Cremos satisfazer os justos desejos de muitos leitores oferecendo-lhes, à maneira de introdução, algumas notas dignas de se ter em conta a respeito da Suma Teológica, de que é compêndio o presente catecismo, e mais um breve resumo da vida de seu glorioso autor.
S. Tomás de Aquino, filho do Conde Landulfo e da Condessa Teodora, nasceu, provavelmente,no ano de 1225, no Castelo de Aquino ou no de Rocaseca, na Itália. Em 1230, confiaram seus pais a educação do menino, que contava 5 anos, aos cuidados e à solicitude de seu tio Sinibaldo, Abade de Monte Casino. Foi ali que, ainda criança, fazia a seus mestres a pergunta em que resumiu a obsessão de toda a sua vida: Quem é Deus? Só para responder a esta tremenda interrogação,viveu, escreveu e ensinou. Enviado para Nápoles, afim de cursar os estudos superiores, travou relações com os primeiros discípulos de S. Domingos, havia pouco estabelecidos naquela cidade. Bem depressa se lhes afeiçoou e, solicitado o seu ingresso na ordem, ali mesmo tomou o hábito dos Pregadores.
A Condessa, sua mãe, julgou indecoroso que um filho seu abraçasse a vida monástica numa Ordem Mendicante, e resolveu empregar todos os meios para que a abandonasse.
Tomás, porém, resolvido a manter a sua decisão, empreendeu uma viagem penosíssima, primeiro a Roma e depois à França, com o fim de subtrair-se às opressões de sua família.
Surpreendido por seus irmãos, oficiais do exército imperial da Lombardia, foi conduzido preso e encerrado por espaço de quase dois anos no torreão do Castelo de Rocaseca. Aquele imerecido rigor estimulou a sua vocação, em lugar de entibiá-la, e assim empregou a ociosidade forçada da prisão em decorar a Bíblia Sagrada, as Sentenças e muitos tratados de Aristóteles. Daquela época data a vitória com que o jovem heroico triunfou na prova delicadíssima a que os irmãos, como último recurso, submeteram a sua virtude: Armado de um tição, pôs em fuga a beleza tentadora de uma mulher introduzida na sua cela para quebrar com carícias a sua constância.
Como prêmio daquela façanha lhe enviou o Senhor dois anjos para consolá-lo e cingir-lhe um cordão misterioso que, como precioso talismã, lhe assegurava o domínio da razão sobre os sentidos e as paixões.
Voltando à sua Ordem, foi destinado ao convento de Colônia, para continuar os estudos sob a direção de Alberto Magno. Tão aplicado e “extraordinariamente taciturno” era (Guilherme de Toco), que os condiscípulos lhe puseram o apelido de “O grande boi mudo da Sicília”. Alberto Magno, porém, assombrado pelo engenho que em seu discípulo descobria, anunciou que bem depressa ressoariam no mundo inteiro os mugidos daquele “boi mudo”.
Não contava ainda vinte anos de idade, quando recebeu a missão de ensinar no convento de Santiago de Paris. O primeiro fruto daquele ensino foi o comentário ou explicação do livro de Pedro Lombardo, intitulado Sentenças, então e mais tarde, até ao século XVI, obra de texto nas faculdades de Teologia.
O gênio predestinado que havia de ser o Mestre por excelência da Doutrina, se revelou e apareceu desde o primeiro instante, tal como hoje o conhecemos, e como a Igreja o consagrou com sua autoridade suprema.
Desenvolvia tanta habilidade na explicação dos textos; tal arte e maestria na classificação das questões, anotações e comentários, como demonstração antecipada do maravilhoso plano da Suma Teológica; inaugurou um método de ensino tão didático, amplo e luminoso; empregava uma linguagem tão exata; projetava tanta luz nas questões mais abstratas; fluía a verdade de seus lábios com tanta quietude, doçura, atrativo incontrastável e vigor, que de pronto foram as lições do Fr. Tomás o assunto de todas as conversações entre os estudantes de Santiago, de toda a Universidade e do mundo inteiro
[1].
Quando, pouco depois, recebeu a investidura de Professor, todas as universidades do orbe cristão disputavam a honra de contá-lo entre os seus doutores.
