Primeira parte
A esposa
Aumentava o ardor do sol do meio-dia, invadindo a estreita ruela. As paredes pintadas de cal cegavam com seu branco esplendor. O burrinho amarrado ao tronco descascado de uma acácia deixava pender tristemente a cabeça e se limitava a golpear raivosamente seu flanco com a cauda, para se livrar das moscas quando elas o atormentavam em excesso. Ao seu lado, duas crianças brincavam na areia, agachados sobre o caminho. Estavam muito absortos em seu jogo; contudo, ao passar a seu lado um homem alto, de ombros largos, o garoto se levantou e disse:
— A paz esteja contigo, José.
— Paz também para ti, Judas — respondeu o homem.
Deteve-se um instante. Deu uns tapinhas nas costas do menino e sorriu para a garota, que continuava agachada, observando o varão com seus grandes olhos negros.
— E também para ti, Sara — disse à pequena.
Retomou a caminhada. Ele caminhava devagar, imerso em seus pensamentos. As crianças voltaram a cabeça e o acompanharam com o olhar.
Ele se deteve diante do portão do muro. Antes de passar por ele, fechou os olhos por um instante e murmurou:
— Baruk ata Adonai, melek haolâm.
Era uma das berakoth que se recitavam ao longo do dia, em diversas circunstâncias; esta se rezava antes de dar um passo importante. Logo empurrou o portão rangedor que tão bem conhecia. Ele mesmo o tinha fabricado há tempos.
Ao transpor o portão, envolveu-o uma sombra agradável e o perfume agradável das folhas e das ervas aquecidas pelo sol. Seguindo a parede, um trilho estreito, protegido pela ramagem de um poderoso sicômoro, conduzia até o jardim. Uma pequena área se abria ao redor de seu tronco nodoso. O sol se filtrava através das folhas, semeando o chão de luminosas manchas cintilantes. Outrora, quando menino, esta pracinha parecia-lhe enorme, muito jeitosa para o jogo. Agora, parecia-lhe de um tamanho irrisório.
Debaixo da árvore, em um estrado, havia um homem deitado e coberto com uma colcha listrada, apesar do calor reinante. De longe podia-se ouvir sua respiração pesada, arfante. José se aproximou e inclinou-se sobre o homem adormecido. O ancião cochilava. Os cabelos brancos e ralos alçavam-se sobre sua cabeça como plumagem levantada pelo vento. A boca entreaberta mostrava os poucos dentes que lhe restavam; os lábios se perdiam no meio da barba crescida. Tremiam ligeiramente as mãos com as veias inchadas que descansavam sobre a colcha. O ancião trazia no dedo um grosso anel sem forma definida, rodeado por um fio para não cair.
José retrocedeu um pouco; sentou-se em uma banqueta, decidido a esperar pacientemente pelo despertar daquele que dormia. O silêncio era total, nenhum ruído se ouvia entre as folhas. Os pássaros tinham dormido nas ramagens. As lagartixas imóveis, como se fossem feitas de barro, aqueciam-se ao sol. De quando em quando, perdiam repentinamente sua imobilidade, e rápidas, sem o menor barulho, deslocavam-se de um lugar para outro para de novo caírem na mais absoluta quietude. Somente os grilos ocultos no capim acompanhavam o tempo com seu canto. Com as mãos apoiadas nos joelhos separados, José começou a recitar uma nova berakâ: “Bendito sejas, Senhor Eterno, Rei do Universo, por mandar a teu povo o silêncio que permite pensar em Ti e venerar Tua vontade...”
José amava o silêncio desde sua terna infância. O silêncio lhe falava com mais clareza do que as vozes. Exigia sempre o mesmo: esperar. A seu lado, transcorria a vida agitada e ruidosa. Ouviam-se tantas palavras desnecessárias, tantas queixas ditas com leviandade, tantas certezas que nada significavam realmente... Estava mergulhado nessa corrente com seu silêncio, como pedra em meio à correnteza. Ele esperava, ainda que, verdade seja dita, não soubesse o que estava aguardando. Esperava aquilo que o silêncio iria dizer-lhe.
