Para que veio Cristo ao mundo? Para reparar. Não veio com outro fim. Veio para restaurar a obra divina que o pecado tinha devastado; para restituir ao homem a vida sobrenatural que ele tinha perdido; para compensar, pelos seus merecimentos, a injúria feita a seu Eterno Pai no paraíso terrestre, e as outras injúrias que a malícia dos homens renovam e centuplicam todos os dias; para expiar pelos seus sofrimentos — recordemos o presépio, a vida oculta, a cruz — os egoísmos que se ostentam desde a origem dos tempos.
Esta obra da Reparação, Nosso Senhor podia realizá-la sozinho. Mas não quis que assim fosse e por isso escolheu associados; esses associados somos nós, cada um de nós, cada cristão.
É isto o que temos de compreender, porque constitui a base de toda a doutrina da Reparação.
S. Paulo, explicando aos primeiros cristãos a supereminente dignidade que lhes era conferida pelo fato de terem sido chamados a compartilhar da própria vida do Filho de Deus, dizia-lhes: “A mesma vida, a vida do Pai, circula em Jesus e em vós; em Jesus, por natureza: ele é a cabeça, o chefe; em vós, por adoção: vós sois membros, participantes da vida da cabeça que, em virtude do seu sacrifício, vos naturalizou divinos. A unidade só é perfeita se os membros estiverem unidos à cabeça e a cabeça aos membros. A pessoa de Cristo é a cabeça; vós sois os membros, o seu corpo místico”.
Portanto, segundo a doutrina católica, segundo o ensinamento de S. Paulo, e o do próprio Salvador quando diz: “Eu sou a videira e vós os ramos”, a pessoa humano-divina de Nosso Senhor, tal como viveu outrora em Belém, em Nazaré, em Jerusalém, tal como vive agora na Eucaristia, tal como vive e viverá até ao fim dos séculos no céu, não constitui — foi ele que assim o quis — o Cristo total.
Cristo total é ele, Cristo em pessoa, o chefe, a cabeça, e “mais” nós, o seu corpo místico
[1].
E esta união tão estreita com a sua vida explica o motivo pelo qual Nosso Senhor nos associou tão intimamente à sua obra, a Redenção.
Mais uma vez repetimos, o Salvador podia muito bem executar tudo por si só. Não precisa de nós para acrescentar seja o que for aos seus merecimentos, mas quer servir-se de nós para acrescentar alguma coisa aos nossos. Ele é o Cristo; e nós, cristãos, somos outros Cristos —
alter Christus. Temos de trabalhar em colaboração. A Redenção só se efetuará pela vontade do Salvador, o primeiro Cristo, e pela de todos os cristãos, os outros Cristos. É fora de dúvida que a nossa participação nessa obra está longe de ter uma importância igual à sua, a qual, possuindo por si mesma um valor infinito, é infinitamente suficiente; a nossa podia ser dispensada; se Deus a exige, é só pelo amor que nos tem.
No ofertório da missa, o padre enche primeiro o cálice de vinho. E depois, obrigatoriamente, junta-lhe uma gota de água. Isto simboliza o papel de Nosso Senhor e o nosso, e o valor proporcional da nossa intervenção e da sua. O vinho, só por si, bastaria para a consagração. Contudo, requer-se obrigatoriamente a gota de água e, pela força das palavras divinas, essa gota é mudada pouco depois, como o vinho, em Sangue de Cristo.
A nossa parte no resgate do mundo é, se assim quiserem chamar-lhe, infinitesimal — o que é uma gota de água? —, mas Deus exige-a e vai transubstanciar essa coisa ínfima, unindo-a à sua própria oferenda. Esse nada torna-se então onipotente, com a onipotência que Deus lhe comunica
[2]. Graças a esse “nada”, que agora é alguma coisa, as almas serão resgatadas. Sem o oferecimento desse nada — por si mesmo insignificante, é verdade, mas preciosíssimo pelo fato da nossa união com Cristo —, muitas almas irão talvez perder-se. O mundo precisa de todos os seus salvadores: de Jesus, o primeiro de todos, o Salvador por excelência, e de cada um de nós, chamados a colaborar com ele no resgate da humanidade. “O gênero humano, diz, Lacordaire, tinha perecido unicamente por via de solidariedade, isto é, por efeito da sua comunidade substancial e moral com Adão, seu autor; portanto, era justo que pudesse ser salvo na medida e segundo o modo da sua perdição, isto é, por via de solidariedade... Onde a solidariedade do mal tudo perdera, a solidariedade do bem tudo restabeleceu”.