Por este motivo foi chamado a Roma, Orviedo, Anagni, Viterbo, Perusa, Bolonha e Nápoles. Reintegrado na sua cátedra de Paris, de novo teve de abandoná-la, ainda que com promessa formal de voltar, pois ninguém se resignava a perder, conjuntamente com sua presença, a esperança de tornar a ouvi-lo. Como torrente transbordante e inesgotável, inundou o seu gênio, em caudais de luz, todo o campo da ciência sagrada, e como se fossem escassos os numerosíssimos discípulos agrupados, pela magia da sua palavra, em torno de quantas cátedras perlustrou, afluíam, de todas as paragens do mundo cristão, cartas, escritos, propondo dúvidas e pedindo pareceres e conselhos; graças a isso, seu incomparável ensino adquiriu tais voos e extensão que pôde chegar às celas dos anacoretas, aos palácios dos príncipes, aos alcáçares dos reis e até aos degraus do Sólio Pontifício.
No transcurso de vinte e cinco anos escreveu, além do já citado comentário das Sentenças e a
Summa contra Gentiles, os comentários ao livro de Jó, ao dos Salmos, aos de Isaías e Jeremias, aos Evangelhos de S. Mateus e S. João, e às Epístolas de S. Paulo; as explicações dos Evangelhos, conhecidas com o nome de
Cadeia de Ouro; os comentários aos livros de Boecio e de S. Dionísio;
As questões Disputadas, questões várias ou
Quodlibetos, o comentário às obras de Aristóteles e a
Suma Teológica.
Espanta considerar o caudal de doutrina acumulado nesta última obra. Um fato o prova melhor do que cem razões. Há quinze anos que trabalhamos para escrever um comentário literal em francês, e teremos que empregar ainda, se Deus nos conservar vida e forças, mais dez anos de labor constante para terminá-lo. Acabado, constará, pelo menos, de vinte tomos em oitavo, de setecentas páginas cada um. Pois bem, neste trabalho de tão gigantescas proporções, nos limitamos a comentar, melhor diremos, a pouco mais que seguir passo a passo uma obra apenas de S. Tomás: A Suma Teológica; e a Suma Teológica é a quinta da sexta parte dos escritos do Santo Doutor!
A nota característica e distintiva de suas obras é a de parecerem escritas todas na mesma época de sua vida, em pleno vigor e maturidade de suas faculdades mentais, posto que jamais teve necessidade de melhorar o que escreveu e ensinou; donde resulta que não se sabe o que mais admirar, se a riqueza e transcendência das ideias, se a maestria insuperável do plano, ou a sobriedade e precisão da linguagem. Sem dúvida, Deus, tendo em conta a missão, única em seu gênero, a que o destinava, o cumulou de graças e dons de entendimento, com maior profusão que a nenhum outro gênio de quantos deram lustre à ciência cristã. Por isso, a Igreja o considerou e venerou em todos os tempos como Mestre e Doutor por excelência. Com justiça tem por divisa e emblema o Sol. À luz dos seus princípios e nos ditados do seu ensino, devem inspirar-se todos quantos exercem o magistério na Igreja de Deus.
E como não haveria de ser assim, se a mesma Igreja docente, congregada nas mais augustas assembleias do Orbe, não duvida em converter-se de algum modo em discípula sua?
O Papa Leão XIII observa na Encíclica Aeterni Patris que não houve concílio geral, posterior a S. Tomás, que não houvesse sido guiado e, de certo modo, presidido por meio de suas obras. O mesmo Pontífice pondera o privilégio, único na Igreja, concedido no Concílio de Trento à Suma Teológica, colocando-a na mesa presidencial, ao lado da Bíblia e dos Decretos Pontifícios, “para tirar dela ditames, razões e oráculos”. O último e mais solene ato com que a Igreja referendou quanto anteriormente havia feito para enaltecer e infundir estima e veneração pelo seu Doutor predileto, é a lei, promulgada no novo Código de Direito Canônico,em que se impõe a todos os professores de Filosofia e Teologia a obrigação de ensinar as ditas matérias e educar os seus discípulos conforme o método doutrinal e princípios de Santo Tomás de Aquino e segui-los santamente.
Morreu o grande Doutor aos sete de Março de 1274, com cinquenta anos de idade, e foi canonizado pelo Papa João XXII em dezoito de Julho de 1323.
O Papa Urbano V fez doação de suas relíquias à Universidade de Tolosa, em cuja igreja, chamada dos Jacobinos, descansaram até ao tempo da Revolução francesa. Posteriormente foram trasladadas para a igreja de S. Saturnino, da mesma cidade.
Excusado é falar aqui das virtudes e eminente santidade do Doutor Angélico, nem tampouco dos milagres operados por sua intercessão, em vida e na morte. Basta-nos apontar que sua vida corre paralela com sua doutrina e ostenta todos os caracteres da verdade perfeita e sem sombras de erro; a mesma lucidez, serenidade e majestosa simplicidade; igual atividade e mansa energia; idêntica suavidade, doçura e delicadeza.