Todas as tardes, após o tempo do calor, ouviam-se na praça situada fora da aldeia as flautas e os tamboris. Os jovens se reuniam para jogar e dançar. Para lá também iam, apressados, os irmãos menores de José. Chegavam até ele os sons distantes de vozes alegres, risadas e palmas...
Ele nunca acompanhava seus irmãos. Isto não queria dizer que as diversões não o atraíssem. Ainda era jovem. Tinha momentos de tentação. Os chamados do silêncio lutavam com os apelos do coração. Mas o silêncio terminava sempre por impor-se.
Os dias passavam cheios de trabalho na oficina. O trabalho estava marcado por momentos dedicados à recitação das preces. No sábado e nos dias de orações comuns, ele ia à sinagoga. Quando era seu turno, vestia o taled, erguia-se de seu lugar, aproximava-se do púlpito, tomava das mãos do hazzan o rolo santo da Torá enrolado em um cilindro de madeira. Voltava o rosto para o lugar onde se erguia o templo ainda inacabado e, com voz forte, lia o parágrafo correspondente.
Na oficina, sempre havia muito trabalho. Nunca faltavam clientes que vinham com encomendas. Gozava de prestígio por sua seriedade e habilidade. Além disso, não cobrava muito por seu trabalho. Não havia espaço para pechinchar com o cliente. Todos sabiam que, quando ele fixava um preço, este correspondia ao valor real do material empregado mais uma modesta quantia pelo trabalho realizado. Além disso, também cumpria o prazo estipulado.
Em sua oficina, sempre cantava a enxó e ressoava o martelo. Ouviam-se também com frequência umas vozes infantis. Ele – o homem silencioso – amava as crianças e tinha prazer em falar com elas. Interessavam-lhe mais os problemas das crianças que os problemas dos adultos. A oficina sempre acolhia um grupinho de meninos curiosos. Olhavam como ele trabalhava, faziam-lhe perguntas, e ele respondia. De vez em quando, chamava por um garoto e punha-lhe nas mãos uma serra ou uma raspadeira. Ensinava-lhe o modo de manejar a ferramenta. Dava-lhe um pedaço de madeira para desbastar. Certas vezes, elogiava o aluno habilidoso com umas palmadinhas; outras, balançava a cabeça e explicava-lhe os erros cometidos. Todas as crianças da aldeia o chamavam de tio. Para dizer a verdade, cabia-lhe este título como o primogênito de sua estirpe.
Rangeu o portão por onde havia entrado. Pelo trilho rente à parede aproximavam-se uns forasteiros. Caminhavam devagar, sem nenhuma pressa, vestidos com uma roupagem rica e estranha à região, e usavam barbas com um corte não habitual. Seus mantos não tinham as franjas prescritas pela Lei. Ambos pertenciam ao clã, mas outrora tinham deixado a aldeia da família para residirem longe, em Antioquia. Tornaram-se ricos mercadores. Vinham hoje em visita ao berço familiar.
Saudaram a José com uma inclinação de cabeça; ele correspondeu à saudação deles.
— A paz esteja com convosco.
— A paz esteja contigo. Tu deves ser José, o filho de Jacó? — perguntou um dos recém-chegados.
— É como disseste.
— Falamos ontem com teu pai. Ele quis que voltássemos outra vez para terminar nossa conversa em tua presença. Vejo, porém, que ele está dormindo.
— Não me atrevi a despertá-lo.
— Falas como uma criança — disse rindo o segundo mercador. Mas já faz tempo que és maior e o primogênito da família. Viemos exatamente para falar sobre ti.
A respiração cansada do adormecido fez-se irregular, roncando. A boca aberta se fechou, um espasmo atravessou seu rosto como uma contorção de dor. As pálpebras delgadas se entreabriram lentamente, deixando ver uns olhos claros. O ancião começou a olhar como se não entendesse aquilo que seus olhos viam. A seguir, porém, uma expressão de compreensão desenhou-se em seu rosto.
