O livro que o leitor tem em mãos não é apenas um manual de Eclesiologia. Certamente pode ser utilizado como tal por quem tiver alguma familiaridade com a teologia católica, como seminaristas e padres, por exemplo. No entanto, ele é mais que um manual. Trata com boa profundidade de temas da Eclesiologia que, na maior parte das vezes, são abordados de forma meramente sumária nos manuais. Além disso, apresenta várias intuições do autor que podem servir de ponto de partida para fecundos desenvolvimentos elaborados por especialistas. Sem dúvida, vem a preencher uma lacuna da bibliografia sobre Eclesiologia disponível na língua portuguesa. Dito isso, podemos elencar algumas características importantes da obra.
Trata-se de um texto que lança raízes profundas na Eclesiologia do Vaticano II, em particular na
Lumen Gentium. Facilita uma compreensão adequada da doutrina conciliar, que evita cuidadosamente os desvios que se deram no pós-concílio com relação às noções de Povo de Deus e de Comunhão, infelizmente ainda frequentes nos nossos dias.
Na esteira da
Lumen Gentium, a Igreja é apresentada como Mistério sobrenatural, como “povo congregado na unidade do Pai e do Filho e do Espírito Santo” (LG, 1); a dimensão vertical da
Communio que a constitui é amplamente destacada ao longo de todo o texto e a sua sacramentalidade também é convenientemente considerada. Portanto, o autor claramente constrói uma Eclesiologia a partir de Deus, a partir das Missões do Filho e do Espírito Santo, uma “eclesiologia de cima”, que pode muito bem enriquecer as “eclesiologias de baixo” mais comuns no nosso ambiente. Ajuda-nos a evitar o risco de chegarmos nestas latitudes a uma Igreja sem Deus, como o próprio criador da teologia política, Johann Baptist Metz, afirma ter ocorrido na Europa: “a crise que atingiu o cristianismo europeu — são palavras suas —, não é mais exclusivamente e nem sequer primariamente uma crise eclesial... A crise é mais profunda: de fato, ela não tem as suas raízes só na situação da própria Igreja: a crise tornou-se uma crise de Deus (...) Esquematicamente se poderia dizer: religião sim, Deus não”
[1]. De qualquer modo, o autor tem em conta e apresenta as teses centrais das “eclesiologias de baixo”, como, por exemplo, as de Leonardo Boff, no seu famoso “Igreja: Carisma e Poder”, às quais faz uma crítica justa e sincera. Para sintetizar em uma fórmula a sua visão da Igreja, poderíamos utilizar uma proposta de J. Ratzinger: “A Igreja é o novo Povo de Deus, cuja essência consiste em ser o Corpo Místico de Cristo”, que oferece uma boa coordenação dos dois conceitos nela envolvidos.
Outra característica que é preciso destacar nesta obra é a ampla utilização de textos bíblicos. Pode-se afirmar, sem incorrer em exagero, que toda ela se apoia nesses textos, mostrando bem, tanto a continuidade dos desígnios salvíficos de Deus na Antiga e na Nova Aliança, como a originalidade desta última. Nesse sentido, têm particular interesse os primeiros capítulos do texto, em que o autor faz uma bela caracterização da Igreja, como “a Igreja da Aliança no Sangue de Cristo” prefigurada no sangue da Antiga Aliança, solidamente apoiado em abundantes escritos de exegese patrística.
Por outro lado, faz-se um bom reconhecimento do Magistério tanto conciliar como pré-conciliar sobre a Igreja. Tudo acompanhado de oportunos comentários que, além de esclarecer o sentido do texto dos documentos, explicam o contexto em que se situam, em função das principais linhas do debate teológico da época. Analisam-se também alguns aspectos mais relevantes dos documentos da CNBB e do documento de Aparecida, principalmente no que diz respeito ao caráter missionário da Igreja.
