Introdução
Em outra obra
[1] analisamos longamente, aproveitando-nos das cartas de Dom Marmion, as múltiplas qualidades que fizeram dele um eminente diretor espiritual. “Revelou-se (foi esta a conclusão) na pura luz de uma humanidade ao mesmo tempo muito elevada e muito humilde, e também no esplendor muito íntimo de uma profunda união com Deus, em que se alimenta um ardente e esclarecido zelo das almas: instrumento dócil e discreto nas mãos do Senhor, conservando-se ao nosso lado em radiante bondade; não cessa de dilatar os corações, elevando-os para as alturas”
[2].
Todas estas qualidades de novo as encontrará o leitor na presente obra. Seja-nos, porém, permitido dar algumas indicações sobre o caráter desta publicação.
As cartas de Dom Marmion constituem, acima de tudo, um tesouro doutrinal. Tal como ele a compreende e pratica, a direção é obra de luz. Dom Marmion alumia o caminho da perfeição antes de por ele conduzir as almas. O primeiro obstáculo a fazer desaparecer são as trevas e o erro. Pode-se porventura caminhar rapidamente, quando se está envolvido na escuridão da noite? E de que serve correr por fora do caminho? Jesus Cristo pediu ao Pai que santificasse os seus discípulos, mas que os santificasse na verdade:
Santifica eos in veritate.
Dom Marmion nunca perde isto de vista. Pela sua feição espiritual, pela sua convicção íntima, deduz sempre as conclusões práticas da luz dos princípios
[3]. É à “luz deífica”
[4] que este mestre de espiritualidade vai buscar as claridades com que, logo de princípio, deseja inundar as almas que a ele se dirigem. Sendo Deus, costumava dizer o único autor da ordem sobrenatural, só Ele pode, segundo o seu bel-prazer, mostrar o caminho da santidade: “Temos de procurar a Deus pela forma como Ele quer O procuremos; de outra maneira não O encontramos”.
É por isso que Dom Marmion, na direção das almas, se esforçou sempre por descobrir qual o pensamento de Deus sobre elas e por as conduzir a mais perfeita submissão, por amor, à vontade do alto. Esta tendência contribui para imprimir à sua obra de direção um caráter profundamente sobrenatural, assegurando-lhe uma influência altamente benéfica.
Nada, porém, nesta correspondência, de um teórico ou de um pregador. A doutrina ensinada por este doutor da vida espiritual, assimilou-a ele primeiro; fê-la sua, e não precisa de mais nada do que deixar correr a pena: escreve unicamente da abundância do coração e da experiência. Umas vezes, num forte bater de asas, eleva as almas até às alturas; outras, mais familiar, fá-las caminhar pelos vales, esmaltando, por vezes, aqui e além, as suas indicações, as suas exortações, os seus conselhos com uma pontinha de sã ironia, uma reflexão espontânea e imprevista, uma imagem que lhe sai naturalmente. As mais das vezes, escreve ao correr da pena, sem arte nem colorido, pois estas matérias não admitem essas coisas, sendo sua única beleza a simplicidade, como em Deus que é o seu autor”
[5].
Dom Marmion é ao mesmo tempo muito sobrenatural e muito humano; nele “a caridade mais compreensiva e mais suave sublima e transforma em apelos cheios de confiança as austeras exigências da perfeição”
[6].
Ainda mesmo quando se torna exigente, nunca este mestre de ascetismo perde as maneiras afetuosas de pai nem o tom de unção que vai direito aos corações. Pode-se-lhe aplicar o que alguém escreveu de um dos mais encantadores diretores espirituais, S. Anselmo: “Fala a cada alma a linguagem que esta pode compreender, toma-a com delicadeza pelo lado por onde melhor pode ser manejável. Desta forma, não descurando nenhum dos meios de se aproximar dela, atinge e penetra essa alma, para lhe dizer qual em concreto a vontade divina a seu respeito e, depois de a ter conquistado, torná-la finalmente dócil a graça e ao Espírito Santo; e as vitórias da sua doçura são muitas vezes as de um amor divino muito exigente”
[7].
