Muitos casais cristãos compartilham os mesmos valores e crenças, vão à Missa, desejam educar bem os filhos. E, no entanto, nem sempre conseguem transformar tudo isso em uma verdadeira vivência espiritual matrimonial. Há fé, mas falta um caminho concreto; há boa vontade, mas falta uma visão clara de que o matrimônio, como sugerem tantos textos de espiritualidade, é um “caminho divino sobre a terra”.
Inspirando‑nos nas reflexões de Javier Vidal‑Quadras no livro Dois em Deus, podemos redescobrir um ponto decisivo: Deus não quis apenas que o casamento “fosse de Deus”, mas que se tornasse o lugar, o meio e o caminho ordinário de encontro com Ele. Não se trata de acrescentar mais coisas à agenda do casal, mas de aprender a “matrimonializar” a vida espiritual: viver a fé a dois, no concreto da relação entre marido e mulher.
1. Uma única vocação: santidade e matrimônio
Às vezes falamos da “vocação à santidade” e, em seguida, da “vocação ao matrimônio”, como se fossem duas chamadas superpostas. Na realidade, para os esposos cristãos trata‑se de uma única vocação: Deus chama cada um à santidade precisamente através do outro, através da vida matrimonial.
O matrimônio não é apenas um contexto afetivo ou uma estrutura social; é um chamado pessoal de Deus, feito à liberdade de um homem e de uma mulher, para que se tornem uma só carne e, assim, imagem viva do amor com que Cristo ama a Igreja. É um sacramento da criação e da redenção: nasce já na união de Adão e Eva, e encontra sua plenitude na aliança de Cristo com a Igreja.
Por isso, a nossa história de amor tem um antes e um depois. Há um momento – quase sempre silencioso, às vezes inesperado – em que se acende uma luz interior: reconhecemos, na pessoa amada, um caminho de Deus para nós. Não é apenas “eu te escolho porque gosto de você”, mas “em você eu descubro para onde Deus quer conduzir a minha vida”. A vocação matrimonial é essa descoberta.
2. Ministros do matrimônio: a liturgia é a vida
No rito católico do Matrimônio, os verdadeiros ministros do sacramento não são o sacerdote ou o diácono, mas os próprios noivos. Eles se entregam e se recebem mutuamente em nome de Cristo. O ministro ordenado é testemunha qualificada dessa aliança.
Essa verdade litúrgica tem consequências profundas para a vida espiritual do casal: se fomos nós que, com nossa palavra e consentimento, fizemos de nossa união um sacramento, então somos também nós os encarregados de tornar Cristo presente no dia a dia do matrimônio. Somos ministros do sacramento não apenas naquele dia, mas em toda a vida conjugal.
Não é necessária uma “liturgia paralela” para isso. A nossa liturgia é a vida. Cristo se faz presente no matrimônio por meio de todos os atos e atividades ordinárias com que cuidamos da união e da fidelidade: a paciência num momento de cansaço, a escuta sincera depois de um dia difícil, o pedir perdão e saber perdoar, o abraço reconciliador, a ternura no leito conjugal, o esforço de compreender o ponto de vista do outro, a decisão de recomeçar quantas vezes for preciso.
Cada vez que os esposos se querem bem “como Cristo ama a Igreja”, a graça do sacramento volta a atuar, quase como se o altar do dia do casamento se tornasse novamente presente no meio da sala, da cozinha, do quarto. O matrimônio é o único sacramento que se vive “de dois em dois”, e é de dois em dois que se santifica.
3. “Matrimonializar” a vida de piedade
A espiritualidade autêntica deve adaptar‑se às circunstâncias concretas de cada pessoa, como uma luva que se ajusta à mão. A mensagem de que “há algo de santo, de divino, escondido nas situações mais comuns, algo que a cada um de nós compete descobrir” ganha uma ressonância particular quando aplicada ao casamento.
Javier Vidal‑Quadras fala, seguindo São Josemaria, de uma verdadeira “matrimonialização” da vida de piedade. Não se trata apenas de somar práticas em comum, mas de deixar que a própria textura da piedade cristã – oração, sacramentos, devoções – assuma um rosto conjugal.
“Matrimonializar” a vida de piedade significa:
– Rezar a partir do matrimônio
Não é apenas “rezar pelo casamento”, mas rezar dentro do casamento. Pedir juntos, por exemplo, que o Senhor esteja presente em tudo o que viverem naquele dia, que lhes ensine a olhar um para o outro com Seus olhos, a perdoar como Ele perdoa, a servir como Ele serve.
– Unir a oração pessoal à vida do outro
Cada um precisa de momentos pessoais de oração, de Eucaristia, de Confissão. Mas a vida interior de um esposo nunca é neutra para o outro. A amizade com Cristo, a luta por crescer na fé, inevitavelmente repercutem na qualidade do amor conjugal. Quando levamos para a oração as alegrias e as dores do cônjuge, os seus medos, sofrimentos e esperanças, começamos a olhar para ele com a ternura de Deus.
