Prefácio
Este livro contém a substância do curso inaugural da Cátedra Cardeal Mercier, feito na Universidade de Lovaina, no mês de maio de 1952.
Solicitados a permitir a publicação do texto, consentimos nisto de muito bom grado. Encontrar-se-ão, pois, aqui as lições exatamente como foram proferidas, nenhuma oferecendo maior interesse fora da série que elas constituem. Algumas notas, mais ou menos numerosas segundo os capítulos, ou as referências que acrescentamos com as vistas à publicação, não seriam capazes de transformar este curso em uma obra de erudição. A História não é aqui senão matéria para a reflexão filosófica e, ocasionalmente, oportunidade para um leigo levantar uma questão aos teólogos. Não conhecemos nenhum tratamento teológico explícito da noção de Cristandade. Desejaríamos saber se esta noção deve ser tida por estritamente idêntica àquela da Igreja, ou se uma se distingue da outra, e como? As observações esparsas ao longo deste livro, e especialmente aquelas do fim, não exprimem nenhuma intenção de dogmatizar a respeito de um problema que ultrapassa a competência do historiador e do filósofo. Têm por único objeto reunir alguns de seus dados e fixar o sentido exato da questão.
As vistas descontínuas sobre a história, que servem de ocasião para levantar o problema, marcam as etapas de uma evolução que não consideramos absolutamente um progresso. Será visto claramente isto, nós o esperamos, mas podem ocorrer confusões a respeito da própria matéria de nossas reflexões. Não se trata aqui, diretamente, da noção de Igreja, nem mesmo das relações entre o temporal e o espiritual, mas unicamente da noção, extremamente confusa ainda hoje, do Povo que formam os cristãos dispersos através das nações da terra e cujas relações temporais são atingidas, ou deviam sê-lo, pela comum filiação à Igreja. É isto o que explica a ausência de nomes ilustres como aqueles de São Boaventura, São Tomás de Aquino, ou Duns Escoto, ao longo das lições que se seguem. Indispensáveis para uma teologia da Igreja, seriam consultados em vão a respeito do problema que nos preocupa. É justamente por isto que a questão deve ser proposta. A Republica fidelium, da qual tão bem falou Roger Bacon e que comumente denominamos Cristandade, nasceria de uma ilusão de perspectiva à qual os leigos estariam particularmente expostos, pelo simples fato de que, empenhados no temporal, eles lhe exagerariam a importância? Ou, ao contrário, chegamos ao momento em que a realidade da Cristandade deve ser reconhecida, descrita, definida e integrada em seu lugar na noção de Igreja? Se os teólogos, para os quais admitimos sem esforço que o problema seja menos urgente do que para os leigos, estimarem que não é destituído de sentido, é deles somente que podemos aguardar a solução.
Uma das razões que nos fazem crer na realidade do problema é a própria história, cujas principais etapas estas lições resumem, posto que bem sumariamente. Mesmo que os teólogos devessem concluir que não há uma verdadeira Cristandade, poderíamos lhes assegurar que existem muitas falsas. A história e nosso próprio tempo estão cheios de paródias da Cidade de Deus. É que, como era de temer-se da parte de membros da Cidade Terrestre, quiseram-na tornar temporal. A preparação a longo prazo, pela Igreja, de uma organização temporal do povo cristão e de sua integração temporal na Cidade de Deus, faria, sem dúvida, muito para evitar ou limitar a renovação destas experiências custosas das quais as duas ordens em causa assumem inevitavelmente os riscos. Ver-se-á, por nossas conclusões, que nenhum reforço de erudição mudaria a sua natureza. Estamos no problemático e a própria realidade do problema está, aqui, em questão.
Que nos seja permitido agradecer à Universidade de Lovaina por nos haver oferecido a ocasião de publicar estas reflexões que, sem sua graciosa hospitalidade, não teriam, provavelmente, jamais sido públicas. Esperamos não ter cometido qualquer erro grave. Se forem encontrados neste livro, deverão ser tidos como exclusivamente nossos. Deve ficar bem claro que não temos qualquer intenção de neles fixarmo-nos. Nada há de interessante senão a verdade.
Lovaina, primeiro de maio de 1952.