— Ah! Sois vós? Viestes? Bem, bem. José também está aqui?
— Estou aqui, pai.
Com um gesto, o ancião apontou-lhes seu filho.
— Já vos conheceis? É José, o meu primogênito.
Inclinaram a cabeça como para saudá-lo pela primeira vez.
— Apesar de sua juventude, desejamos demonstrar-lhe nosso respeito como futuro cabeça da linhagem — disse um dos mercadores. Sua voz denotava submissão. Talvez, também, algo de desprezo. Aqueles homens pareciam muito ricos. Brilhavam em seus dedos alguns anéis caros e bonitos, feitos com mais esmero do que aquele que adornava a mão de Jacó. Em volta do pescoço, traziam correntes de ouro das quais pendiam os carimbos mercantis. Aquele que falava no momento trazia também uma fita de ouro no cabelo e um brinco na orelha.
— Naturalmente — dizia ele —, hoje em dia os assuntos da família não têm a mesma importância que tiveram antigamente. As famílias estão dispersas pelo mundo.
— Não obstante, não esquecemos os assuntos de nossa estirpe — interveio o segundo mercador. As coisas acontecidas ultimamente...
Jacó ergueu as sobrancelhas:
— Repete isso outra vez.
— Suponho que todos vós já o sabeis. Estou pensando no assassinato dos filhos de Mariamme.
O comerciante que falava desta vez estava vestido de maneira menos chamativa que seu companheiro. Tinha o rosto magro, tenso, os olhos cercados por uma tênue rede de rugas. Uns tons avermelhados brilhavam em seu cabelo.
— Ele foi muito astuto. Primeiro fez correr o boato da culpa deles. Quase chorando, queixava-se de que estavam conspirando contra o próprio pai. Até o ponto em que conseguiu inflamar a população de Jericó, que estava determinada a lapidar de qualquer maneira a quem quer que se mostrasse partidário dos jovens príncipes. Então, chamou-os a Sebaste e os mandou estrangular.
— E assim ele se desfez dos Asmoneus – confirmou o primeiro dos visitantes —, a estirpe real. Agora, quem poderá tomar-lhe a coroa da Judeia? Já conseguiu nomear seu sucessor ao filho de sua amante árabe.
Fez-se um silêncio em que se podia ouvir com mais clareza o canto dos grilos. Neste silêncio, Jacó começou a falar com a voz sufocada.
— Naturalmente, ouvimos falar de tudo isto. Mas o que tem isso a ver com nossa casa?
Os mercadores trocaram um olhar de cumplicidade.
— Avisaram-nos — disse o de rosto magro – que Herodes deu ordem a seus espiões para que vigiem com muita atenção os membros de nosso clã. Temos provas, Menahem e eu — e apontou para seu companheiro — de que gente suspeita está rondando nossas casas.
— Aqui não vimos ninguém – disse Jacó, e a voz do ancião denotava orgulho. — Somos a estirpe santa. O Onipotente cuida de nós. Se alguém tentasse atacar-nos, todo o Israel se levantaria em nossa defesa.
Os dois comerciantes sorriram com ironia.
— Tua confiança é exagerada, Jacó — exclamou Menahem. Tu acreditas que ainda estamos vivendo em tempos de milagres, quando o Onipotente cuidava de Israel a todo momento. Esses são fatos passados que se contam nas sinagogas. Em outros tempos, nossa estirpe era importante. Era a linhagem real. Desde então, passaram séculos. Todos se dispersaram. Uns tiveram sorte, outros se deram mal... Vós não vos movestes daqui, sois como uma ilha de lembranças passadas. Costumo dizer a Fiaba — e apontou para o comerciante de cabelos vermelhos — que é bom recordar que gente de nosso clã continua vivendo em Belém. Se alguma de nossas filhas precisar de marido, poderíamos vir em busca de um jovem honesto...
— Tal como aconteceu em nossa história — acrescentou Fiaba.