Tudo o que era e possuía, vida, costumes, pensamentos, palavras, escritos, todo o conjunto do seu ser foi uma imagem perfeitíssima de Deus; e do mesmo modo o é a obra insigne do seu engenho, verbo adequado à sua personalidade, a Suma Teológica. Basta folhear o livro que oferecemos aos nossos leitores, compêndio fiel,como dissemos, da Suma, para convencer-nos de que o seu único objeto e fim, como o mesmo Santo Doutor adverte no princípio da obra, é Deus. Deus uno, ser divino, vida íntima de Deus, misteriosa e divina fecundidade em virtude da qual brota, como esplêndida floração, a Trindade de Pessoas, sem detrimento da Unidade da Essência. Deus criador, primeiro dos Anjos,nobres ministros assistentes ao seu trono; depois, do mundo material e, finalmente, do homem, laço de união entre os mundos da matéria e do espírito. O Deus conservador e soberano providente das três ordens de seres. Deus, fim último e felicidade suprema da criatura racional, atraindo-a docemente a seu seio, para a regalar com os prazeres de sua própria bem-aventurança. Aqui examina S. Tomás estuda com riqueza de pormenores tudo quanto pode auxiliar, ou servir de obstáculo para que o homem consiga chegar a Deus: bondade e malícia das ações morais; qualidades que adquirem, mercê da graça sobrenatural; mérito e demérito, conformidade e discordância com a lei divina; classificação dos atos humanos e suas relações de dependência com as virtudes teologais: Fé, Esperança e Caridade, e com as quatro morais: Prudência, Justiça, Fortaleza e Temperança; caracteres ou modalidades que eles tomam nos estados de perfeição, a saber, o episcopado, a plenitude do sacerdócio e o estado religioso. Por último, Deus Redentor que, compadecido de sua desditosa criatura, enferma, desamparada, reduzida pelo pecado ao último extremo de indigência, se dignou baixar à terra, para dadivar-nos com sua vida, morte, ressurreição e ascensão, meios com que o gênero humano, saído de suas mãos e regenerado com a graça dos sacramentos, possa empreender, debaixo do seu amparo, o caminho da felicidade, até chegar a abismar-se no mesmo Deus, oceano sem praias e sem fundo, oceano de luz, de amor, de vida e de ventura. Este é o objeto único e íntegro das três partes que compõem a Suma Teológica.
Divide-se cada parte em questões, e estas em artigos. A primeira compreende 119 questões e 584 artigos. Subdivide-se a segunda em duas seções; contém a primeira seção 174 questões com 518 artigos, a segunda 189 e 924, respectivamente. A morte segou em pleno vigor a vida de S. Tomás antes de poder acabar a terceira parte, acrescentada, mais tarde,com os extratos de outras obras, em que o Santo Doutor havia explicado as matérias que ali não pôde tratar. Foram escritas pelo Santo as 190 primeiras questões, subdivididas em 559 artigos; o acrescentado, conhecido com o nome de Suplemento, contém 442 artigos e mais um apêndice de 3 questões e 10 artigos.
Total: 614 questões e 3.137 artigos.
Confessamos que coisa alguma do que aqui escrevemos é nossa. Tanto o plano como a doutrina pertencem exclusivamente a S. Tomás. Por nossa parte, nos limitamos a respigar e selecionar o que convinha a nosso intuito, ou, para melhor dizer, a condensar o pensamento do Santo Doutor em fórmulas catequéticas e a dispô-las na mesma ordem com que se estudam na Suma Teológica, com o fim de pôr o que poderíamos chamar sua tessitura e substância ao alcance de todas as inteligências
[2].
Outro título de glória de S. Tomás é a fama de que desfruta na Igreja como Cantor inspirado da Eucaristia. Os seus hinos, admiração dos sábios e artistas, pelo vigor e profundidade dos pensamentos, e pela espontaneidade e embelezadora fluidez da versificação, chegaram a popularizar-se de tal forma que até os mais humildes e iletrados os repetem com inesgotável complacência. Quanta majestade e esplendor, que imponente grandeza, que doçura e suavidade difundem as estrofes do
Lauda Sion,
Pange Lingua,
Sacris Solemniis,
Verbum Supernam,
O Salutaris Hostia,
Tantum Ergo Sacramentum, ou as do admirável Hino
Adoro te devote.
Se é incomparável a reputação de Santo Tomás como sábio e também como poeta, parece-nos fora de dúvida que não é menor a que lhe corresponde como catequista. Não é somente o robusto autor da Suma Teológica, manancial inesgotável de que se nutrem as inteligências eminentes; é também do ensino catequético, modesto, porém suculento manancial onde encontram alimento apropriado à sua condição as crianças e os humildes, e em cuja simplicidade e amenidade acham saboroso deleite homens da estatura de Bonald, Jouffroy ou Sully-Prudhomme.