Notemos ainda que os correspondentes de Dom Marmion se encontram em todos os estados de vida. É certo que muitas das cartas são dirigidas a pessoas que vivem no estado religioso; mas é sabido que, para este mestre de espiritualidade, “o estado religioso, considerado na sua essência, não constitui forma particular de existência à margem ou fora do Cristianismo; é o próprio Cristianismo vivido na sua plenitude, a pura luz do Evangelho”
[8]. E é por isso que, na doutrina por ele ensinada às almas privilegiadas do claustro, o vemos insistir, acima de tudo, nesses princípios que devem orientar a vida de todos os discípulos de Cristo: introdução a doutrina que lhes expõe, pode um simples cristão do mundo, sem dificuldade e até com fruto, apropriada a si mesmo quanto a sua substância vivificadora
[9].
***
A presente publicação das cartas não é integral; não o podia ser; visto haver muitas que não nos chegaram às mãos e, por outro lado, estarem ainda vivos muitos dos correspondentes de Dom Marmion.
Deveríamos deixar ainda por longos anos estes tesouros enterrados, à espera que o decorrer do tempo permitisse apresentar uma edição completa ou, pelo contrário, não estaria o bem das almas a exigir, desde já, na medida do possível, o benefício destas riquezas espirituais? Foi esta segunda opinião que julgamos dever seguir; e, conformando-nos neste ponto com os destinatários, cuja confiança muito nos honra e sensibiliza, resolvemos não demorar mais a publicação deste volume.
O caráter fragmentário desta publicação obrigou-nos a adotar uma ordem lógica de distribuição, como, aliás, o permitia a natureza doutrinal das próprias cartas. O nosso plano obedeceu à ideia central que domina em todas estas cartas: a ideia da união da alma com Deus. Conceito geral desta união, seus diferentes elementos constitutivos, condições do seu progresso, sua perfeição: tais são as principais ideias mestras à volta das quais agrupamos, da forma mais natural possível, numerosos trechos escolhidos; daqui nasceram os diferentes capítulos da obra. Esta, por conseguinte, apresenta- se, em certo modo, como um pequeno tratado da vida de união com Deus, considerada nos seus aspectos mais essenciais. Uma vista de olhos sobre a tábua das matérias, que vem no princípio do volume, baila para descobrir a simplicidade do plano e a sua ordenação lógica
[10].
Esperamos que estas páginas sejam favoravelmente recebidas pelos numerosos amigos de Jesus Cristo Vida da Alma. Aqui encontrarão a mesma doutrina, elevada e acessível, sobrenatural e humana, sob uma forma mais familiar, mas não menos ponderada. Temos a certeza de que esta leitura lhes há de ser altamente proveitosa; ao mesmo tempo que irá acabar de revelar a abundância de luzes com que Deus inundou a alma de Dom Marmion, irá também projetar no mundo a irradiação espiritual de uma admirável doutrina de vida.
Raimundo Thibaut
Abadia de Maredsous, 19 de Agosto de 1933.
Festa da Dedicação da Basílica de S. Bento.
CAPÍTULO PRIMEIRO
A união com Deus: ideia geral
A essência da doutrina de Dom Marmion sobre a união com Deus — que é simplesmente a doutrina do Evangelho, de S. Paulo e de S. João, mas que ele soube condensar em fórmulas precisas de luminosa clareza — julgou-se podê-la sintetizar nos seguintes termos
[11]:
“A santidade, no homem, só é possível conforme ao plano divino: toda a essência da santidade está em conhecer este plano, em adaptar-se a ele.
Este plano consiste em chamar a criatura humana a participar, pela graça da adoção sobrenatural, da própria vida eterna de Deus.
No centro deste plano está Jesus Cristo, Homem-Deus, em quem reside a plenitude da vida divina que Ele vem comunicar aos homens.
O homem é admitido a participar desta vida divina pela graça santificante, a qual, conservando-lhe a condição de criatura, o torna verdadeiramente, por adoção, filho de Deus: o Pai celeste envolve todos os cristãos num prolongamento da sua Paternidade em relação ao próprio Filho Jesus Cristo.