O livro oferece uma lúcida explicação sobre a estrutura constitutiva do corpo eclesial, apresentado como povo sacerdotal, em que o sacerdócio ministerial aparece como nitidamente subordinado ao sacerdócio comum dos leigos e a seu serviço. Neste ponto, o autor desenvolve ideias de Pedro Rodríguez, dando consistência teológica a uma tese que tantas vezes é mencionada de maneira superficial. Torna patente qual é o verdadeiro protagonismo do leigo na vida da Igreja, afastando-se radicalmente de qualquer clericalização do seu papel e pondo em destaque a índole secular da sua vocação no seio do Corpo Místico de Cristo, tal como é definida na
Lumen Gentium e explicada na exortação apostólica pós-sinodal
Christifideles laici.
Estudam-se também, em perspectiva teológica (não apologética, como não poderia deixar de ser) as quatro notas que identificam a verdadeira Igreja de Cristo por constituírem características que lhe são essenciais: a unidade, a santidade, a catolicidade e a apostolicidade. Dá-se especial ênfase à unicidade, na medida em que se discute cuidadosamente a noção de ecumenismo proposta pelo Vaticano II no decreto
Unitatis Redintegratio, que, apesar de ter gerado muita polêmica, representa, sem dúvida, um importante progresso na compreensão do
depositum fidei custodiado pela Igreja.
Sobre a evolução pós-conciliar da teologia sobre a Igreja, o autor dedica todo um capítulo ao acalorado debate a propósito das relações entre a Igreja Universal e as Igrejas Particulares que surgiu após a publicação da
Communionis Notio da Congregação para a Doutrina da Fé, em 1992. Explica com bastante detalhe as posições dos dois principais protagonistas desse debate — J. Ratzinger e W. Kasper — e tira as suas conclusões. Detém-se também na explicação da importante noção de sinodalidade, tão cara ao Papa Francisco, que se tem perfilado nos últimos anos.
Por fim, se fôssemos questionados a respeito dos teólogos que mais influenciaram o pensamento do autor, arriscaríamos citar os seguintes: J. Daniélou, uma vez que a sua tese doutoral versou sobre a obra desse renomado jesuíta; G. Philips, o conhecido relator da
Lumen Gentium, cuja obra continua sendo até os nossos dias um ponto de referência na hermenêutica daquele texto conciliar; Pedro Rodriguez, com a sua grande capacidade de explicar com clareza os temas mais intrincados da eclesiologia e, naturalmente J. Ratzinger, cujo pensamento permeia praticamente todas as páginas da presente obra. No entanto é de justiça dizer que o autor maneja com boa desenvoltura as ideias de vários outros autores citados na Bibliografia.
Concluo, dizendo que este livro constitui a natural continuação da obra sobre Cristologia recentemente publicada pelo padre Françoá Costa a quem agradeço de coração a alegria que me deu, ao convidar-me a escrever este breve prefácio, e as amáveis palavras a meu respeito que constam nos agradecimentos do livro. A propósito, esclareço que se algum mérito me é devido nesta obra, ele se limita ao fato de ter estimulado o autor escrevê-la, mesmo tendo que espremer o seu tempo para se desincumbir simultaneamente da exigente tarefa de pesquisa acadêmica e do amplo trabalho pastoral que realiza, como consequência do seu grande amor à mesma Igreja sobre a qual escreve. Aliás, resta dizer que esta é talvez a característica mais importante deste livro: trata-se da obra de um apaixonado pela Igreja.
Dr. Pe. Rafael Stanziona de Moraes
Brasília, 18 de junho de 2020
“Ninguém pode ter Deus por Pai, se não tiver a Igreja por Mãe” (S. Cipriano,
Sobre a unidade da Igreja, 6)
A frase de São Cipriano segundo a qual a Igreja é nossa Mãe, relacionada com o mistério de Deus Pai, mostra uma das muitas analogias com as quais explicamos como a Igreja participa de uma realidade que a transcende. Por mais que vejamos, com certa frequência, as realidades históricas da vida da Igreja e, por vezes, até nos decepcionamos, será necessário considerar essa dimensão transcendente que a faz muito mais que uma organização, sem deixar de ser uma realidade organicamente estruturada; ela é muito mais que uma realidade histórica, sem deixar de ter grande parte de seus membros como peregrinos na história; ela é mais que uma realidade humana, por mais que as misérias e os êxitos humanos aconteçam nela de maneira bastante habitual.