— Justamente — prosseguiu Menahem —, os laços familiares são uma coisa muito bonita. Mas desde que ele fixou o olhar em nossa estirpe, também podem ser assuntos perigosos. Foi por isso que viemos.
— Dizei, então, o que quereis.
Ambos os mercadores voltaram a se olhar. Cabisbaixo e inquieto, Fiaba dava voltas em seus anéis.
— Ficaria melhor – disse ele – que os membros de nossa estirpe não permaneçam todos juntos, agrupados neste local, mas que tentassem a sorte no mundo, tal como nós fizemos...
— Tu queres — a voz de Jacó soou horrorizada — que todos abandonem a terra de Davi?
— Vamos esquecer Davi de uma vez por todas! — exclamou Menahem, impaciente. — Os fariseus não param de falar sobre certo descendente de Davi, e os espias de Herodes abrem os ouvidos. Não estou disposto a perder tudo o que tenho, inclusive a vida, pelo mero fato de ter tido, há séculos, um rei na família; e ele — apontou para Fiaba — tampouco está disposto.
Interrompeu-se de novo caiu o silêncio. O peito de Jacó se erguia em uma respiração rápida, e tremiam-lhe os lábios perdidos no meio da barba branca.
— Tu dizes coisas ímpias — gemeu ele.
— Não, não. — Fiaba tentava suavizar a explosão de Menahem. — Ele não pensava em nada de ímpio. É toda a estirpe que o preocupa. Eu disse: seria bom que se dispersassem os membros do clã. Mas, é claro, nem todos podem caminhar, e tampouco necessitam de fazê-lo. Os que trabalham a terra e se tornaram verdadeiros am-ha’arez não chamam a atenção. Trata-se apenas daqueles que alcançaram certa importância...
Os dois olharam significativamente para o homem sentado ao lado, que se manteve calado durante todo o tempo. Jacó disse:
— Vejo que pensais em José. Ele é um naggar.
— Aí está, o trabalho dele faz com que se destaque — disse Fiaba. — Mal chegamos em Jerusalém, já nos falaram sobre ele. Dizem que é o melhor naggar de toda a Judeia.
Fiaba voltou-se para José:
— É verdade que vem gente de muito longe para ver-te? É verdade que os funcionários reais te encomendaram trabalhos?
— Sim, aconteceu o caso — reconheceu ele.
— Pois então, tu mesmo estás vendo — Fiaba dirigiu-se de novo a Jacó. Os espiões devem saber disso.
E voltou-se outra vez para José:
— Tens amigos fariseus?
José negou com a cabeça.
— Não conheço nenhum fariseu. Talvez conheça apenas aqueles que vieram à minha oficina com alguma encomenda.
— Basta! — interrompeu Menahem. — Os fariseus ficaram loucos, e suas loucuras podem acarretar desgraças para toda a nação. Conspiram, proclamam certas profecias, opõem-se às ordens de Herodes. Já os castigou severamente uma vez, e eles voltam à carga. No fundo, é um rei inteligente...
— Maldito descendente de Ismael! — cuspiu Jacó.
Menahem fez um gesto de impaciência com a mão.
— Estas são também velhas histórias! Histórias esquecidas! Herodes cuida da paz e sabe sair-se muito bem com os romanos. Todos ganhamos com o assunto. Que seja rei, ele e seus filhos... contanto que possamos fazer comércio tranquilamente.
— Mas fazem assassinatos... — balbuciava Jacó. — Tu mesmo o disseste.
— E quem não assassina hoje em dia? Os Asmoneus matavam do mesmo jeito. Tudo se ajeita com punhal e veneno. Conheço muitos que vivem unicamente da preparação de venenos. E, acredita-me, vivem bem!
— Um sem-vergonha! — disse Jacó, indignado. — Contam-se coisas horrendas sobre o que acontece em sua corte. Ouvi dizer que manda raptar meninas, e até meninos.