[3]
Não reconhecer este dever da nossa participação na obra redentora é ignorar quase tudo da nossa dignidade de cristãos. Procurar subtrair-se a ela é faltar à mais nobre, à mais imperiosa das obrigações.
Examinemos mais de perto esta questão. De que meio se serviu Jesus para reparar?
Do sacrifício.
Há aqui um enigma. O Filho de Deus, para repor a sua obra no estado primitivo, para tudo restaurar —
instaurare omnia — não precisava ter escolhido esse caminho de uma vida trabalhosa, humilde e dolorosa, mas esse foi o que escolheu; não quis reparar por outro meio, senão pelo sofrimento.
E nós, associados obrigatoriamente à sua missão pela nossa solidariedade com ele na unidade do Corpo Místico, estamos, por isso, obrigatoriamente associados à sua Paixão. É por isso que S. Paulo, quando demonstra a necessidade de colaborarmos na obra redentora do Salvador, querendo ir logo ao ponto capital, não diz: “completar a missão de Cristo”, mas sim: “completar a sua paixão”. É impossível uma coisa sem a outra; elas se confundem. Temos de reparar com Cristo, e não devemos pensar em reparar de outra maneira que não seja pelo nosso sacrifício unido ao seu.
“Jesus Cristo, diz Bossuet, para ser o salvador dos homens, quis ser vítima por eles. Mas, por efeito da unidade do Corpo Místico, se o chefe é imolado, todos os membros devem também ser hóstias vivas”
[4].
Logo, é esta a progressão ou, mais exatamente, a equação — ser cristão, ser salvador, ser “hóstia”.
E não nos pareça estranha esta palavra: “hóstia”. Não é novidade. Trata-se de uma doutrina que é tão antiga como o Evangelho e que constitui o próprio fundo da pregação de S. Paulo, dos primeiros cristãos e de toda a Igreja através dos tempos, pregação que o Apóstolo resumia nesta frase bem clara dirigida aos fiéis de Roma: “Exorto-vos, rogo-vos que ofereçais os vossos corpos como hóstia viva, santa, agradável a Deus,
ut exhibeatis corpora vestra hostiam viventem, sanctam, Deo placentem” (Rm 12,1).
[5]
Ninguém pense que é cristão se procura levar uma vida toda feita de suavidade, no fim da qual tenciona passar desta terra, onde estava muito bem, para o céu onde vai estar melhor ainda, para o céu merecido por uma existência cujo fim principal foi, na prática, deixar aos outros o laborioso cuidado de trabalhar com Cristo na Redenção do mundo. O Evangelho do Mestre não admite semelhante programa, e é em outra coisa muito diferente que consiste, para nos servirmos de mais uma expressão de Bossuet, “a pavorosa seriedade da vida humana”.
“Bem sei – escreve, com a sua acrimônia habitual, desta vez justificada, o autor de uma Introdução ao “Diário de um Convertido” a que nos referimos no Prefácio –, bem sei que há muitos animais chamados racionais que parecem viver sessenta ou oitenta anos e que um dia são levados para o cemitério sem nunca terem chegado a sair do nada. Contentam-se com as realidades aparentes, aos seus olhos nada mais existe”. “Felizmente, acrescenta ele, também há verdadeiros homens, verdadeiros viventes, que não receberam a alma em vão”.
E o convertido — que ia então a caminho da verdade — dizia por seu turno: “Estou cada vez mais espantado ao ver que quase todos os homens continuam a viver no maior sossego, sem inquietação alguma e sem se admirarem seja do que for, de sorriso satisfeito nas faces nédias e não se lembrando nunca de que há abismos em volta de nós”.
6]
Sim, há abismos que nos cercam: o abismo do pecado dos homens e o abismo do amor do Salvador, o segundo colocado por Deus ao lado do primeiro. E nós encontramo-nos entre ambos, com uma missão imperiosa, urgente, nitidamente definida.
Por esse sinal se conhece o verdadeiro discípulo de Cristo: ele descobriu esses abismos e desde então vive perturbado, sob o império de uma inquietação sem remédio, motivada pelo problema da salvação do mundo, pela pouca eficácia do sangue de Cristo e pela parte de responsabilidade que lhe toca na história da vida divina na terra.