Se relacionarmos a Igreja com o Pai e conosco, ela é a nossa Mãe; ademais, ainda relacionada com o Pai, ela aparece como Povo de Deus; relacionada com o Filho encarnado, ela é Corpo de Cristo; relacionada com o Espírito Santo, ela é Templo santíssimo. Isto é, as relações da Igreja com cada uma das pessoas da Santíssima Trindade é manifestação externa daquelas mesmas relações
ad intra (internas) que existem em Deus e que o constitui eternamente e numericamente igual em Trindade de Pessoas: como Pai e Filho e Espírito Santo.
Assim como, no Antigo Testamento, Deus mandou Moisés construir um Santuário, princípio do grandioso Templo de Jerusalém, para que Ele (Deus) habitasse segundo o modelo que fora mostrado pelo próprio Deus na montanha (cf. Ex 25,9.40), assim cada fiel precisa subir à montanha da fé e descobrir o modelo que Deus quis para a sua Igreja. Somente na fé, podemos ter uma visão correta do que é a Igreja. A reflexão teológica sobre a Igreja tampouco poderia ser realizada se não fosse a partir da montanha da fé. O teólogo é, portanto, uma pessoa de fé que reflete racionalmente sobre algum aspecto que Deus revelou na montanha.
Se ficarmos com uma visão meramente sociológico-antropológica da Igreja não veremos com clareza a natureza da Igreja e muito menos o seu agir. É verdade que alguém poderia contra-argumentar que estamos a propor uma “eclesiologia de cima” fadada a não conectar com as realidades humanas, com o cotidiano das pessoas. Esse nosso interlocutor estaria disposto a dizer que a eclesiologia deveria ser feita desde a base, desde a vida concreta dos cristãos e das comunidades, porque somente assim se manifestaria uma eclesiogênese realista. O autor deste livro é consciente de que escreve uma eclesiologia situado na América Latina e, mais em concreto, desde o Brasil, onde essas ideias de “eclesiologias de baixo” tiveram tanto êxito quanto as igualmente chamadas “cristologias de baixo”. Contudo, além de ser uma questão de fé, eu não seria coerente com o pensamento da Igreja e com o meu próprio se eu não fizesse essa opção metodológica. Essa postura teológica é coerente também com a nossa posição em cristologia. Efetivamente, faz alguns meses que publicamos uma “cristologia de cima”
[2] argumentando a necessidade de estarmos atentos ao método teológico. Tanto ao refletir teologicamente sobre o mistério de Cristo como quando essa reflexão refere-se à Igreja, não podemos deixar de fazê-lo
teologicamente e, portanto, com os olhos postos na montanha, isto é, na divina revelação.
Além disso, pensamos que o Concílio Vaticano II nos dá razão ao começar a Constituição Dogmática sobre a Igreja, a
Lumen Gentium (LG), dizendo que “Cristo é a luz dos povos. Por isso, este sagrado Concílio, congregado no Espírito Santo, deseja ardentemente que a luz de Cristo, refletida na face da Igreja ilumine todos os homens” (LG, 1). Em seguida, o Concílio nos fala do desígnio salvífico universal de Deus e das missões do Filho e do Espírito Santo. Acaso não é começar a falar sobre a Igreja olhando para a montanha da fé?
Sendo assim, podemos definir a eclesiologia como o tratado teológico sobre a Igreja. Dizíamos que é um
tratado teológico e, podemos acrescentar, que faz parte da
dogmática católica. Essas afirmações nos levam a afirmar que a Igreja é objeto de fé e, portanto, o método para refletir sobre ela não pode ser fora da fé. Para entendermos melhor todas essas afirmações, ajudarão alguns dados históricos.