– Assumir a comunhão espiritual como realidade concreta
A “comunhão dos santos” não é uma ideia abstrata. Num casal que luta pela santidade, o bem de um torna mais fácil a luta do outro; a queda de um pede o apoio, a oração, a paciência do outro. Há uma circulação de graça dentro do matrimônio. É desse tecido espiritual, quase invisível, que nasce aquilo que podemos chamar de santidade matrimonial.
4. A hierarquia do amor: depois de Deus, o cônjuge
Um ponto delicado, mas muito necessário, é a ordenação dos amores. Tudo aquilo que é bom – filhos, trabalho, amigos, apostolado, hobbies – pode, se não estivermos atentos, deslocar o cônjuge do lugar que lhe cabe. Na hierarquia do amor, depois de Deus, o primeiro lugar pertence ao marido ou à esposa, acima dos filhos.
Isso pode parecer duro à primeira vista, mas é, na verdade, um ato de amor profundo aos próprios filhos. Uma criança que vê o pai e a mãe se amarem, se respeitarem, se perdoarem e se escolherem mutuamente acima de tudo, cresce com um chão firme sob os pés. Sabe que nada a fará tão feliz quanto aprender, no futuro, a amar também assim.
Com o passar dos anos, o risco é deixar‑se levar pela rotina: o trabalho absorvente, as preocupações econômicas, a educação dos filhos, as pequenas tensões diárias. Sem perceber, o casal começa a viver como se “Deus estivesse ausente das coisas de cada dia” e, pouco a pouco, também o cônjuge vai sendo posto entre parênteses. É precisamente aí que a consciência da vocação matrimonial se torna decisiva.
Recolocar o cônjuge no lugar que lhe corresponde, depois de Deus, significa rever prioridades, reorganizar o tempo, renunciar a certas seguranças ou comodidades. Mas significa, sobretudo, recuperar a admiração, o olhar agradecido, a ternura inicial. Em linguagem muito simples: aprender, muitas vezes ao longo da vida, a “re‑enamorar‑se” um do outro.
5. Santidade a dois: vocação, imitação, eternidade
Se a vocação à santidade e a vocação ao matrimônio são, para os casados, uma única chamada, então o caminho espiritual também se articula a dois.
– Vocação
Deus está comprometido com cada matrimônio cristão. É como se dissesse: “Se vocês se casam, Eu estarei com vocês todos os dias de suas vidas”. A santidade matrimonial não é um ideal abstrato, mas a resposta concreta a esse compromisso de Deus: deixar que Ele entre na história de amor, que purifique, fortaleça, cure, eleve.
– Imitação
Para amar como Cristo ama a Igreja, é preciso aprender a viver como filhos de Deus, como “outro Cristo” no coração do lar. Isso implica deixar muita coisa para trás: egoísmos, apegos, dependências que ameaçam a entrega total. Cada um é convidado a reconhecer, com realismo, aquilo que, em seu temperamento ou hábitos, pode corromper a promessa de amar “para sempre”.
– Eternidade
Daí nasce também uma pergunta que inquieta muitos casais: o que acontecerá com o nosso matrimônio na vida eterna? Permaneceremos unidos? Continuaremos a ser esposos?
À luz das palavras de Cristo – “quando ressuscitarem dos mortos, nem eles se casam, nem elas se dão em casamento, mas são como os anjos nos céus” –, a Igreja ensina que, na ressurreição, permaneceremos homens e mulheres, mas o matrimônio e a procriação não farão mais parte do futuro escatológico. Isso não significa, porém, que os amores da terra se apagarão, como se não tivessem contado.
Julián Marías, citado por Javier Vidal‑Quadras, recorda que imaginar a vida eterna como algo “abstrato e sem conexão com a nossa realidade” seria uma infidelidade ao Criador. A eternidade deve ser entendida como “prolongamento, talvez realização plena, da ‘minha’ vida, a de cada um, com sua concretude, suas experiências, seus amores irrenunciáveis”. Também São Josemaria via assim o Céu: não como anulação da história vivida, mas como sua plenitude em Deus.
Isso inclui, naturalmente, a história do amor matrimonial. Esses amores serão divinizados, sobrenaturalizados, integrados em Deus e transformados para se ajustarem à nova condição de nossos corpos glorificados. Deixarão de ser vividos sob as limitações e feridas do pecado, mas não deixarão de ser amores. Em Deus, tudo o que foi amado retamente encontrará sua purificação e sua plenitude.
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Este artigo inspira‑se no livro Dois em Deus: uma proposta de espiritualidade matrimonial segundo os ensinamentos de São Josemaria, de Javier Vidal‑Quadras (São Paulo: Cultor de Livros, 2025, tradução de Daniel Araújo), que apresenta, com linguagem acessível e profunda, um itinerário de vida espiritual pensado a partir da realidade concreta do matrimônio.
Javier Vidal‑Quadras Trías de Bes é casado e pai de família numerosa. Advogado de profissão, é sócio do escritório Amat & Vidal‑Quadras e professor de Direito. Tem ampla experiência em temas relacionados à família, ao matrimônio e à educação, sobre os quais escreveu diversos livros e conferências, sempre com o desejo de mostrar que a vida familiar é, de fato, um caminho de santidade aberto a todos.