Precisamos reparar com Nosso Senhor, que veio ao mundo unicamente para esse fim, e com quem nós formamos uma unidade.
É necessário reparar pelo meio que ele escolheu, isto é, pelo sacrifício.
Dir-se-ia que grande parte dos cristãos nem sequer suspeitam da existência desta dupla obrigação da vida cristã e persuadem-se, ao menos na prática, de que há duas doutrinas do Salvador, ou duas maneiras de interpretar a sua lei: uma que aceita a abnegação, e outra que se esforça por evitá-la; uma que se decide a praticar a mortificação, e outra que se põe na defensiva contra tudo o que incomoda. Numa palavra: de um lado um cristianismo fácil, burguês, confortável, para a maioria; do outro lado, um cristianismo austero e crucificador, para poucas almas, para certas pessoas de caráter mais sombrio ou que um atrativo especial — aliás extravagante — seduz.
O Santo Cura d'Ars escrevia: “Tudo nos traz a cruz à memória. Nós mesmos somos feitos em forma de cruz. A cruz destila bálsamo e transpira doçura; quanto mais nos unimos a ela e a apertamos nas mãos e ao coração, tanto mais dela fazemos es correr a unção de que está cheia. É o livro mais sábio que se pode ler; os que não conhecem este livro são ignorantes, ainda que conheçam todos os outros; não há verdadeiro sábio além dos que o amam, consultam e aprofundam. Amargo como é, nada alegra mais a alma que afundar-se em suas amarguras. Quanto mais frequentamos aquela escola, tanto mais desejamos ali ficar, como num lugar onde se passa o tempo agradavelmente”. Parece muito natural que o Cura d'Ars assim falasse: era um santo!
Num noviciado de Franciscanas Missionárias de Maria, no Canadá, pedem-se seis religiosas para irem para a China tratar dos leprosos. As noviças são quarenta: quarenta reclamam a honra de partir. Diz-se: “É a sua vocação!…”
E justamente esses exemplos que deviam arrastar os cristãos e dar-lhes a entender que, se não são obrigados a tanto, são contudo obrigados a alguma coisa, justamente esses exemplos servem-lhes de argumentos para se não julgarem obrigados a nada.
Se os religiosos e religiosas passam a noite ao pé do altar, ou se levantam às duas horas da madrugada… dizem que é justamente para que nós possamos saborear as delícias de uma boa cama. Se passam o tempo a orar… é para nos dispensarem, a nós, dessa incumbência tão aborrecida. Privam-se de muitas coisas na alimentação... mais uma razão para que nada nos falte nas nossas refeições. Se vivem em celas caiadas de branco, que têm por únicos adornos, como no Carmelo, uma cruz, uma pia de água benta, uma caveira e uma disciplina… é para podermos guarnecer as nossas casas com mil enfeites e enchê-las do mais puro conforto moderno. Se suportam, sem procurar atenuá-lo, o rigor do frio... é para que nós conservemos, graças a um aquecimento bem graduado, uma temperatura agradável nos nossos aposentos. Se dormem em cima de uma tábua ou de uma fina enxerga… por que esse fato nos impediria de usar colchas de seda e lençóis bordados? Se têm por única joia um crucifixo… por isso mesmo podemos trazer sobre nós um tesouro em berloques e colares de pérolas.
É evidente que a vida perfeita comporta um luxo de abnegação que a vida cristã ordinária não exige. Mas julga-se acaso que a vida cristã, mesmo ordinária, desde que seja inteligente e sincera, pode harmonizar-se com essa preocupação inquieta e absolutamente pagã das comodidades que o materialismo moderno pretende impor — e que, desgraçadamente, consegue impor com bastante facilidade — a tantos discípulos de Jesus?
Porventura estará Cristo dividido?
Nonne divisus est Christus? Haverá dois Cristos? Um Cristo crucificado que só os que se crucificam podem seguir, e outro Cristo mais condescendente, que pode muito bem ser seguido por quem procura todos os gozos e todos os prazeres?
S. Paulo dizia: “Não conheço dois Cristos. Conheço um só: Cristo crucificado.
Christum et hunc crucifixum”.
