Capítulo 1
O significado da água na natureza e na graça
Na primeira página da Sagrada Escritura lemos que “o Espírito de Deus pairava sobre as águas” (Gn 1,2). Por que o Espírito de Deus pairava sobre as águas? Os Padres Igreja nos respondem: para abençoá-las, para que possam corresponder ao seu papel no trabalho da Criação. Assim o santo apóstolo Pedro confirma brevemente o papel das águas:
“Esquecem-se propositadamente que desde o princípio existiam os céus e igualmente uma terra que a palavra de Deus fizera surgir do seio das águas, no meio da água” (2 Pd 3,5).
E mesmo depois da Criação, a água tem uma importante função no reino da natureza e também, é preciso dizer, no reino da graça. Reflita por um momento sobre como, na natureza, todo ser vivo precisa de água e pense em nossas nascentes e córregos que, carregando suas bênçãos, se espalham sobre a terra. Eles representam para a terra o que a circulação do sangue representa para o corpo humano. Assim como o sangue se distribui do coração para o corpo e retorna, assim também a água que vem dos lagos fecunda o solo sedento na forma de chuvas renovadoras e depois volta para os lagos e oceanos.
E assim como a água cumpre o seu papel no reino da natureza, também o cumpre no âmbito da graça, na forma da água benta e santa.
Os antigos romanos serviam-se de uma água que consideravam sagrada. Ovídio, Virgílio e Cícero nos contam sobre uma água sagrada com a qual as pessoas, casas e campos eram aspergidos para que as pragas fossem afastadas e as manchas do pecado apagadas.
“Cristo, o Criador de todas as coisas, desceu como a chuva e se tornou uma fonte e se propagou como um rio e foi batizado no rio Jordão. Ó, coisas estranhas e incomparáveis! Como é possível que o grandioso Rio que alegra a cidade de Deus tenha sido mergulhado em tão pouca água? A infinita nascente que carrega a vida de todos os homens, que não tem fim, foi coberta por águas efêmeras e passageiras! Ele, que está presente em todos os lugares e não está ausente de nenhum lugar – que é incompreensível aos anjos e invisível aos homens – vem ser batizado por sua própria vontade. O Espírito apareceu em forma de Pomba por sobre as águas do Jordão naquele dia, completando, assim, a simbólica conexão entre a água e o Espírito”. Santo Hipólito (D. 236)
O escritor cristão Tertuliano, que viveu no século II, nos conta que os pagãos utilizavam uma água sagrada e lhe atribuíam o poder não apenas de limpar a sujeira do corpo, mas também de erradicar o pecado.
Entre os judeus, a água benta tinha um significado particular. Eles desenvolveram leis específicas para o uso da assim-chamada água de aspersão. Lê-se no Antigo Testamento: “Quem tocar o cadáver de um homem qualquer será impuro sete dias; purificar-se-á com esta água ao terceiro e ao sétimo dia, e será puro; mas se ele não se purificar ao terceiro e ao sétimo dia, não será puro” (Nm 19,11-12).
E não apenas as pessoas deviam ser aspergidas com essa água, mas também suas casas e seus móveis. “Em seguida, um homem puro, depois de ter molhado nela um hissopo, aspergirá a tenda, todo o seu mobiliário, todas as pessoas que aí se encontram, bem como a pessoa que tocou nos ossos, ou no homem assassinado, ou no cadáver, ou no sepulcro” (Nm 19,18). Era tão importante essa aspersão, que qualquer um que estivesse contaminado e “não se purificar, manchará a casa do Senhor; será cortado de Israel. Não tendo corrido sobre ele a água lustral, ficará impuro, e sua impureza permanecerá sobre ele” (Nm 19,13).
É evidente que essa expiação não tinha a finalidade de purificar do pecado, pois não se pode considerar pecado o trabalho misericordioso que era realizado com o preparo dos cadáveres. A Escritura exalta o bom Tobias porque enterrou os mortos (Tb 12,12). Mas, por ser a morte uma consequência do pecado, e trazer consigo, em certa medida, a mancha do pecado, Deus, para deixar clara para os Israelitas a malícia do pecado, determinou que todos aqueles que entrassem em contato com um cadáver, e, portanto, com a morte – ficando assim, de certo modo, contaminados pela mancha do pecado – deveriam ser considerados corporalmente impuros. E dessa impureza os judeus deveriam ser purificados por meio da água benta.
A água sagrada utilizada pelos pagãos, como mencionado anteriormente, era uma antecipação das águas de expiação utilizadas pelos judeus, e estas eram uma antecipação da água sagrada que nós, católicos, conhecemos como água benta.
O uso da água benta chega até nós, na Igreja Católica, com todo esse pano de fundo em seu favor, inclusive o testemunho do Antigo Testamento. Hoje, como então, ela significa purificação, como significava desde as abluções prescritas na antiga lei, por Deus todo-poderoso, até o batismo de João nas águas do rio Jordão. Quem negaria que nosso Senhor utilizou água com esse mesmo propósito quando lavou os pés dos discípulos na véspera de sua paixão? E mais ainda, Ele fez da água uma condição necessária para nossa salvação: “Quem não renascer da água e do Espírito não poderá entrar no Reino de Deus” (Jo 3,5).
Tal como hoje, a água benta sempre foi utilizada pela Igreja através dos séculos, desde o tempo dos apóstolos. As Constituições Apostólicas1 falam dela. O Papa Alexandre, que morreu no ano 130, num decreto pontifício onde confirma essa tradição apostólica, diz: “Abençoamos sal e água para o povo, para que todos os que forem aspergidos com eles, possam ser purificados e santificados”.
O mártir São Justino, que morreu no ano 163, nos conta que os fiéis do seu tempo eram aspergidos com a água benta nas assembleias, todos os domingos. Também encontramos menção da água benta nos escritos de São Cipriano, no século III, nos trabalhos de São Basílio, no século IV, nos escritos de São Jerônimo, no século V e através de São Gregório Magno, no século VI.