular nenhum dos hábitos, virtudes ou disposições que constituem a vida interior; não serão considerados detalhadamente nem os atos, nem as virtudes, mas tão somente a disposição
una, na qual todas as outras disposições se condensam, e na qual, por conseguinte, se resume a vida interior.
Da mesma forma, a segunda parte não estudará em detalhes os mandamentos, nem as ações de Deus; o pensamento se concentrará na vontade divina, que é a regra primeira e a única fonte dos mandamentos e das ações.
Enfim, a terceira parte não fornecerá nenhuma regra, nem prática especial para os exercícios espirituais, mas se ocupará exclusivamente das condições para sua unidade vital.
A quem quiser refletir, nada parecerá concluído; em toda parte lhe parecerá encontrar apenas balizas indicadoras; apenas esboçada uma grande ideia, passa-se a outra. Isso é intencional, a fim de deixar espaço para a reflexão pessoal.
16. O encadeamento das ideias – As ideias e princípios são aqui interligados de tal forma, que o leitor não ficará satisfeito se não percorrer muito seriamente o livro, em ordem e por inteiro. Diante de certos pontos, algumas dificuldades talvez se apresentem ao espírito; mas tenham paciência, pois elas se esclarecerão ao longo da leitura, para quem souber esperar que tudo se encaixe em seu momento e em sua ordem.
Este não é um livro do qual se possa escolher ao acaso um trecho e destacá-lo: tudo se liga, se atrai, se sustenta mutuamente. Se o encadeamento for quebrado, o melhor do trabalho será perdido e já não poderá ser compreendido, pois lhe teremos tirado a vida. Ora, esta obra trata da vida, e gostaria de ser uma obra de vida, por isso pede que lhe seja conservada a integridade. Por acaso é possível cortar um membro do corpo e implantá-lo no lugar de outro? Mesmo que fosse possível, isso de nada serviria. Em um todo orgânico, as partes só têm utilidade em seu devido lugar; e nenhuma é completa por si mesma, nenhuma tem sentido pleno em si mesma: elas se explicam mutuamente e se completam precisamente por sua ligação. Faça portanto, caro leitor, um estudo fisiológico, e não uma dissecção anatômica.
17. Aprofundar a ideia fundamental – Eis uma observação importante. A ideia fundamental poderá, à primeira vista, parecer suficientemente conhecida para que nos permitamos passar por ela rapidamente. Queiram, entretanto, examiná-la detidamente e em profundidade; porque será dela, precisamente, que a razão tirará conclusões lógicas, de uma exatidão rigorosa e de um alcance prático, que não poderão ser percebidas desde o início. É como um cofre sem atrativo exterior, mas que contém tesouros em seu interior. Enquanto não o abrimos, nada sabemos, e é como se nada possuíssemos. Ora, para abrir, é preciso encontrar o segredo, é preciso procurar e refletir. E se, no interior do pequeno cofre, o leitor encontrar alguma pérola de valor, queira suplicar ao Autor de todo dom perfeito, ao Pai das luzes
[4], que não deixe em desamparo a pobre alma deste que um dia disse a si mesmo estas coisas, e agora ousa partilhá-las.
18. Excluir a ideia de método – Acrescentemos uma última palavra. Alguns poderão, no início da leitura, acreditar ter encontrado aqui um novo método de piedade. Nada mais alheio ao espírito destas meditações! Elas visam os princípios, e o leitor deve ver nelas somente os princípios, deixando de lado tudo o que lhe pareça método. Somente os princípios são fundamentais, o método é sempre acessório. Aquele que conservar deste livro a mais leve ideia de método, não terá encontrado a ideia inspiradora e condutora deste trabalho.
A experiência tem provado, a cada dia, a quantas ilusões pode levar a mania de procurar expedientes onde não existem senão princípios. As almas superficiais somente buscam expedientes. Pede-se a elas que não abriam este livro, que não foi feito para elas, e que elas não poderiam compreender. As almas profundas e sinceramente piedosas se alimentam de princípios; este livro pode fazer-lhes algum bem, e elas o compreenderão; em todo caso, ele foi feito para elas.