— Tu, Jacó, vives aqui como se vivesses em tempos de nosso antepassado Abraão — disse Fiaba, e alisou a barba. — O que ocorre na corte de Herodes acontece em todo o mundo. O mesmo ocorre em Roma com César. O mundo é assim. Não iremos mudá-lo. Uma pessoa não pode permanecer aferrada aos velhos costumes e passar o tempo chateado. É preciso ter senso comum. O saber e a cultura vêm de Roma. Não podemos ser mais bobos que aqueles que dominam o mundo... Mas não era este o assunto, certo? Trata-se de que Herodes está de olho em nossa estirpe. Isto não teria acontecido se não fosse o falatório dos fariseus. São eles que fazem as coisas como estão! Mas, já que aconteceu, para a segurança de toda a linhagem — realçando as últimas palavras —, os que chamam a atenção não deveriam permanecer aqui em Belém... Nossa opinião é que José tem de ir embora. Que ele venha conosco para Antioquia. É uma cidade grande, formosa, rica. Encontramos trabalho para ele e o casaremos. Por que ainda não está casado? Um homem na sua idade já deveria ser pai.
Jacó não respondeu, apenas apertou fortemente os lábios e balançou a cabeça. Fiaba moveu seu olhar para José. O jovem fez um rápido movimento com as mãos que não significava nada. Não lhe era fácil explicar o assunto. Muitas vezes lhe haviam proposto casar-se. Seu pai pressionava, exigia que se decidisse de uma vez. Toda a família estava agitada. O filho maior, o futuro chefe da estirpe...
— O que estás esperando? — perguntavam-lhe. — Esperas por uma princesa? Não há bastantes mulheres bonitas na Judeia? Poderias escolher até mesmo entre as filhas dos sacerdotes.
E apesar de todas as pressões, ele continuava esperando.
— Pusemos o dedo na chaga — disse Jacó. — Sua voz trêmula denotava dor e ressentimento. Vai completar vinte e quatro anos. É hora de decidir-se!
— Ele se decidirá quando vier conosco — dizia Fiaba. Conhecerá o mundo, aprenderá. Logo verás, vamos encontrar-te uma esposa — e fez a José uma piscadela de cumplicidade — bonita e rica...
José continuava calado. De novo reinou um longo silêncio.
— Dá-nos o teu parecer sobre isto que Menahem e Fiaba acabam de dizer — rangeu a voz de Jacó na direção de seu filho.
Ele repetiu com a mão o movimento intraduzível. Não tinha o menor desejo de abandonar sua aldeia natal. Aqui havia silêncio, e ele tinha tanto amor pelo silêncio! No silêncio, o tempo fluía imperceptível. Havia momentos de rebeldia, de impaciência, mas logo voltava a paz. Estava consciente do mal-estar de seu pai em relação a ele, e isto lhe pesava como uma pedra sobre o coração. Não obstante, a íntima convicção de que esta espera era exigida pelo Altíssimo superava aquele sentimento. O que iria acontecer se o obrigassem a partir e, então, se realizasse o que tinha estado a esperar durante tantos anos?
— Não me parece razoável ir embora com eles — disse. — Não acredito nos temores que mencionam. Esse outro mundo não me atrai em nada...
— Ficaste completamente louco aqui neste teu buraco! — sibilou Menahem.
— Não te aborreças! — Fiaba, como sempre, tratava de apaziguar as veementes explosões de seu companheiro. — José fala assim porque não sabe como é o mundo. Provavelmente acreditas — dirigindo-se a José — que abandonamos a fé, esquecemos a pureza e a Lei. É verdade que não somos como os daqui. Vivemos entre goyim, no que podemos diferençar-nos demais. Por que manter o povo à distância? Mas em casa guardamos os preceitos. Digo: vem conosco.
— Eu te digo o mesmo: vem — começou Menahem, conciliador. — O que te retém aqui? Um bom naggar como tu irá em frente e ganhará prestígio em qualquer parte.
— Inclusive, ganharás mais em nossa cidade. Irão valorizar-te melhor e te pagarão mais. Ali há espaço onde gastar o dinheiro.
