A escritora africana Chimamanda Ngozi Adichie, em uma conferência apresentada no programa TED, intitulada “O perigo da história única”, fala sobre o perigo que há em conhecer ou relatar apenas uma história, apenas um aspecto sobre qualquer objeto, seja este um continente, um país, uma família, uma pessoa. “Se eu não tivesse crescido na Nigéria”, afirma, “e se tudo o que eu conhecesse sobre a África viesse das imagens populares, eu também pensaria que a África era um lugar de lindas paisagens, lindos animais e pessoas incompreensíveis, lutando guerras sem sentido, morrendo de pobreza e AIDS, incapazes de falar por elas mesmas, e esperando serem salvas por um estrangeiro branco e gentil”. “É assim que se cria uma história única”, afirma, “mostre um povo como uma coisa, como somente uma coisa, repetidamente, e será o que ele se tornará”. Criamos assim estereótipos, que nem sempre são baseados em mentiras, mas são sempre incompletos. “Eles fazem uma história tornar-se a única história”. Adichie não pretendia negar que “a África é um continente repleto de catástrofes”, e recorda fatos deprimentes, como o de “5.000 pessoas candidatarem-se a uma vaga de emprego na Nigéria”. No entanto, “há outras histórias que não são sobre catástrofes. E é muito importante, é igualmente importante, falar sobre elas”, porque todas elas formam o que a África é hoje. “Eu sempre achei”, continua, “que era impossível relacionar-me adequadamente com um lugar ou uma pessoa sem relacionar-me com todas as histórias daquele lugar ou pessoa. A consequência de uma história única é essa: ela rouba das pessoas sua dignidade. Torna difícil o reconhecimento de nossa humanidade compartilhada”. E conclui sua palestra dizendo: “As histórias são importantes. Muitas histórias são importantes. As histórias têm sido usadas para desapropriar e tornar maligno. Mas as histórias também podem ser usadas para dar poder e para humanizar. As histórias podem quebrar a dignidade de um povo. Mas as histórias também podem reparar essa dignidade quebrada”.
Quando descobri esta palestra, numa aula de graduação sobre a África, imediatamente pensei também na Idade Média. O risco de se criar uma história única, que corremos mesmo de forma inconsciente, pode ser estendido também à compreensão que temos das épocas históricas. E nenhuma outra foi objeto deste problema tanto quanto a Idade Média. O mito da Idade das Trevas é um silêncio sobre uma quantidade muito grande de histórias. Em mil anos, seria impossível encontrar uma única atitude, uma única forma de ver o mundo. Na ausência de uma contextualização de cada século, uma única fonte pode ser considerada representativa de todo o período. É necessário, portanto, realizar uma “integração” de fontes que possibilite uma imagem mais “humanizada”, mais real da Idade Média. É sempre necessário, além disso, que nos esforcemos para olhar os fatos sob a ótica de seu tempo. Muitas vezes, a visão de mundo medieval é avaliada a partir de padrões atuais e de uma base preconceituosa. Hoje, em um mundo predominantemente laico, não nos surpreende que esta visão medieval – determinada em grande parte pela influência dominante da Igreja – seja mal compreendida. Por isso, as características negativas que o mito da Idade das Trevas evoca nem sempre consistem em lendas sem qualquer base. Muitas delas, ainda quando aparentemente reforçadas por fontes, ocorrem por conta deste choque entre visões de mundo, e por desconsiderarem o contexto em que estas fontes surgiram. Mas o mito também contém afirmações sem nenhum fundamento. Podemos citar como exemplo o tema deste livro: a ciência medieval. Até as descobertas de Pierre Duhem, como veremos, acreditava-se que nada de cientificamente importante se tinha realizado durante estes “tempos obscuros”. Mas esta visão baseava-se em um grande desconhecimento de fontes sobre o tema, campo histórico que só começou a receber atenção no século XX.
Assim, para demonstrar a inconsistência do mito buscaremos, na primeira parte deste livro, entender como a ideia de Idade das Trevas se formou ao longo dos séculos que se seguiram à Idade Média. Em seguida, na segunda parte, reconstituiremos as realizações técnicas e científicas do século IV ao XIV. Isso nos proporcionará uma clara visão do contraste entre as afirmações do mito e as fontes medievais. Certamente, devido ao longo período abordado, a obra adquiriu um caráter superficial e expositivo, mas com a vantagem de oferecer um panorama geral, também necessário para os que desejam ir além. Neste livro, estudamos o mito somente pelo ângulo da história da ciência, portanto. Mas acreditamos que a comprovação da existência de uma ciência medieval pode alterar o quadro de tal forma que já não seja possível falar em Idade das Trevas também em outros campos do saber. Assim como uma imagem de “atraso intelectual” pode acarretar consigo a de “atraso científico” como consequência, a comprovação de descobertas e invenções testemunha, em sentido oposto, uma atividade intelectual fecunda, que se estende para outros campos. Além disso, com a constatação de que campos do saber hoje separados estavam unidos na Idade Média, o reconhecimento de uma “ciência” medieval também nos leva, por exemplo, à descoberta da filosofia, da teologia e da cultura medieval.
Este livro foi escrito originalmente como uma pesquisa de Iniciação Científica ao final da minha graduação em história, entre 2016 e 2017. Certamente, ainda há muito trabalho a ser feito, mas posso dizer que ele foi o começo de um sonho. Pois a minha admiração pela Idade Média veio antes de qualquer conhecimento sobre ela. Vinha do imaginário medieval, dos castelos e cavaleiros. Ao confrontar-me, no entanto, nos anos de formação escolar e durante a graduação, com as imagens negativas sobre o período, senti a necessidade de fundamentar melhor esta admiração. Para a minha surpresa, durante este trabalho, encontrei poucos historiadores recentes que defendessem abertamente o mito de “Idade das Trevas”, como um período de estagnação e obscurantismo religioso. Esta imagem realmente vem sendo questionada. No entanto, quem negaria que ela, repetida tantas vezes e por tanto tempo, tenha se tornado uma verdade para o senso comum? Que ela ainda vigora em muitos livros didáticos? Quantos de nós saberíamos contextualizar a Inquisição, demonstrar que os dogmas de fé não impedem a liberdade ou o conhecimento, ou compensar os desvios morais do clero com tantos outros fatos “que não são sobre catástrofes”? Muitos autores têm realizado esforços neste sentido, mas certamente, para mudar o senso comum, ainda há muito o que fazer.
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O mito da Idade das Trevas é um silêncio sobre uma quantidade muito grande de histórias. Certamente, a Idade Média tem suas sombras, mas quando as fontes são julgadas fora de seu contexto, e quando os “lados obscuros” não são equilibrados com as luzes que também existiram no período, forma-se uma caricatura que é tão falsa quanto as calúnias que se conta sobre ele. Até o século XX acreditava-se, por exemplo, que nada de cientificamente importante se tinha realizado durante a Idade Média. Mas esta visão baseava-se em um grande desconhecimento de fontes sobre o tema, ainda pouco estudado. Por isso, com este livro, esperamos demonstrar a inconsistência do mito da Idade das Trevas, através de uma reconstrução panorâmica da ciência medieval. Devido ao longo período abordado, a obra adquiriu um caráter principalmente expositivo, com a vantagem de oferecer um quadro geral, também necessário para os que desejam ir além.