Esquema geral do livro
1ª parte:
o Fim. A vida em si mesma, sua finalidade, sua organização, seus desapegos, suas ascensões por Deus e em Deus (ou: Plano de construção da vida).
2ª parte:
o Caminho. Condições da caminhada e leis para o trabalho da vida com Deus e segundo Deus (ou: Regras para o trabalho de construção).
3ª parte:
os Meios. Procedimentos para utilização dos recursos naturais e sobrenaturais da vida (ou: Modos de utilizar os instrumentos de construção).
Esquema Geral
A vida interior
Capítulo preliminar:
A vida
19. Perfeita e imperfeita – Esta primeira parte intitula-se: o fim; e o fim, é viver; pois o homem é feito para viver (cf. Gn 2,7). E, por ser ele feito para viver e por ser este o seu fim, é útil iniciar esta Primeira Parte por um capítulo preliminar intitulado:
a vida.
O que é viver? – É ter em si uma atividade própria, proveniente de um princípio íntimo, que tem o poder de se desenvolver em sua ação e de possuir o seu desenvolvimento.
[5]
Há dois tipos de vida, a perfeita e a imperfeita. A vida perfeita é a do ser que se possui e se basta, na plenitude de um movimento que nada tem a desenvolver. Essa plenitude absoluta de vida somente se encontra em Deus.
O ato divino, pelo qual Deus se possui, se conhece e se ama na Trindade de suas Pessoas, é um ato infinito; e esse ato é a vida de Deus em si mesmo.
No céu, terei a plenitude de vida da qual o meu ser se tiver tornado capaz; e possuirei, sem fim e sem mudança, em um ato pleno que mobilizará toda a minha força vital, o desenvolvimento que tiver atingido. Esta será, em minha medida própria e acabada, a vida perfeita.
Aqui na terra, a vida é imperfeita. – E o que é a vida imperfeita? É o movimento de aquisição, pelo qual um ser se desenvolve. O princípio de atividade interna vai crescendo e se dilatando em sua ação. É uma vida que se faz, que se constrói, que se organiza, e cujo sinal característico é, portanto, a aquisição e o crescimento. O crescimento do ser imperfeito é a manifestação essencial de sua vida. E essa é a condição da minha vida presente.
20. Natural e sobrenatural – Sou feito para viver: que quer dizer isto? Quer dizer que sou chamado a desenvolver em mim os frutos da santidade neste mundo, a fim de possuir no céu, como desfecho e para sempre, a vida eterna (Rm 6,22). A vida deste mundo é um crescimento, a vida do céu é uma posse, e ambas constituem a atividade própria do meu ser.
Tenho uma alma e um corpo; a alma vive por si mesma, com uma vida recebida de Deus; e o corpo vive por meio da alma que o anima. A alma pode agir; e ela age, por meio das faculdades que possui. O corpo pode agir; e ele age, por meio das capacidades que lhe são próprias, e que são animadas e regidas pela alma. Esta possui toda uma organização de faculdades cognitivas, volitivas e ativas; e aquele possui uma série de órgãos que se conectam às faculdades da alma e agem por meio delas. Na ação e no desenvolvimento dessas faculdades e dessas potências consiste a minha vida natural.
Tenho também, pela graça de Deus, uma outra vida; isto é, uma outra capacidade de agir e de crescer; não mais por mim, mas por Deus. É a vida sobrenatural onde Deus, unindo-se à minha natureza por um liame inefável, eleva-me acima de mim mesmo, e concede às minhas faculdades o poder de realizar atos divinos. Ele mesmo se torna, então, a vida de minha vida, a alma de minha alma: mistério de amor!
E essa vida é a vida sobrenatural, quer dizer, a vida eterna
[6]; pois é o desenvolvimento, aqui na terra, da vida que possuirei no céu.