Esta graça de adoção, por isso mesmo que excede os direitos, forças e exigências da natureza, tem um caráter propriamente sobrenatural. Conservando a sua natureza no que esta tem de nobre e de bom, o cristão deve procurar viver como filho de Deus, pela união com Jesus Cristo, sob a ação do Espírito Santo.
Tomando como ponto de partida estas doutrinas fundamentais, Dom Marmion reclama da alma que dirige uma dupla atitude essencial: humilde submissão de criatura, fidelidade amorosa de filho. Quer que a alma, consciente dos direitos de Deus, senhor soberano, procure reconhecer estes direitos, honrá-los, respeitá-los, pela conformidade perfeita da sua vontade com a de Jesus. Mas, reconhecendo-se filha do Pai celeste, todo este trabalho de conformidade se deve radicar num constante amor filial. Dom Marmion convida incessantemente a alma a conservar-se, sem interrupção, em contato com Deus pelo olhar da fé, por um movimento de confiança, por um impulso de amor e de abandono; a elevar-se, em todas as circunstâncias, até Deus, fonte única de vida e Pai cheio de bondade; a haurir imediatamente neste manancial, sempre vivo e sempre acessível, a luz que a ilumine, a força com que resista à tentação, vença os obstáculos, alcance a vitória sobre si mesma, aceite um sacrifício, sofra uma humilhação, receba uma provação, cumpra enfim o dever do momento presente.
(...)
[1] Un Maître de la Vie Spirituelle, pág. XI;
Le directeur spirituel. Consultar também o pág, X:
Le représentant du Christ, e a pág, XIV:
L’apôtre du Christ.
[3] Não é este também o “método” de Bossuet? “Muitas vezes ficais triste, escreve o grande bispo a uma das suas dirigidas, convencida de que eu não respondo a certas coisas às quais tenho consciência de ter respondido, visto apresentar um princípio pelo qual cada um responde a si mesmo, maneira de responder que é preciso pôr muitas vezes em prática, pois ensina a alma a consultar em si mesma a verdade eterna, isto é, a prestar-lhe atenção”. Uma das razões deste “método” é que Bossuet, seguindo nisto a inclinação do seu gênio, preocupa-se mais com o homem em geral do que com o homem individual (V. Giraud, Bossuet). Daí o caráter largo, liberal e desinteressado que encontramos na sua direção. As mesmas características descobrimos na de Dom Marmion. Sabe-se que este gostava de ler as obras de Bossuet.
[4] Expressão de S. Bento para designar a fé. Prólogo da Regra.
[5] S. Francisco de Sales, carta ao Duque de Bellegarde. Obras, ed. de Annecy, XVI, 55.
[6] Un Maître de la Vie Spirituelle, pág. 280.
[7] Lettres Spirituelles de Saint Anselme. Paris, 1925. Introdução, XXXIX.
[8] Le Christ, Idéal du Moine, pág. VII-VIII.
[9] Excetuam-se, em parte, os dois últimos capítulos e, aqui e além, algumas diretrizes especiais.
[10] Nesta ordem de distribuição tivemos o cuidado de não fragmentar demasiado os trechos; preferimos às vezes transcrever o texto na íntegra, apesar da diversidade das ideias, por causa do seu encadeamento lógico; um excessivo fraccionamento diminuiria o vigor do pensamento. Além disso, em trechos assim reunidos, é impossível evitar repetições. Mantivemo-las, pois revelam, por um lado, as ideias predominantes de Dom Marmion e, por outro, suprimi-las equivaleria muitas vezes a destruir a harmonia do desenvolvimento e a enfraquecer a força persuasiva do raciocínio. Dom Marmion costumava sublinhar certas palavras para fazer realçar o seu pensamento e atrair mais a atenção. Respeitou-se este processo, imprimindo em itálico as palavras por ele sublinhadas uma vez, e em VERSALETES as sublinhadas duas vezes. Esta observação estende-se a todas as passagens de Dom Marmion citadas neste livro.
[11] Un Maître de la Vie Spirituelle, pág. 304 s.