— Não desejo riquezas — disse José.
— A riqueza é a prova da proteção do Altíssimo — Fiaba continuava tentando convencê-lo.
— No entanto, o Altíssimo tomou tudo de Jó...
— Não vou discutir contigo, não sou muito versado nos escritos. Na sinagoga, porém, se diz frequentemente que o Altíssimo não ajuda os pecadores. Por acaso não tens a mesma opinião?
— O Altíssimo exige que nós ajudemos os pobres.
— Os pobres, se não são pecadores, são tontos e preguiçosos — apostrofou outra vez Menahem. — É exatamente entre eles que os fariseus encontraram seguidores. Ficam falando para eles sobre um Messias que virá e dará riqueza a todos. E se também tu falas assim, Herodes estenderá sua mão em tua direção. E então todo o clã vai sofrer.
— Sim, então toda a estirpe pode desaparecer — a voz de Fiaba, até então tranquila, tornou-se inflamada. — Por esta razão deverias ir embora — e voltou-se para o velho patriarca. — Jacó, tens de ordenar que ele se vá!
Jacó alisava sua barba cor de neve com um gesto majestoso. Agora, exatamente quando Fiaba, sempre tão frio, começava a exteriorizar sua excitação, o cabeça da linhagem parecia recuperar a tranquilidade.
— Ouviste tudo? — perguntou a seu filho.
José assentiu com a cabeça. Jacó, acariciando a barba, prosseguiu:
— Não me agrada o que eles disseram. Não me agrada. Mas há certa razão no que dizem. Eu vou morrer logo. Tu és o meu primogênito. Dentro em pouco, o chefe do clã. Se Herodes ficar de olho em nossa estirpe e mandar seus soldados aqui, não quero que ele te encontre. Concordo que tens de ir embora. Exijo-o. Herodes está velho. Logo morrerá. Então, voltarás...
A resistência à ordem recebida lutava em José com o respeito a seu pai. Até então, nunca se opusera diretamente às suas ordens. Quando seu pai insistia em que se casasse, a única coisa que pedia era a permissão para postergar sua decisão. “Permita-me, pai — dizia ele —, que eu encontre a mulher a quem estou esperando...” Agora, entretanto, não lhe era possível tentar um adiamento. Tinha de dobrar-se ou enfrentá-lo diretamente. Olhava com terno respeito o rosto diminuído e deprimido de seu pai. Lembrava-se de como ele era antes, poderoso e magnífico. Sabia de seu amor por ele. Compreendia o grande sacrifício de Jacó para afastá-lo no momento em que ele mesmo se preparava para morrer. Os pais querem morrer rodeados de seus filhos e fazer-lhe as últimas recomendações. Contudo, pensava, ser pai é enfrentar o maior dos sacrifícios: entregar aquele que mais se ama, renunciar à sua presença no momento da morte, não poder impor as mãos sobre a cabeça para transmitir-lhe a herança. Alguém pode opor-se diante de semelhante sacrifício? José inclinou a cabeça profundamente, dizendo:
— Se esta é a tua vontade, pai, eu irei.
— Eu o quero... mas isto não significa que eu queira que te vás com eles. Antes de decidires aonde irás, desejo que peças um bom conselho. Conheço o homem que pode dar-te este conselho...
— Dize-me o nome dele, pai.
— Outrora, nossa casa se uniu à linhagem sacerdotal. O último representante daquela estirpe vive além das montanhas... — A mão seca apontou a direção. — É um ancião, pouco mais jovem que eu. Chama-se Zacarias, filho de Arão. Sempre teve fama de sábio e piedoso. Não creio que ele tenha mudado. Vai vê-lo; vai amanhã mesmo. Faze-lhe uma visita, pede-lhe conselho...
— Será feito como disseste.
Jacó estendeu as duas mãos à sua frente e colocou-as sobre os ombros de seu filho. Permaneceram nesta posição, face a face, por um momento, e seus lábios murmuraram uma oração silenciosa.