21. Crescei – Sou feito para viver e somente para viver. – Que farei no céu? – Viverei, sem fim, no ato único do louvor eterno, fonte eterna de bem-aventurança. – Que devo fazer aqui na terra? – Devo viver, isto é, desenvolver-me, uma vez que a vida imperfeita, a única que tenho agora, consiste em desenvolver-se. “Crescei e multiplicai-vos”, disse o Senhor ao homem, dando-lhe o poder de desenvolver e de comunicar a vida (Gn 1,28). Essa foi a primeira palavra que o Criador lhe dirigiu; em sua plenitude e sua majestade, ela contém e exprime a lei total da vida. Todas as minhas obrigações, sem nenhuma exceção, encontram sua base e sua explicação nessa obrigação primeira, na qual se encontra o sentido e a medida de todos os meus deveres para com Deus, para com as demais criaturas e para comigo mesmo. É preciso crescer, é preciso desenvolver a vida física, moral, intelectual. Essa é a razão dos cuidados e precauções a tomar na manutenção do corpo, na educação do coração e na instrução do espírito. Cada um é responsável pelo trabalho de aquisição e de conservação do pleno desenvolvimento de suas faculdades.
22. Vida cristã – E esse desenvolvimento natural deve estar ordenado para Deus. As faculdades aperfeiçoadas devem servir de instrumentos para a vida sobrenatural. “Não entregueis vossos membros ao pecado, como armas de injustiça”, diz São Paulo; “pelo contrário, oferecei-vos a Deus para, superando vossa morte, ter a sua vida, e oferecei vossos membros como armas de justiça a serviço de Deus” (Rm 6,13).
A vida sobrenatural é, pois, normalmente chamada a elevar-se pelo próprio crescimento da vida natural; sou obrigado a fazer o que depende de minha liberdade, para harmonizar a natureza com a graça. O privilégio – revelado pelo grande apóstolo – de expansão do divino em meio e acima das desagregações do que é terrestre
[7], manifesta misericordiosamente seus efeitos nas leis de punição às quais Deus me submeteu; mas não se estende às falsificações que eu introduzir.
23. Objeto desta primeira parte – É esta vida, com seus crescimentos e seus resultados, que desejo estudar aqui. Devo viver: por quê? Como? Até onde? – A vida: tal é a ideia mestra, central, sintética, una, para a qual convergirão as pesquisas e as ideias. A vida em seu todo, em sua unidade; a vida interior, como indica o título desta obra; a vida sobrenatural e divina: em uma palavra, o meu fim total e último, nas grandes linhas de sua construção e de seu acabamento.
O objeto próprio desta primeira parte é exclusivamente a vida em si mesma; quer dizer, o que se constrói, o que se adquire; o que, uma vez adquirido, permanecerá para sempre; pois nisso consiste propriamente a vida e sua finalidade.
Quanto ao trabalho de construção da vida, seu andamento e suas regras; quanto aos meios, ao modo e às condições de sua utilização: embora eles sirvam à construção e lhe sejam indispensáveis, não são, entretanto, a construção em si mesma. O trabalho e as regras do trabalho passam; os meios e seu modo de utilização passam; a construção fica. E aqui, nesta primeira parte, quero considerar unicamente aquilo que permanece e que constitui a finalidade; o trabalho e os meios que passam serão, como foi explicado na introdução
[8], o objeto da segunda e da terceira partes.
24. Sua divisão – Dentro do que constitui verdadeiramente a construção eterna do meu ser em Deus, considerarei quatro coisas:
1º Os elementos dessa construção;
2º A organização desses elementos;
3º Os primeiros desenvolvimentos da construção;
4º Os desenvolvimentos superiores.
Por isso, esta primeira parte se subdivide em quatro livros:
Livro I: Os elementos;
Livro II: A organização;
Livro III: O crescimento;
Livro IV: Os cumes.