Deus chamou-nos para nos tornar “homens novos” em Jesus Cristo. Pelo batismo, Ele confere-nos uma nova vida sobrenatural, faz-nos participantes da sua existência. Esta vida, porém, não deve jazer escondida, como um segredo, no mais íntimo da nossa alma; deve determinar a transformação de toda a nossa personalidade. A incomensurável misericórdia de Deus não nos chamou somente a uma perfeição ética, que não é essencialmente distinta da perfeição natural e que apenas recebe transcendência sobrenatural pelo caminho oculto da graça, mas sim à sobrenatural plenitude em Jesus Cristo, que, mesmo qualitativamente, é coisa completamente diferente da simples virtude natural. “Para que proclameis as virtudes daquele que vos chamou das trevas para a claridade da sua luz” (1Pd 2,9). Quase todas as orações do ano se referem ao caminho que nos conduz da infusão do princípio da vida sobrenatural, no batismo, à transformação em Cristo — à plena vitória de Jesus Cristo em nós, que é a santidade.
Ao tratarmos, nas páginas que se seguem, da transformação em Cristo, damos por suposto o fundamento teológico do aspecto dogmático deste mistério. Neste assunto, baseamo-nos inteiramente na tradição clássica, conforme aparece nos Padres da Igreja, e de um modo especial em Santo Agostinho e no Doutor Angélico, São Tomás de Aquino. O nosso tema diz respeito quase exclusivamente aos efeitos da vida sobrenatural no
ethos da personalidade, à formação da vida que vemos irradiar do rosto do “novo homem de Cristo”. Não consideraremos de maneira expressa os efeitos da transformação em Cristo na vivência mística. Em contrapartida, procuraremos definir a natureza de algumas das atividades características do “homem novo” em Cristo, e mostrar assim o caminho que somos chamados a percorrer, e o objetivo a atingir. Facilmente se desconhece a importância da vocação do cristão, e com facilidade se diminui e até se rebaixa o que Deus espera de nós.
Embora comecemos por expor as atitudes que se encontram no princípio deste caminho, a sequência em que serão consideradas as virtudes sobrenaturais não pretende apresentar-nos uma estrutura, no sentido estrito da palavra. As virtudes sobrenaturais assentam de tal maneira umas nas outras, que cada uma delas, em determinado sentido, constitui pressuposto das restantes, e, em outro sentido, aparece como fruto dessas mesmas virtudes. A ordenação de virtudes que aqui estudaremos não reflete tanto o gradual processo da transformação em Jesus Cristo, como a apresentação aos nossos olhos da riqueza de vida que semelhante transformação traz consigo. Aqui encontraremos de novo a
coincidentia oppositorum[1] que se dá em Deus: a penetração de umas virtudes nas outras, a unidade de perfeições que no plano natural apenas podem apresentar-se-nos separadamente, como se umas às outras se excluíssem.
A presente obra ocupa-se somente de uma parte das virtudes e atitudes que constituem a riqueza da vida em Jesus Cristo, para mostrar como é inteiramente novo, do ponto de vista qualitativo, o
ethos sobrenatural na sua mais íntima maneira de ser. Mesmo dentro destes limites não pretende ser um trabalho exaustivo, incompatível com um tema inesgotável como este; pertence à categoria das obras que necessitam de outras para serem completadas.
Se, com as razões a seguir expostas, conseguisse que a misteriosa grandeza do chamamento do Senhor atingisse todo o seu esplendor e despertasse em alguns corações o desejo de se transformarem em Cristo, teria alcançado o pleno objetivo deste livro. O mais importante realmente é que saibamos reconhecer a elevação, a amplitude e a profundidade da nossa vocação, que saibamos reconhecer plenamente a mensagem do Evangelho quando nos convida, não só a sermos os filhos e sucessores de Jesus Cristo, mas ainda a transformar-nos nEle (2Cor 3,18): “Nós, pois, vendo face a face, como num espelho, a glória do Senhor, somos transformados na mesma imagem, de claridade em claridade, como pelo Espírito do Senhor”.