É certo que, pessoalmente, o Doutor Angélico nunca deu aos seus escritos a forma catequética moderna; independente disso, ele é doutor catequista; primeiro, porque o essencial num catecismo não é a forma externa, mas sim a clareza, concisão e exatidão da doutrina, e nestas qualidades ninguém se avantaja ao Angélico Mestre; segundo, porque o primeiro catecismo, redigido por ordem e autoridade da Santa Sé na época do Concílio de Trento – e daqui provém seu nome de Catecismo Romano é obra quase exclusiva dos irmãos em religião e discípulos do Doutor Angélico; e terceiro, porque a outro irmão e esclarecido discípulo seu, o grande Teólogo espanhol do século XVII, João de Santo Tomás, coube a glória de haver sido o primeiro a extrair e condensar, em forma de diálogo, as doutrinas de seu Mestre, se bem que na exposição se acomodou ao plano e ordem do Catecismo e não ao da
Suma.
Por nossa parte, nos propusemos demonstrar com o presente trabalho que o ensino do Catecismo, tal como o pratica a Igreja, é uma derivação da assombrosa síntese doutrinal de S. Tomás. Oferecemos a todos os leitores, conforme menciona o título, a mesma Suma Teológica de S. Tomás em forma de Catecismo, para uso de todos os fiéis, e esperamos que, ao terminar a sua leitura, todos se tenham convencido de que a “assustadora” Suma pode transformar-se, sem perder qualquer dos seus caracteres essenciais, em um simples e luminoso catecismo, capaz de pôr ao alcance das crianças o mais recôndito da ciência sagrada.
Há tempo que se notam na Igreja desejos de simplificar e unificar o ensino da doutrina cristã, não só no que se refere ao fundo – e nisto não pode haver discrepâncias essenciais– , mas também quanto às fórmulas e enunciados.
Para consegui-lo, é mister recorrer à autoridade de um Doutor cujo prestígio se sobreponha ao dos outros e que seja universalmente reconhecido e acatado. Qual seja o Doutor escolhido pela Igreja, todos o sabemos. Dele e do seu ensino, especialmente na forma definitiva que adquiriu na Suma, se pode dizer o que com justiça se disse da própria Igreja e da sua doutrina: “Quanta magnificência! Que esplendorosos mistérios! Que encadeamento e férrea travação de verdades! Que amplitude de vistas! Quanta inocência e candura nas virtudes! Que concludentes testemunhos que, no curso dos séculos e especialmente em nossos dias, dão a autoridade, o gênio, e a arte dessa sublime instituição, guarda da verdade divina e solar afortunado de virtude!”
[3].
Certamente, apoiada nestas ou análogas razões, a Igreja tomou não só o espírito,como a letra da Suma Teológica para dar unidade ao seu ensino superior.
Termo médio entre o ensino doutrinal e o catequético ordinário, próximo a uniformizar-se como havemos dito, é a unificação de ambos que aqui intentamos. Desejamos que seja complemento do primeiro e preparação do segundo, com o fim de facilitar os dois! Subministrando o texto e a doutrina de S. Tomás e apresentando-a em forma catequética ordinária, pode utilizar-se, ou para ampliar as noções adquiridas no
catecismo, ou como introdução e também como complemento ao estudo direto da
Suma.
Estamos convencidos de que, à medida que se propague e enraíze nas inteligências a doutrina do Doutor Angélico, se irá convertendo, quanto o permite a condição humana, em consoladora realidade, o anelo manifestado pela Igreja, no hino dedicado a festejar a primeira manifestação da Sabedoria Eterna, apropriada na pessoa do Verbo Encarnado: “Então se desvanecerá o erro; então a mulher, o menino e o humilde escravo seguirão com segurança o caminho real; repelirão os embaidores da sociedade dos crentes, e uma só doutrina, expressão da verdade única, alimentará todos os espíritos.”
Tunc omnis error excidet,
Tunc sponsa, tunc et servuli
Secura per vestigia,
Viam sequentur regiam.
Gentium repellent perfidiam
Credentium de finibus;
Verax et omnes amica
Doctrina nos enutriet[4].
Preparando o terreno para implantar esta unidade tão ardentemente desejada, sem dúvida a Igreja proclamou a S. Tomás, Patrono Universal de todas as escolas católicas. O milagroso crucifixo do convento de Nápoles o havia já proclamado em vida do Santo Doutor, ao aprovar os seus escritos com estas memoráveis palavras:
Bene scripsisti de me, Thoma.
Escreveste bem de mim, Tomás.