As coisas já não são o que eram no tempo de S. Paulo. Hoje se conhecem dois. O primeiro, o verdadeiro, não bastava. Inventaram outro: um Cristo sem cruz nem doutrina crucificadora, um Cristo sem esses dois paus grosseiros que projetam uma sombra impertinente e aflitiva, um Cristo cujas exigências se resumem nestas palavras: — “Vivei a vossa vontade... e eu garanto-vos a eternidade inteira com a condição de me concederdes, no termo da vossa existência, “a adesão de um pensamento obscurecido, o arrependimento de uma vontade que desfalece e a esmola do vosso último suspiro”.
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Esse Cristo, para cristãos que não querem sacrificar-se, não existe. O discípulo não é mais do que o seu Mestre. Se o Salvador sofreu, o cristão, sob pena de atraiçoar o seu nome ou de faltar à sua missão, tem de ser, de alguma forma — como iremos explicar — mas sempre, e necessariamente, amigo do sacrifício.
Um grande estadista belga tinha tomado por divisa esta frase: “Fora o descanso”. O dia da felicidade virá, e esse dia, que talvez já esteja próximo, não terá fim. Até então o tempo nos é concedido para merecermos “a alegria do Senhor” —
Intra in gaudium Domini tui. Mas só entraremos na alegria do Senhor se tivermos tido coragem de compartilhar, na terra, a imolação do Senhor. Cristo foi o primeiro a querer padecer para entrar na glória. “O Gólgota não é uma figura de retórica”. E para nós a regra é a mesma:
Oportuit pati et ita intrare in gloriam: é preciso sofrer para entrar na glória (Lc 24,26).
Se quisermos triunfar com ele, temos de combater com ele.
Laborare mecum (trabalhar comigo), são as palavras que Santo Inácio põe na boca de Jesus na “Contemplação do Reino”. Pizarro, um dos conquistadores da América do Sul, ao desembarcar na praia, atira a espada ao chão para traçar uma linha divisória: “Os que têm medo fiquem desse lado: os valentes sigam-me”.
É austera esta linguagem e, por mais clara que seja a doutrina, há muitos que retrocedem diante da abnegação que se impõe como consagração obrigatória de toda a vida cristã.
— “Como me assustam aquelas duas vigas em cruz, erguidas no alto do Calvário! E antes queria esconder-me atrás delas que pregar-me nelas.
— “Sim, o lenho é duro, se se olhar só para ele. O lenho é uma coisa morta, mas nele está pregado um ser vivo. Se se olha bem — como se deve olhar — já se não veem as duas vigas cujo contorno desapareceu, ou pelo menos se esbate, e o que prende a atenção é o corpo que ali está cravado, e no meio desse corpo, irradiando por uma chaga aberta, o coração. Diz-se geralmente: “o crucifixo”. Esse termo não fica bem; parece que se quer designar uma coisa. Deve-se dizer: “o Crucificado”, indicando assim uma pessoa”.
— “Uma pessoa? É certo: uma pessoa humana e ao mesmo tempo divina... Sois vós, meu Deus, que estais aí cravado!…
— “Sim, sou eu”.
— “Parece-me que já compreendo melhor, que compreendo quase tudo. Padecerei convosco, Senhor, mas vós padecereis comigo. Convosco terei força, caminharei resoluto”.
— “Para que o teu ânimo cresça mais ainda, lança, a partir da minha cruz, um olhar sobre o mundo. Vê aqueles homens que descem do Calvário, os meus verdugos, e lá embaixo, na cidade adormecida, a multidão que não adivinha nada e de nada suspeita. Preciso dos teus sacrifícios para que a minha Redenção chegue até aquelas almas. É a minha vez de te chamar em meu auxílio, porque eu quis precisar de ti. Contigo posso tudo, e sem ti não posso nada. Queres que salvemos o mundo? Ou preferes ir-te embora, também tu, como a maioria, como todos?”
— “É a mim que falais, Senhor? Pois não sabeis o que sou?”
— “És um dos meus. Não basta isso para eu te pedir que trabalhes comigo, que te fadigues e sofras comigo? A obra é de tal importância que bem merece, eu te asseguro, o esforço que nela hás de empregar, ainda que esse esforço corresponda — na condição em que te encontras e no estado de vida em que a minha Providência te colocou — à oblação de ti mesmo como hóstia viva... comigo...”
— “Se vos parece que sou capaz... Convosco, Senhor, como hóstia viva... oh! sim! de todo o coração! Aceitai-me.”